A Bruxa (2015), de Robert Eggers

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Horrores do mundo invisível

Odorico Leal

Em 1693, Cotton Mather, ministro e líder político de uma comunidade puritana na Nova Inglaterra, escreve Maravilhas do Mundo Invisível, obra colossal em que esmiúça e justifica o célebre julgamento das bruxas de Salem, do qual participara ativamente. Na obra, Mather elabora uma espécie de teoria da conspiração de ordem sobrenatural: para o autor, adepto do milenarismo, a crença na iminente vinda de Cristo, as colônias da Nova Inglaterra eram vítimas de uma intriga maligna do Demônio, assessorado pela ação pervertida de bruxas. Mather pertencia à segunda geração de puritanos nascidos na colônia da Baía de Massachusetts. Seu avô, Richard Mather, viera de Londres, em 1635, fugindo de perseguição religiosa. Cotton Mather descreve esses primeiros peregrinos, entre eles seu avô, como “os primeiros semeadores destas Colônias”, pertencentes a uma “geração de homens escolhidos”, homens puros e pacíficos que, diante do desejo por reforma espiritual, optaram não pelo embate político, mas pelo “exílio voluntário num deserto americano”. Cotton acreditava que esse deserto era uma província infernal: “Os Novos Ingleses são um povo de Deus estabelecido em territórios que, antes de sua chegada, pertenciam ao Demônio; e pode-se facilmente supor que o Diabo viu-se excessivamente perturbado quando percebeu tal povo realizando aqui a velha Promessa devotada ao Senhor Jesus Cristo, de que Ele teria a maior parte da Terra como Posse Sua.” A tarefa dos descendentes daqueles primeiros semeadores consistia em confirmar a posse daquelas terras em nome de Cristo, o que só seria realizável por uma conduta tão pura e voltada inteiramente para Deus quanto àquela dos antepassados. Mas não é isso que Cotton enxerga nas novas gerações – “especialmente os nossos jovens, quando escapam às restrições aqui impostas sobre eles, tornam-se viciosos de modo extravagante e abominável”. Não era causa de surpresa, portanto, que a Nova Inglaterra se visse assolada pela sucessiva aparição de relatos de bruxaria – era o Diabo em guerra pelos corações puritanos.

É para esse universo que o filme de estreia de Robert Eggers, o magistral A Bruxa (2015), nos transporta: uma Nova Inglaterra sombria, marcada pelo misticismo religioso, sob a ameaça constante de forças naturais e sobrenaturais, que aqui são indistinguíveis. A existência é fundamentada numa ética da renúncia: “Devemos voltar nossos pensamentos na direção de Deus, não de nós mesmos”, ensina o patriarca da família aos filhos e à esposa. É essa orientação que é posta à prova em A Bruxa.

O filme valeu o prêmio de melhor diretor para Eggers, em Sundance. Entre as honrarias constam também a confissão de Stephen King, pelo Twitter, de que o filme o deixou assombrado, e o endosso do Templo Satânico, uma renomada agremiação satanista dos Estados Unidos. Eggers, que, nas entrevistas de divulgação, veste quase sempre preto, parece contente em cultivar uma imagem gótica que deve mesmo incentivar uma leitura do filme como uma ode sinistra às forças satânicas.

A Bruxa conta a história de desintegração de uma família puritana sob o ataque de forças demoníacas, numa fazenda isolada nas vastidões da Nova Inglaterra, por volta de 1630. Na abertura do filme, a família é expulsa da comunidade onde habitava. O motivo não é explicitado; ficamos sabendo apenas que William, o pai, despreza o comportamento do povo do vilarejo e julga seguir à risca a palavra da Bíblia. Trata-se de um reformista dos reformistas – um puritano radical e exemplar. Quando abandonam as fronteiras da comunidade, adentram aquele “deserto americano” que, em A Bruxa, como na obra de Cotton Mather, é o território do Demônio. A cena é agourenta: as portas se fecham, a carroça começa a andar – a filha mais velha olha para trás com olhos aflitos, enquanto a mãe segura o bebê, cantando hinos a Jeová. É uma tomada estranhamente longa, num plano único, e se estende, pegando o espectador de surpresa; em vez de uma rápida elipse, assistimos à carroça se afastando muito aos poucos, enquanto um arranjo em crescendo de cordas sombrias e tensionadas sugere desastre. A música segue costurando as cenas seguintes: numa elipse, uma pausa na viagem, o grupo ao pé da fogueira, no meio da floresta, à noite – a cena é breve, mas tem uma composição de luz e sombra perturbadora; outra elipse, e é dia: a família ajoelhada no local onde escolheram viver, pedindo a benção divina. O olhar que William e Katherine, a esposa, trocam é esperançoso – é como se sentissem que estão cumprindo o destino que Deus lhes reservara; mas a câmera se afasta dos dois, voltando-se para a floresta. Agora, além das cordas, um coral sinistro ressoa e cresce, enquanto somos tragados para dentro das árvores escuras. Toda a condução dessa sequência – da saída da vila até o assentamento diante da floresta – é inquietante e é cinema em estado de arte: fica desde logo claro que não estamos diante de um filme de terror comum.

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Mais tarde, contemplando a floresta escura que assoma à frente deles, William tenta inspirar os filhos: “Conquistaremos esta vastidão; ela não nos consumirá”. Toda a cinematografia sombria de A Bruxa aponta para o contrário: a floresta é sinistra, o vento é ominoso. E o que testemunhamos é isto: a floresta os consome; sucessivos ataques de agentes demoníacos vão, aos poucos, minando os laços familiares. Há várias similaridades estruturais com O Iluminado (1980), de Kubrick: a família que se isola espacialmente; a figura do pai que fracassa – Jack não consegue escrever; William não consegue caçar ou cultivar; as crianças em contato secreto com o sobrenatural; o lugar assombrado – a floresta, o hotel; e, claro, a progressiva desintegração do núcleo familiar – em O Iluminado, o pai enlouquece; aqui, toda a família sucumbe.

Além de William, o pai, e de Katherine, a mãe, o núcleo familiar é formado por Thomasin, primogênita e figura central da trama, a quem o título se refere; Caleb, o filho às voltas com as intimações sexuais da puberdade; Mercy e Jonas, um casal de pequenos endiabrados que gastam os dias brincando com um suspeitíssimo bode negro, o nada simpático Black Phillip; por fim, há Samuel, o bebê, a primeira vítima da conspiração demoníaca.

Numa tarde, Thomasin está brincando com o bebê – ora esconde o rosto com as palmas das mãos, ora o mostra, para alegria do pequeno Samuel. Faz isso duas vezes; na terceira, quando revela o rosto, não encontra o bebê. Corre pra floresta, procurando o irmão, mas é inútil. A partir daí, as convicções espirituais da família começam a desabar. Caleb, numa caçada fracassada com o pai – a floresta não oferece nenhum alimento, apenas terror e perigo –, deseja saber se Samuel, nunca batizado e nascido, como todos, em pecado, está no Inferno. O pai explica que apenas Deus pode saber quem são os predestinados para a salvação. Katherine reza dia e noite pela alma da criança, mas tem o coração semeado de dúvidas – acredita que a família foi amaldiçoada. Numa conversa na cama com o marido, que os filhos secretamente escutam, lembra que Cristo foi conduzido ao deserto para encontrar o Demônio. Diz que nunca deveriam ter deixado o vilarejo. Culpa o marido, mas é contra Thomasin, a filha formosa, que seu rancor realmente se volta.

Thomasin é a personagem central do enredo e, como Robert Eggers nos confirma em entrevista exclusiva para Rocinante, o filme pode ser lido, em certa medida, como uma narrativa de formação: a história de Thomasin, abarcando o percurso da personagem desde a obediência absoluta ao código patriarcal da família puritana, passando pela descoberta de dimensões ocultas da alma – a revolta e o desprezo pelo pai, por exemplo –, até o rompimento com a ordem e a autoafirmação pela entrega voluntária às forças transgressoras da floresta. Esse é o arco da personagem. O filme como que prepara Thomasin para ser oferecida como vítima sacrificial, mas ela inverte o desfecho, abraçando a transgressão.

Embora Thomasin seja essa figura central cassino, há uma simetria e uma tensão – também sexual – entre ela e Caleb. Numa cena na beira do rio, enquanto Thomasin lava as roupas do pai, Caleb a observa de longe; como fizera algumas cenas antes, enquanto ela dormia, fita de soslaio o seios da irmã. O desejo é o elemento eruptivo, indomável, da alma humana. Um dos momentos mais intensos do filme é a cena de tentação e queda de Caleb na floresta. A bruxa lhe aparece sob o disfarce de uma dama gótica estonteante; o adolescente caminha lentamente em direção a ela, o rosto desfigurado pela culpa. Não consegue resistir. Todos esses elementos – tanto o motivo da bruxa disfarçada quanto o tema da tentação e da culpa – são elementos inteiramente convencionais, clichês mesmo, e isso só revela a força evocativa de A Bruxa, que regressa a temores primordiais e nos faz vivenciá-los como se fosse nosso próprio pesadelo.

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A simetria entre Thomasin e Caleb, na verdade, é uma simetria de opostos: Caleb não se entrega voluntariamente; é dobrado pelo desejo – a cena com a bruxa não é de formação, mas de regressão: caminha para o beijo com um aspecto infantil e atormentado. Já a cena no leito de morte é ambígua: pode ser que esteja vivenciando uma epifania, sendo acolhido de fato pelo amor de Cristo; mas também pode estar sendo usado como marionete num teatro maligno – o discurso com que interpela Cristo tem componentes eróticos, e os transes no momento de entrega da alma se assemelham a um orgasmo. É impossível saber se Caleb foi salvo ou não – o pai quer acreditar, mas Katherine duvida.

Já a entrega de Thomasin, ao final do filme, é convicta. Isso porque ela passa pelo processo de desencanto e libertação em relação ao código familiar e religioso e ao papel que lhe é imposto. Desencanto, porque a mãe e o pai se voltam contra ela; libertação, porque decide viver “deliciosamente”, como propõe Black Phillip. Nessa leitura, aliás, feminismo e satanismo dão-se as mãos. Para Jex Blackmore, do Templo Satânico, o filme de Eggers “apresenta uma declaração de independência feminina que tanto provoca a América puritana quanto inspira uma tradição de transgressão espiritual”. O momento crucial para transformação de Thomasin é, claro, o momento em que mata a mãe, em que rompe com código espiritual de maneira definitiva. Antes, há um momento emblemático: Thomasin observa o pai no meio da noite, implorando a Deus por salvação – William culpa o próprio orgulho, que os afastara do vilarejo, pela destruição da família. Fala diretamente a Deus, mas tudo o que recebe em troca é o silêncio absoluto – o silêncio do Deus bergmaniano. Em A Bruxa, Deus existe apenas na consciência moral dos personagens. O único agente sobrenatural são as forças demoníacas.

A leitura feminista e a leitura satanista, naturalmente, são apenas leituras possíveis. Há outros sentidos que podem ser enfatizados: a destruição do lar dos puritanos funciona, por exemplo, também como uma alegoria da vitória das forças naturais e dionisíacas contra o mundo humano das promessas e dos ideais que criam pontes entre as gerações. Thomasin, tendo penhorado sua alma, termina o filme desnuda, integrada ao círculo de bacantes infernais. Sorri, mas será essa de fato uma imagem de autoafirmação? Tendo testemunhado a morte do pai e assassinado a própria mãe, não é o retrato de uma psique em choque que se entrega à volúpia porque nada mais lhe resta? Digamos que a resposta depende de quantas costelas progressistas e quantas costelas conservadoras cada um tem dentro de si. Em todo caso, um dos muitos méritos de Eggers está no fato de que o filme não insiste mais do que o recomendável em nenhuma leitura – seu efeito perturbador, aliás, depende disso. Se gostarem de cinema, os satanistas, as feministas e os puritanos vão amá-lo.

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