João Campos
ASSUNTINA/FILME/POLÍTICO é um dado histórico, é a história em ação, em movimento contínuo, dialético, num fluir sempre, ou seja, a história sendo vivida à medida que é feita. Isso é Assuntina, um filme que é feito e vivido a cada novo momento.
(Luiz Rosemberg Filho)
I
Assuntina das Amérikas (1976) é um grito que ressoa até os dias de hoje. Um filme assumidamente político, feito por um cineasta assumidamente político. O filme foi lançado em 1976, em pleno governo Geisel (1974-1979), num momento de transição lenta e gradual rumo ao fim da ditadura militar brasileira. Apesar dessa pequena abertura – ou germinal ruptura – iniciada no governo de Ernesto Geisel, o regime ditatorial ainda persistia, assim como os truculentos atos soberanos que marcaram esse regime. Dois exemplos podem ser citados, a criação da Lei Falcão em 1976, que limitava as propagandas eleitorais, constituindo uma forma de censura; e o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975.
Após os sombrios anos do “milagre econômico” chefiados por Médici, a sociedade brasileira chafurdou-se no mundo espetacular do consumo, principalmente de imagens. Assuntina das Amérikas surge nos interstícios de um bombardeio de imagens publicitárias, imagens-consumo, imagens de Hollywood ou, nos termos do filme, imagens do “sistema de supermercado”. Assuntina das Amérikas é um balaço contra um universo imagético que Rosemberg Filho considerava empobrecido, envelhecido e falido. É uma “bandeira rota” no contexto da “falência transatlântica da cultura ocidental”. Nas palavras do cineasta:
O cinema é uma bandeira rota, que continuará sempre rota, mas que é preciso empunhar, mesmo à custa do sacrifício de não fazê-lo. E se a bosta colorida não presta, então façamos o vômito preto e branco que ao menos incomoda (palavra-chave) a apreciação da bosta colorida[1].
Um cinema do asco, uma tomada de posição estética e política, um foco de rebelião, fortemente carnavalizada, em relação à ditadura militar e à alienação causada pelo consumo de massa, sob a égide dos EUA. Assuntina das Amérikas pode ser tudo isso e mais. Em contraposição à “bosta colorida” que é produzida no “sistema de supermercado”, Rosemberg Filho “vomita” uma obra engajada, uma colagem de imagens potentes, cujo simbolismo apresenta-se, tal qual um rizoma, como um mundo simbólico aberto, em que o espectador é levado a tomar uma posição diante da tela, buscando, entre essas imagens, performances e provocações, sentidos que são, simultaneamente, estéticos e políticos.
Crítico voraz do cinema de entretenimento, Rosemberg Filho produz uma obra fortemente ensaística e reflexiva, cujas performances se atropelam numa mise-en-scène rizomática, construída através de colagens de planos aparentemente desconexos. De fato, a obra não mantém uma linearidade narrativa, mas Rosemberg Filho utilizou ostensivamente o recurso da colagem para montar um filme que pressupõe certo talento interpretativo de um leitor atento e, de certo modo, independente. Somos levados, portanto, a performar diante da tela, buscando sentidos fugazes, porém potentes.
II
Fazer cinema é um ato político. Essa disposição se infiltra por toda obra de Rosemberg Filho. Em Assuntina das Amérikas, somos bombardeados logo no início do filme não por um manifesto, mas por uma declaração. Logo de cara, Rosemberg Filho nos apresenta o argumento do filme – mas ainda não sabemos como ele transformará essa declaração em mise-en-scène, força primordial da obra. Transcrevo a declaração abaixo:
Esse filme nada mais é do que um momento de reflexão, uma reflexão crítica dos anos 70, uma imagem perdida, uma definição da imagem, uma imagem cósmica frente ao sistema de imagens fabricadas. Uma imagem fabricada é igual a centenas de pessoas que vivem enganadas pela realidade. A realidade da imagem. O som é uma imagem auditiva. Já o supermercado é uma imagem falsa do progresso. Vocês vivem 24h as imagens falsas e contraditórias do sistema de supermercado.
No trecho acima, o autor salienta a alienação que envolve o cotidiano do brasileiro, sob o signo das “imagens falsas e contraditórias do sistema de supermercado”. Contudo, o filme seria um momento de reflexão. Podemos considerar que esse ensejo, marcadamente liminar, é capaz de contribuir para a reinvenção da realidade crua. A reflexividade é amplificada pelo caráter carnavalizado e performático do filme, que eleva esteticamente realidades sociais através do delírio e da experimentação. As “imagens cósmicas” de Assuntina das Amérikas são dados históricos performados, re-apresentados através de imagens gozadas e críticas. Com efeito, a crítica de Rosemberg Filho é, simultaneamente, burlesca e provocadora.
Nesse sentido, Assuntina das Amérikas é uma obra ambígua, entre o sarcasmo e a acusação. Emprego o termo “carnavalização” no sentido em que Bakhtin conceituou: uma espécie de crítica pelo deboche, gozação ou riso. As relações de mise-en-scène presentes na obra, marcadamente teatralizadas, através das quais os gestos, falas e expressões adquirem um peso propositalmente exagerado e burlesco, contribuem para a carnavalização, formando um grande conjunto de deboches em meio ao horror da repressão ditatorial e da alienação do consumo de massas, ambos fortemente influenciados pela presença do capital estrangeiro na emergente – e “miraculosa” – economia brasileira (tema que o diretor explora também em “Crônica de um industrial”).
Como comentei acima, considero o filme um universo simbólico aberto, um conjunto rizomático de imagens-manifesto. O rizoma não se começa nem se conclui, ele é um sistema conceitual aberto, cujo movimento serpenteado nos conduz, ao menos no filme, a um percurso tortuoso, povoado por desvios delirantes. Por isso, Assuntina das Amérikas pressupõe uma imersão analítica, de modo que somos convidados a mergulhar nele, não de cabeça, mas de barriga. Temos que entrar no jogo, permitir que essas imagens caóticas nos machuquem – a ferida, no fim das contas, é proveitosa.
Em Assuntina das Amérikas, a colagem exerce um papel fundamental. Com efeito, podemos considerar a obra um filme-colagem, mas não qualquer colagem. Essas insinuações nos levam à figura do bricoleur. Como nos ensinou Lévi-Strauss, o bricoleur dispõe de uma matéria-prima escassa, de certa maneira limitada e, munido de uma criatividade fervilhante, recombina, justapõe e sobrepõe elementos para, finalmente, inventar algo novo. Curiosamente, o cinema que cineastas como Rosemberg Filho, Candeias e Sganrzela propunham era comumente chamado de cinema de invenção.
Colando imagens e sons tensionados ou conflitantes, Rosemberg Filho deixa claro o caráter crítico de seu filme. Na mise-en-scène, uma euforia cômica do carnaval tropical se mistura ao horror da violência de um país assolado por um regime ditatorial obtuso. Sensualidade, diversão, tiros de metralhadoras, sangue, sirenes de ambulâncias e viaturas de polícia se misturam numa dialética audiovisual em curto-circuito. A vida embotada do burguês carioca, da malandragem boêmia, se justapõe a imagens e sons de pessoas agonizantes, índices da violenta repressão ditatorial, cuja realidade é ofuscada pelo lazer burguês e sua ampla variedade de entretenimentos de massa – o brilho das imagens de Hollywood, do “sistema de supermercado”, embota a visão, cumprindo uma função alienadora. Considero esse proposital descolamento entre imagens e sons uma riquíssima fonte de potência estético-política da obra.
III
Assuntina das Amérikas é uma obra construída através de formas inacabadas e performances em processo, é “um filme que é feito e vivido a cada novo momento”. Com efeito, a ressonância é uma boa metáfora para pensarmos o filme. A mise-en-scène ressoa, como ruídos que nos incomodam, num estranho movimento de atração e repulsão.
Estamos diante de um filme crítico e anômalo, em que todos estão fantasiados no carnaval sem fim do cinema, festa que eclipsa os horrores dos porões da ditadura. De fato, todos estão fantasiados no “mundo animado do cinema”, do entretenimento e do lazer burguês. Isso nos leva ao meu último comentário.
A bomba de Rosemberg Filho consegue trazer, brilhantemente, conflitos e desigualdades sociais da sociedade brasileira para a mise-en-scène, numa estética de choque, incômodo e asco. Assim, forma e conteúdo se embaralham –e será que alguma vez já estiveram claramente separadas? –, de modo que o contexto social em que a obra foi produzida, marcadamente conflituoso, é performado numa mise-en-scène também conflituosa.
Para finalizar, cito uma frase presente no filme que nunca me escapará à memória: “todo mundo faz cinema, mas poucos fazem filmes”. Essa sentença, um tanto axiomática, condiz com a forma como Rosemberg Filho enxerga o cinema. Este deve ser reflexivo, crítico, dialético. Assuntina das Amérikas nos tira de uma zona de conforto, do “lago azul da tranquilidade latina”. É um “vômito preto e branco” que nos fere, desloca nossos olhares, convida a nossa atenção para imagens e sons desconcertantes. Compartilho dessa perspectiva, pois o cinema, acima de tudo, possui a honra de ser fonte de sucessivas experiências de estranhamento, deslocamento e transformação subjetiva e, não obstante, compartilhada. Nesse terreno, o papel da crítica é nobre, assim como o do cineclubismo. Honremos obras como Assuntina das Amérikas com reflexões sempre inovadoras, pois o contexto atual nos solicita, antes de mais nada, um olhar apurado para as imagens e ruídos desconcertantes de um mundo em colapso.
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[1] As citações presentes nesse texto foram retiradas do texto “Assuntina das Amérikas ou tudo vai bem no mundo animado do cinema”, de Luiz Rosemberg Filho.