Fábulas de além-mar
Thomas Lopes Whyte
Observações gerais:
“As histórias, personagens e lugares que serão narrados por Xerazade são uma versão ficcional de fatos ocorridos em Portugal, entre agosto de 2013 e julho de 2014. Durante esse período o país foi mantido como refém de um programa de austeridade econômica executado por um governo aparentemente desprovido de senso de justiça social. Como resultado, quase todos os portugueses se tornaram mais pobres.”
Os planos de austeridade em Portugal foram colocados em prática no ano de 2011, durante um processo deflagrado na administração do primeiro ministro Passos Coelho. A Troika, nome atribuído à política econômica sustentada pela tríade formada por representantes da Comissão Europeia, do Fundo Monetário Internacional e do Banco Central Europeu, consistiu em uma série de medidas de austeridade, que afetou principalmente a população das classes média e baixa.
Os três filmes que compõem As Mil e Uma Noites (2015), de Miguel Gomes, buscam representar, através de uma estrutura semelhante à do livro “As mil e uma noites”, a situação dos portugueses diante da crise, partindo-se quase sempre da observação aproximada, focada nos indivíduos. No entanto, é impossível não perceber a reverberação das ações e sentimentos dos personagens em um contexto social mais amplo e universal. É verdade que existem nuances que distinguem os três filmes, mas, apesar dos subtítulos que caracterizam minimamente cada uma das três partes, nota-se o mesmo tom melancólico, que serve como amarração para a representação de um país temporariamente apático e atordoado.
Em parte, o trabalho de pesquisa realizado por Miguel Gomes e sua equipe serve, dentre outras coisas, como um esforço jornalístico de trazer à tona histórias que não poderiam ser contadas através de veículos de mídia tradicionais. A escolha dos “causos” que ganham destaque no filme demandou um trabalho extenso de pesquisa na pré-produção e acabou gerando um enorme projeto com mais de seis horas de duração. Além do tempo dedicado ao desenvolvimento do argumento, o diretor contou com o apoio de três jornalistas, que ao longo de doze meses foram responsáveis por mapear e registrar situações absurdas que serviram de combustível aos filmes.
Apesar de os filmes não se fiarem tanto nos escritos árabes, é possível, com um pouco de imaginação e (por quê não?) algum critério, estabelecermos diversos diálogos estéticos entre eles. Talvez até menos por conta da óbvia semelhança estrutural e mais pelo caráter universal de ambas. A começar pelo formato da narrativa, que organiza os vários contos de maneira não linear, e sobrepõem as histórias, de forma a criar um efeito de camadas, que acaba acrescentando profundidade à narrativa. Basta, para isso, recorrer aos exemplos da Trilogia da Vida, realizada por Pasolini na década de 1970. A sua versão de As Mil e Uma Noites (1974), se comparada com seus outros dois filmes, Contos da Cantuária (1972) e Decamerão (1971), possui uma estrutura mais complexa e exuberante.
Essa escolha de montagem condiciona uma construção dinâmica de sentidos. Não na escala do plano, como acontece na montagem de Eisenstein, ou na escala radical do fotograma do cinema experimental. Aqui o convite à formulação desses outros olhares acontece com o entrelaçamento entre os contos diversos e a presença nem sempre constante de Cristina Alfaiate, que interpreta Xerazade. A aparente desordem parece acertada e até mesmo uma escolha segura, se compreendermos o filme como uma tentativa de capturar com mais precisão as impressões e subjetividades de um país inteiro. Tão variadas quanto as histórias são também os recursos cinematográficos utilizados em auxílio de cada uma delas, pois, tendo como núcleo central de linguagem as células formadas pelos próprios contos, as mini-narrativas acabam gozando de uma maior autonomia, contribuindo assim para um filme potencialmente mais rico.
Mas apesar dos esforços, é justamente nesse ponto que a direção escorrega. Vistas em sequência, a sensação que se tem é de que algumas partes menos inspiradas poderiam ter sido suprimidas durante a montagem. Alguns segmentos são demasiado longos e em alguns momentos duram mais que o necessário. A impressão que fica é de que existe um esforço não justificado para que as três partes do filme orbitem em torno dos 130 minutos. Mas, mesmo com essas questões, o filme consegue se segurar com suas 6 horas, mantendo o fôlego do início ao fim.
Assim como em A cara que mereces (2014) e Tabu (2012), Miguel Gomes apresenta um material repleto de gags e situações estranhas. Tenta, através de um humor bastante peculiar, diluir as barreiras entre ficção e documentário com um padrão que se repete ao longo dos três filmes. Em momentos nos quais é preciso recorrer a certo didatismo e expressar de forma mais clara as situações pelo ponto de vista do autor, Miguel Gomes procura provocar reflexões através de uma mise-en-scène mais trabalhada, ancorada em temas folclóricos locais, repletos de alegorias e metáforas. Esse é o caso, por exemplo, das histórias que se iniciam nas noites 437 e 484, respectivamente chamadas de “Os homens de pau feito” e “As lágrimas da Juíza”, em que o diretor acrescenta várias camadas farsescas a alguns dos segmentos, exagera na construção de seus personagens, diálogos e situações, de forma a potencializar o caos de sua sociedade em crise, no melhor estilo da tradição teatral portuguesa Gil-Vicentina.
Em oposição, outra estratégia recorrente é a utilizada para os segmentos documentais. Nesses casos o absurdo, ao contrário, surge do fato em si. O galo madrugador que cantava cedo demais, tornando-se personagem importante de um vilarejo, e o curioso campeonato onde se disputa qual tentilhão possui o canto mais singular são algumas dessas histórias, por si só espantosas e mostradas com um olhar objetivo e uma filmagem mais seca.
Uma das virtudes do filme como obra semidocumental é a captura de uma transformação social que parece levar o país rumo à informalidade, privilegiando-se acontecimentos que passam ao largo das grandes narrativas e desenlaces econômicos. Em contraste ao próprio projeto e sua megalomania, que resulta em mais de seis horas de película, a narrativa consegue ser sensível ao manter-se próxima o suficiente das pessoas comuns.
A ideia, entretanto não é, através das esquetes, estabelecer paralelismos utilizando-se de metáforas fáceis como em um simples jogo de espelhos. Existe um esforço conciliatório entre o real e o fantástico que possibilita a criação de uma urdidura onírica, sobre a qual se torna viável o desenvolvimento das várias tramas. Em alguns momentos, no entanto, somos arrancados desse terreno lúdico e chamados a vislumbrar, através das frestas geradas entre um plano e outro, situações reais de angústia sem o verniz da caricatura.
Observações Específicas:
As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto
O primeiro filme, como seria de se supor, serve como introdução, apresentando ao espectador a estrutura e temática da trilogia. É também o mais desordenado dos três e funciona como uma síntese de linguagem adotada no conjunto.
Logo no início, duas histórias transcorrem paralelamente, com a função de apresentar ao espectador um panorama geral da situação portuguesa. Durante esse prólogo, somos convidados a conhecer os trabalhadores de um estaleiro e a história de um homem que se dedica a erradicar uma espécie de vespa invasora. Os primeiros relembram com orgulho o tempo em que enviavam navios aos quatro cantos do mundo, um tempo visto através de uma lente nostálgica, quando se comemorava a partida de cada navio como uma celebração do ato de viver. E o segundo, apresentado como a personificação da informalidade gerada pela falta de empregos, é um engenhoso caçador de vespas, que se esforça para manter-se em atividade. O interessante aqui, através desses exemplos, é perceber o poder de ressignificação e transformação ocasionado pela precariedade, em que empregos, salários e até mesmo as celebrações rituais mais tradicionais têm suas dinâmicas alteradas.
Em seguida, num exercício metalinguístico, Miguel Gomes, consciente do seu papel de autor, se insere no filme e trava consigo mesmo uma batalha, ao encenar a angústia de tentar estabelecer o escopo de seu próprio trabalho. Tratar-se-á de um material com histórias bonitas, ou com verve militante, pergunta o diretor. Na impossibilidade de encontrar respostas, ele opta por deixar essas questões em aberto e, literalmente, foge do campo de filmagem. A partir daí, fica claro que, sendo parte da mesma sociedade aturdida que pretende filmar, Miguel Gomes se afasta da posição de comentarista e se isenta da responsabilidade de apresentar soluções e determinar caminhos. Estabelecendo, mesmo que de forma imprecisa, a moldura na qual seu material estará contido.
De forma análoga, é interessante observar que na narrativa que se passa durante a noite de número 602, em uma das passagens mais notáveis do livro, Xerazade conta ao rei sua própria história e passa, a partir daí, a assumir um duplo papel, tornando-se narradora e ao mesmo tempo personagem. Como observado por Jorge Luís Borges, abrem-se, nesse momento, possibilidades tão sofisticadas quanto angustiantes, que atribuem à narrativa uma leitura que vai muito além das páginas que a contêm. Uma essência infinita e circular, conveniente à própria estrutura do filme, que a partir dessa abordagem consegue concatenar uma miríade de histórias portuguesas, ao mesmo tempo específicas e abrangentes.
Logo em seguida, o filme assume um tom mais burlesco com as histórias bem humoradas “Os homens de pau feito” e “O galo madrugador”. Repletos de metáforas, os dois contos mostram, cada qual ao seu modo, as farsas que se apresentam com mais força em situações de crise. Em “O banho dos magníficos” que arremata essa primeira parte, o arco desenvolve-se do absurdo em direção à mais massacrante das realidades impostas pela crise. A história se inicia no estômago de uma baleia e, mais ao final, de forma direta, através do depoimento de cidadãos comuns, o espectador é colocado frente a frente e sem nenhum artifício, com as consequências mais cruéis das políticas de austeridade.
O Volume 1 funciona como um laboratório onde Miguel Gomes opta por levar suas experiências e neuroses ao limite. Talvez por isso, como parte de um processo mais pessoal, o primeiro volume seja confuso e um pouco perdido em sua proposta, problema que o diretor resolve parcialmente com os depoimentos no final do longa.
As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado
O Volume 2 é estruturalmente o mais simples e divide-se em três histórias independentes, caracterizadas pelo caráter mais ficcional, se comparado ao restante dos filmes. Talvez por ser menos fragmentado, é possível observar uma direção mais precisa, um controle maior dos elementos da mise-en-scène e enquadramentos mais apurados – em especial, durante o primeiro terço do filme, na crônica da fuga de Simão sem tripas. O Anti-herói Simão, uma versão mais crua do ermitão homônimo de Luís Buñuel, é acossado pela polícia e, em seu isolamento, passa o tempo se deslocando por paisagens idílicas no interior de Portugal, filmadas em belíssimos planos gerais.
Na segunda história, “As lágrimas da Juíza”, uma das mais interessantes do filme, o teor temático passa a ser preponderante e os recursos cinematográficos mais simples. Com uma proposta rica de figurino e criação de personagens extravagantes, o diretor propõe um mapeamento da contravenção e os limites da legalidade. É possível haver julgamento moral em circunstâncias cingidas por misérias? Qual é a parcela de reponsabilidade que cabe a cada um? Mantendo-se fiel à estrutura do livro, as histórias se sobrepõem e formam, nas palavras da juíza que conduz o caso, um rosário de desgraças.
Não menos peculiar é a história dos donos de Dixie, cachorrinho que atua como um álibi, para justificar a presença de uma câmera voyeur, que nesse terceiro segmento se esforça em captar as reações imediatas daqueles mais afetados pelas políticas de austeridade. Enquanto as desventuras do cão vão sendo contadas, o diretor aproveita para explorar o ambiente ao redor de Dixie, revelando a rotina dos habitantes de um conjunto habitacional de baixa renda. Ao definir esse microcosmo sobre o qual se debruça para desenvolver seu estudo etnográfico, Miguel Gomes cria uma rede secundária de histórias autossuficientes, que poderiam até mesmo ser exibidas como um média metragem independente.
Em “O desolado” o ponto de vista sofre alterações constantes e se assenta gradualmente no decorrer das três passagens. O filme começa com uma câmera afastada, registrando as ações de forma mais irrestrita e contemplativa; aproxima-se, no segundo ato, de uma escala humana e passa a assumir um posicionamento quase subjetivo, ora como espectador no anfiteatro, ora na posição da Juíza, interpretada de forma muito competente por Luísa Cruz, e na parte final se posiciona próxima ao cãozinho Dixie, que serve como fio condutor desse último ato.
No segundo volume, mais importante do que esmiuçar o passado ou os traços psicológicos dos heróis é registrar a impotência de mulheres e homens frente aos seus próprios destinos, experimentar a tragédia da crise e da inevitabilidade do sofrimento, com uma trama que começa mais devagar em seu conjunto e se desenvolve em direção ao efeito catártico causado pelo suicídio do casal dono de Dixie. Se menos original que as outras duas partes, o Volume 2, tem por mérito a precisão e segurança com que foi concebido, o que o torna senão melhor, pelo menos mais fluido que os outros dois volumes.
As Mil e Uma Noites: Volume 3, O Encantado
Com direito a Novos Baianos, o terceiro volume começa com uma digressão: mostra, logo no início, uma Xerazade livre, mas resignada e ciente do tamanho de sua sina. Em seguida, voltamos aos trilhos com o conto da noite 515. “O inebriante coral dos tentilhões”, uma das mais melancólicas histórias, representa homens que, à margem da lei, capturam e treinam pássaros para participar de concursos de canto. Assim como os treinadores Chico Chapas e Seu Quitério, cada vez mais cansados, os próprios animais parecem impelidos ao canto obscuro do esquecimento. São o retrato desbotado de um país que já teve tempos melhores e agora precisa fazer-se ouvir, mesmo que à custa de um registro precário dos cantos antigos dos tentilhões, preservados apenas em cds e fitas cassete.
A última cena do filme é bastante emblemática: Chico Chapas, como um verdadeiro herói de um western de John Ford, caminha em direção ao horizonte, rumo ao crepúsculo – um sujeito combalido, perdido em sua solidão e retrato de um presente anacrônico. Os últimos enquadramentos e o ritmo em ramerrão desse último trecho enfatizam a conclusão reticente da obra, situando-a como uma trilogia acabada somente enquanto película, mas com um conteúdo em construção constante. Exatamente como a última noite de histórias entre Xerazade e o rei Xariar, onde o número primeiro, que sucede o milésimo, encontra sentido em uma cosmovisão de contemplação do infinito.
Conclusão:
As Mil e Uma Noites é uma história de vida e morte. É a valorização máxima do ato de contar, o lugar em que o fluxo narrativo das fábulas confunde-se com a própria existência e passa a ser uma função tão vital quanto comer e respirar. Na falta de perspectivas e sem uma saída clara, o povo português parece coexistir com uma espécie de miséria que vai muito além da questão material. Possuem uma aparente aptidão para a sobrevivência, que aqui é explorada principalmente através da capacidade de fazer rir, e de forma tão engenhosa quanto os vizires, comerciantes e califas do livro, os portugueses, à sua maneira, vão se estabelecendo em meio às incertezas e desamparo.
Como um bom fado, As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes é um tributo à tristeza, uma elegia que coloca em perspectiva o futuro confrontando-o com o passado. Um conto em suspensão em que se espera, quem sabe, a redenção do rei Xariar.