Um olhar sobre outros
Maria Trika
A Vizinhança do Tigre (2014) representa um grande processo de olhar. Olhar que se aproxima, entrega-se ao fluxo dos dias, do que neles habita e, o que julgo mais crucial: um olhar que se soma a outros para se construir. Olhar próximo, que reflete grande liberdade de criação, dadas todas as forças que construíram o filme e uma real disposição ao deslocamento – algo que exige desprendimento, uma flexibilidade para constantemente se recriar e, principalmente, uma abertura para que novas coisas tenham espaço para se mostrar. Tal composição marcou o filme desde o início de seu processo de criação, tratando-se ele da representação constante de um percurso.
Affonso Uchoa começou a gravar o bairro Nacional, Contagem – MG, onde reside até hoje, por ter sido contemplado em um edital, para o qual tinha mandado um roteiro sem grandes pretensões. Assim, teve uma oportunidade de começar a fazer. De acordo com o próprio Affonso a história do Vizinhança do Tigre começa com a sua estranheza sobre o bairro onde mora: ele era de lá, mas, ao mesmo tempo, não era; era um deles, mas, ao mesmo tempo, não. Talvez isso tenha levado o filme a se constituir como algo coletivo.
Durante as gravações, foi conhecendo Aristides de Souza, Maurício Chagas, Wederson Patrício, Adílson Cordeiro e Eldo Rodrigues, que no filme se apresentam como Junim, Menor, Neguim, Adílson e Eldo, e foi a partir desses encontros que Vizinhança foi se fazendo mais presente no filme que estava por surgir. Os meninos obtiveram liberdade para criar, junto ao diretor, suas próprias narrativas, repletos de consciência do que faziam e sabendo para quem narravam, pois, creio que na relação que se estabeleceu ali não só a câmera exercia seu olhar sobre eles, como eles também se impunham sobre a câmera. Formou-se uma consciência mútua, fruto da liberdade regente que marcou o fazer do filme: as cenas eram criadas por e a partir de todos, do lugar e do momento. Dessa forma, se ampliou espaço para que a presença dos meninos se impusesse ali, assim como a dos elementos cotidianos, consequentes da própria presença do bairro. Como, por exemplo, na cena do “duelo” entre Junin e Neguim, quando a câmera se vira para o Neguim e ele continua sua fala, mas, dessa vez, olhando para câmera de uma forma que a ultrapassa. A cena se aproxima até nós, quase que nos inserindo, pois os personagens têm consciência que ao falar, o fazem não só para câmera, mas também para algo além.
O diálogo entre a câmera e os personagens se estabelece através de um ritmo próprio, que possibilitou a ambas as partes se desenvolverem de formas essencialmente diferentes. Os meninos se narram, são os personagens de suas realidades inventadas e, diante disso, a câmera se faz como parte do cotidiano, um cotidiano que se (re)cria a cada momento, como resposta aos movimentos dos corpos que se faziam presentes nele. A forma que a câmera conduz e acompanha o ritmo do filme gera um movimento inato, no sentido de nascer e se construir com o indivíduo. No caso, as cenas e os personagens delas. A câmera teve de acompanhar o momento presente e entender como compartilhá-lo. Creio que a força documental do filme esteja muito ai, nas cenas que nascem do momento, de um modo que nos integra. Os personagens comem mexerica, a câmera come com eles e nós também.
Ao acompanhar aqueles dias reais inventados e seus detalhes, como a presença da violência que se mantém todo o tempo no imaginário, percebemos uma presença que se manifesta naquelas narrativas que compõe o filme, a de uma história maior que se passa ali, uma que as palavras não dariam conta de representar. Tal presença me parece ser a própria realidade que transpareceu e serviu de base para as invenções. Realidade essa que, as vezes, é complexa demais para se mostrar em uma narrativa só.
O filme transborda e, diante disso, a montagem cria caminho para passarmos por ele. Caminho que se dá quase como em um gesto de amizade, de total lealdade, admiração e confiança no que ali tinha sido feito. Talvez a maior prova disso seja a cena final do filme (gravada no início de todo o processo, quando o filme ainda viria a ser o que se tornou, e que foi também a primeira cena do Menor): um grupo de meninos bem jovens descendo de skate uma ladeira, da qual não vemos o fim, embalados pelo som da gaita tocada por Eldo, como uma forma de despedida – e até mesmo mais do que isto: como uma forma de ressaltar a potência do devir que atravessa tudo ali.