Na Missão, Com Kadu (2016), de Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito

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A imagem pode transformar?

João Campos

A tarefa da arte não é nos encarcerar num mundo fechado. Nascida das coisas, ela nos reconduz às coisas. Ela se propõe menos a purificar, ou seja, a extrair delas o que se dobra a nossos cânones, do que a nos reabilitar e conduzir incessantemente a reformar esses cânones.

(Éric Rohmer, “Le goût de la beauté”) [1].

I

Na Missão, Com Kadu (2016) nasce de um processo de imersão de seus realizadores no contexto de luta pela moradia da ocupação Izidora, localizada na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. Considerando que estamos diante de um filme assumidamente militante, duas ou três palavras devem ser ditas sobre os conflitos fundiários que alimentam o atual quadro de colonização do espaço e da moradia e, por conseguinte, o filme.

Segundo Raquel Rolnik (2015), estamos diante de uma verdadeira “guerra dos lugares”, através da qual o espaço urbano e a habitação são tomados não mais como bens comuns, mas como fontes de renda. Essa relação resultou numa ascensão de lutas urbanas por moradia e ocupação de praças, ruas e demais territórios em disputa imobiliária, seguida de atos contra o capitalismo financeiro, contra a privatização do espaço público e a gestão empresarial das cidades. Nesse ínterim, ocorre um boom de ocupações urbanas, temporárias e permanentes. De acordo com a urbanista:

(…) estamos vivendo uma verdadeira era de rebeliões, resistências e ocupações, que acontecem simultaneamente em vários pontos do planeta. O paradoxo da globalização econômica neoliberal é justamente enfraquecer e ativar as forças sociais de resistência simultaneamente.[2]

Em contextos de conflito, o uso do audiovisual como arma sensível é crescente, seja nas ocupações urbanas, no mundo ameríndio ou em sociedades tradicionais. O fenômeno do cinema indígena contemporâneo atesta a veracidade e a potência desse novo cinema da urgência, pautado pela necessidade de tornar visível o ponto de vista dos invisíveis. Desse modo, o documentário tem exercido papel importantíssimo na sobrevivência desses pobres e desapossados do mundo, fazendo surgir diversas mise-en-scènes dos vagalumes[3] brasileiros, o que pode indicar um processo positivo tanto para a democracia quanto para a arte.

Na Missão, Com Kadu surge no âmago desse conflito e dessa ascensão de cinemas das minorias de poder, no olho do furacão. Primeiramente, as imagens gravadas por Kadu foram veiculadas como provas materiais do despreparo e violência da PMMG, o que gerou um mandato de segurança do STJ, impedindo o governo do estado de realizar o despejo da ocupação. A justificativa era simples: a partir das imagens, decidiu-se que a polícia não tinha condições de efetuar o despejo sem matar alguém.

A proposta de fazer um filme a partir dos dois planos-sequência de Kadu veio depois de um agenciamento pragmático destes, sendo possibilitado pelo vínculo criado entre militantes interessados pelo audiovisual e moradores da ocupação, principalmente lideranças locais. Estamos diante de um filme de guerrilha, que constrói sua força na evidência dos corpos que denunciam e lutam. A partir deste, podemos pensar o lugar do cinema militante (seja ele qual for) no campo cinematográfico brasileiro (e, obviamente, para além dele). Isso nos leva à diversidade de espaços sobre os quais o filme exerce influência estética e política, dando a ver imagens de uma história que deve ser contada.

II

Para além do panfletário ou de termos como “filme de palanque”, Na Missão, Com Kadu pode ser interpretado como uma potente possibilidade estética no mundo contemporâneo. No filme, principalmente nos dois planos-sequência filmados por Kadu durante a manifestação em que se encontrava,as imagens gravadas “encarnam” um contexto de luta contra a precarização da moradia e da vida, convertendo uma pessoa – e suas imagens convulsivas – não apenas em porta-voz de uma comunidade ou mártir, mas num personagem vibrante, força motriz de um filme transformador. Neste, somos transportados a um campo de batalha, cuja visibilidade é marcada pela fragilidade do quadro, a velocidade do movimento da fuga e a consciência – de Kadu – do devir estético e político de suas imagens – não é à toa que o filme circulou tanto no âmbito judiciário quanto artístico, no STJ e em festivais de cinema Brasil afora.

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Segundo a filósofa francesa Marie José-Mondzain[4] – que esteve nessa edição do forumdoc.bh, comentando uma sessão especial do filme L’Ordre (1973), de Jean Daniel Pollet –, “a única imagem que possui a força de transformar a violência em liberdade crítica é a imagem que encarna”. Diferentemente de “dar corpo”, encarnar é, segundo a filósofa, um processo que “dá carne”. Nas palavras da autora, encarnar é “operar na ausência das coisas. A imagem dá carne, isto é, carnação e visibilidade, a uma ausência, mediante uma diferença intransponível relativamente àquilo que é designado”. As imagens produzidas por Kadu na manifestação operam, segundo o argumento aqui esboçado, sob essa lógica: ao virar imagem, o conflito que irrompe na passeata filmada pelo personagem do filme ganha carne e visibilidade. A violência do Estado, através da mórbida figura coletiva da Polícia Militar (agressores) e do governo de Minas Gerais (mandante) se converte em reflexão, em resistência.

Através do olhar do espectador, surge a possibilidade de relacionar o visível do confronto direto e o invisível de um vínculo de luta e resistência em processo, constituindo, além de uma pluralidade de temporalidades[5], três instâncias indissociáveis à imagem encarnada: “o visível, o invisível e o olhar que os coloca em relação”.

Desse modo, o confronto filmado por Kadu, ao tornar-se imagem, instaura uma distância reflexiva, transformando a violência dos estabelecidos e a resistência dos desapossados em liberdade crítica e visibilidade de uma luta, de uma comunidade, de uma existência. Vejo esse intervalo como a distância do cidadão que lê e interpreta imagens, produzidas por si e pelos outros que o interpelam. Hoje, esse processo é importantíssimo, pois define novos caminhos para a educação e cidadania. Defendo, como quis Jean-Louis Comolli, “a continuação do mundo com o cinema”, o cinema que mergulha e transforma o nosso mundo sensível, e não a manutenção de um nicho artístico pautado por uma cisão estética elaborada por meia dúzia de críticos e curadores consagrados. Em outras palavras, o cinema não se resume ao espetáculo das formas – a evidência de uma presença urgente também merece espaço e valorização. Dito isto, prefiro colocar este filme num lugar intermediário ou liminar, entre a denúncia, a declaração, o manifesto e a arte: esse é o lugar da reflexão e da transformação do olhar e, portanto, do cinema.

III

Antes do fim, gostaria de mencionar que Na Missão, Com Kadu está, ao lado de obras como Martírio (2016) e A Cidade Onde Envelheço (2016), entre os maiores destaques do forumdoc 20 anos. Esse filme nos faz refletir sobre o poder da imagem cinematográfica em contextos de conflito, além de animar engajamentos num mundo cada vez mais colapsado.

Hoje, assistimos a uma bela ascensão desse novo cinema da urgência –protagonizada pelo cinema indígena, mas não sendo, obviamente, exclusividade deste – realizado pelos que filmam sob e sobre a iminência de perder o chão onde pisam. Considero esse tipo de cinema militante rico, tanto do ponto de vista estético quanto político. Ao dar a ver os movimentos dos corpos invisibilizados pelos holofotes do capitalismo neoliberal, aqueles que filmávamos – e que agora se filmam – produzem uma nova história, cuja força primordial vem da evidência do momento, possibilitada pelo cinema documentário.

Seria proveitoso buscar nessas imagens a beleza e a potência que nos permitam, evocando novamente a epígrafe deste texto, uma recondução aos nossos próprios cânones artísticos. Se aceitarmos a premissa de que a arte deve nos reconduzir às coisas do mundo, devemos dar mais valor a esse cinema que, além de apresentar a novidade de uma diversidade de automise-en-scènes, anima engajamentos e alimenta um imaginário cada vez mais combativo. Ao deslocar o visível e o invisível, filmes como Na Missão, Com Kadu contam a história da “sobrevivência dos vagalumes”.

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Notas:

[1]Trecho retirado do livro “A mise-em-scéne no cinema: do clássico ao cinema de fluxo”, de Luiz Carlos Oliveira Jr.

[2]Trecho de “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças”, de Raquel Rolnik.

[3]Todas as referências a vagalumes presentes nesse texto dizem respeito ao livro “Sobrevivência dos vagalumes”, de Georges Didi-Huberman. Propondo uma perspectiva alternativa ao pessimismo pós-guerra de Pasolini e Agamben, Didi-Huberman se apropria da metáfora da morte dos vagalumes feita por Pasolini, lançando luz no que, para este, estava extinto. Podemos interpretar os vagalumes de Pasolini como a diversidade cultural, liberdade crítica, e resistência festiva que animavam os corpos apesar da violência do fascismo e que, no contexto da dominação cultural norte-americana, se extingue. Ao invés de alimentar uma visão apocalíptica do devir da humanidade, Didi-Huberman se pergunta: “Os vagalumes desapareceram todos ou eles sobrevivem apesar de tudo?”, pois “declínio não é desaparecimento”. Creio que vivemos um momento de fortalecimento da diversidade e resistência no audiovisual nacional e, portanto, um período importante para a “sobrevivência dos vagalumes”.

[4]Os trechos citados da autora são do texto Uma imagem pode matar?.

[5]Essa questão foi comentada por Paula Kimo, em seu texto sobre o filme, publicado no catálogo do festival: “Na Missão, Com Kadu convoca três distintas temporalidades que tornam visíveis a luta das Ocupações de Izidora e a missão que o filme mesmo tenta cumprir” (p. 259). Seriam elas: o “tempo da comunidade”, o “tempo do conflito” e “o tempo mesmo do fim, o tempo da morte onde as imagens não são visíveis, tampouco a esperança” (p. 259-260). Não tratarei essas questões aqui. Contudo, convido-os à leitura do texto, intitulado “Olha a nossa situação aqui!: nós, espectadores, na missão com Kadu”.