Thomas Lopes Whyte
Os casos de:
Duplo Suicídio em Amijima (1970) de Masahiro Shinoda
Marat/Sade (1967) de Peter Brook
A viagem do capitão Tornado (1990) de Ettore Scola
“No teatro, a palavra conduz à ação, enquanto a óptica possui importância secundária. No cinema, o primado cabe à imagem e a parte falada e sonora aparece em segundo lugar. Fico tentado a dizer que um cego não perderia dinheiro indo ao teatro, e um surdo, ao cinema.”
René Clair
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Evidente que teatro e cinema não são, necessariamente, antagônicos, embora seja verdade também que tenham desenvolvido, por muitas vezes, relações desarmônicas e parasitárias (basta lembrarmos dos velhos “filmes de arte” realizados no primeiro quarto do século passado). Dito isso, é preciso suavizar os contornos da declaração provocativa de René Clair e admitir que, de lá para cá, existiram vários bons filmes gerados a partir da experiência teatral: de Orson Welles, passando por Laurence Olivier e Sérgio Ricardo, até mais recentemente Roman Polanski e sua A Pele de Vênus (2014). Se para a apreciação de uma boa peça não são necessários os olhos e para um bom filme não é preciso escutar, é quase lógico que bons exemplares de filmes com características teatrais (e eles existem) devem ser capazes de sensibilizar tanto olhos quanto ouvidos. Palavra e imagem, à priori, beneficiam-se de um processo de cooperação, quando as virtudes de cada uma das partes são reconhecidas e exploradas.
Cabe aqui uma observação. A utilização corriqueira do termo “teatral” para designar uma categoria ou característica cinematográfica, geralmente, costuma referir-se apenas ao caráter histriônico e, às vezes, empolado do texto, com a máxima simplista de que o ator de teatro exagera para se fazer ver e ouvir. As conexões entre um campo e outro possuem uma natureza mais complexa e, definitivamente, não são essas as características que determinam a essência teatral. A proposta do ensaio que se segue é discutir um pouco as ricas relações entre algumas vertentes teatrais, como o Kabuki, Bunraku, a Commedia dell’arte e o teatro épico, e suas variantes cinematográficas, realizadas também em contextos diversos.
Duplo Suicídio em Amijima
De uma forma geral, analisar uma obra gestada em contexto tão distinto como o japonês do século XVIII não é uma tarefa simples. Existe algo de universal na imagem que torna o cinema uma plataforma mais aberta a interpretações estrangeiras, mas, à medida que nos afastamos da concretude apreendida pelo globo ocular, as impressões tendem a se esfumar e exigem do observador uma sensibilidade cada vez maior. Partindo-se desse ponto de vista, o teatro ocupa uma posição intermediária entre cinema e literatura, por ainda carecer de um meio físico para existir e, no entanto, ser quase indissociável do texto, com suas premissas linguísticas, filosóficas e culturais.
“O Duplo Suicídio em Amijima” é uma peça escrita pelo dramaturgo Monzaemon Chikamatsu, em 1721, para o Bunraku, tradicional teatro de bonecos japonês, que, em conjunto com o Kabuki, constituem as duas principais formas populares da dramaturgia nipônica. A história gira ao redor do relacionamento impossível entre Jihei, um comerciante casado, e Koharu, uma cortesã às voltas com um cliente vulgar que desdenha do amor entre ela e Jihei. Impedidos de se unir pela força de uma sociedade baseada em um rígido sistema de castas, os dois recorrem ao auto-sacrifício, na esperança de terem seus sofrimentos abrandados.
O tema do Shinju, o duplo suicídio amoroso, é recorrente nas narrativas japonesas e já foi amplamente explorado, tanto nos palcos quanto na tela. Como acontecia com a literatura pagã europeia, as peças japonesas serviam à população como uma válvula de escape, uma forma de viver no palco experiências alternativas àquelas possíveis numa sociedade baseada em rígidos códigos morais – no Japão, originadas ao redor da classe militar dominante. São frequentes nas narrativas de Kabuki e Bunraku os temas sobrenaturais, a frequente aparição de fantasmas vingativos, heróis lendários capazes de proezas sobre-humanas e, no caso do Shinju, as paixões arrebatadoras e impossíveis.
O Kabuki e o Bunraku
Para compreender o trabalho de Masahiro Shinoda e o diálogo existente entre seu Shinju e a peça que o inspirou, é necessário passar por alguns pontos gerais das expressões teatrais japonesas e entender um pouco de sua origem, forma e conteúdo.
O Kabuki e o Bunraku são formas de teatro populares e, ao contrário do aristocrático Nô, cuja origem remonta ao ambiente cortesão do período Muromachi, sempre estiveram associados aos bairros de classe mais baixa, localizados próximos a prostíbulos e casas de chá. Exatamente por isso, ao contrário do que se pensa, ambos passaram por radicais transformações ao longo de suas existências, geralmente demandadas pelo próprio público.O Kabuki, desde seu surgimento em 1603, com as apresentações da sacerdotisa Okuni, até seu declínio e estabilização no início do século XX, passou por inúmeras adaptações, que culminaram com a consolidação das convenções que conhecemos hoje. A partir da reabertura do país, na era Meiji, ao final do século XIX, o Japão passou a receber grande influxo de ideias externas, que, no campo teatral, coincidiram com o surgimento do teatro Shinpa, de tendências realistas, mais contidas e com enfoque nos dramas familiares, em oposição ao Kabuki. Após a Primeira Guerra, com a emergência de uma classe intelectual familiarizada com os movimentos europeus, surge no país uma ramificação teatral ainda mais alinhada ao ocidente. Baseado principalmente nas teorias e métodos do teatro de arte de Moscou, e também nas obras de Shaw e Ibsen, cria-se o Shingeki (Teatro Novo). Esse novo e fervilhante cenário artístico acaba por decretar o fim do Kabuki enquanto atividade economicamente viável. Como forma de assegurar sua vitalidade (e também a do Bunraku e de outros fazeres tradicionais ameaçados pela abertura do país), criam-se, ainda no início do século, políticas de preservação e valorização do patrimônio imaterial/cultural japonês.
O Bunraku, por sua vez, é uma espécie de espetáculo total, constituído por três partes indissociáveis: o canto, relacionado a uma espécie de narração, chamada Joruri, e entoado pelo Tayu; o acompanhamento musical do Shamisen, cuja função é marcar o ritmo da ação; e, por último, a performance dos bonecos, operados geralmente por três manipuladores, chamados de Ningyōzuka, responsáveis por criar de forma coordenada a movimentação das figuras em cena.
A organização do drama não é exatamente escalar como no teatro clássico ocidental. Os atos, usualmente, são nucleados, possuem certa autonomia. De uma forma geral, existe no texto um equilíbrio instável, semelhante àquele atingido no teatro de Shakespeare e Calderón, além da forte presença de ambivalências, decorrente da diluição dos gêneros dramáticos. A delimitação das características cômico-trágicas acontece internamente, através da construção arquetípica dos personagens, seja pela maquiagem expressiva do Kabuki (Kumadori) ou pela cabeça e vestuário dos bonecos no Bunraku, que obedecem a uma grande quantidade de convenções construídas ao longo dos séculos.
Estruturando-se a partir de repertórios fixos há décadas, as obras não primam, necessariamente, pela novidade, pela ideia de surpresa e nem mesmo pela catarse desencadeada no progredir dos atos. O deslumbramento, apesar de constante, é dissipado e o sucesso que separa uma peça e outra depende do virtuosismo ocasional de atores e músicos.
O filme e a Nuberu Bagu
É interessante compreender como se dá a relação entre a peça de Chikamatsu e o filme dirigido por Shinoda, principalmente em relação às especificidades da arte dramática japonesa. A opção pelo Bunraku não passa apenas pelo campo temático: mais do que isso, o componente teatral do filme reflete-se em toda a estrutura do longa.
Não é possível determinar com precisão pontos em comum entre os cineastas da geração de Shinoda, que, ao contrário dos jovens franceses da Cahiers du cinéma, não possuíam a mesma autoconsciência e coesão. No entanto, o heterogêneo grupo japonês, apelidado pela imprensa de Nuberu Bagu, compartilhava um sentimento de repúdio pelo sistema vigente imposto por grandes estúdios. A criação de pequenas produtoras e a absorção de práticas mais modernas pelas grandes empresas, que perdiam espaço para a televisão, deflagrou um processo de fortalecimento do cinema autoral e o surgimento de experiências cinematográficas cada vez mais estilizadas. Apesar disso e na contramão de alguns contemporâneos como Terayama, Hani e Yoshida, que realizavam um cinema mais experimental, Masahiro Shinoda preferiu manter um forte vínculo com as temáticas tradicionais do seu país, potencializando, no entanto, a violência gráfica de gêneros como o Jindaigeki. [1] De certa forma, o diretor trabalha em uma das zonas de maior pressão do cinema japonês, espremido na região fronteiriça delimitada pelos grandes artesões do Ancien Régime e o território em exploração dos novos códigos de conduta, da liberdade sexual, do feminismo e do culto à tecnologia.
Mas como equacionar o espírito rebelde da geração do sol com o peso da tradição de dois séculos e meio? No caso específico de Duplo Suicídio de Amijima (1970), existem algumas questões que parecem resolver, de forma brilhante, o problema do binômio tradição-inovação.
1º A contestação de um forte modelo cinematográfico de tendências realistas, chancelado pelos mestres das gerações anteriores, como Mizoguchi, Ozu e Naruse.
Apesar do início teatral, da figura do Benshi [2], da presença exclusivamente masculina na atuação [3] e de dever ao Kabuki seu primeiro grande cineasta, Shozo Makino, o cinema japonês logo reivindicou para si uma linguagem realista, oposta ao teatro, que vigorou por mais de 30 anos, pelo menos até o final dos anos de 1950, quando cineastas como Kô Nakahira e Nagisa Oshima começaram a se debruçar sobre os conflitos de sua geração, a partir, respectivamente, de Paixão Juvenil (1956) e Juventude Desenfreada (1960), que trouxeram a reboque uma ampliação no campo de possibilidades estéticas.
Vários foram os fatores que possibilitaram essa transição, protagonizada também pelo próprio Shinoda, além dos demais diretores associados hoje à Nouvelle Vague japonesa. Assim como nos Estados Unidos, o cinema japonês era controlado por poucos grandes estúdios, responsáveis não só pela produção, como também distribuição e exibição dos filmes. Até então, pouquíssimas experiências haviam conseguido se livrar do rígido sistema comercial imposto, principalmente, pelas gigantes Nikkatsu e Sochiku, com exceção talvez da efêmera Prokino na década de 1920 e de pequenas empresas que produziram poucos títulos antes de serem esmagadas pelas concorrentes.
Se por um lado a estabilidade oferecida pelos estúdios permitiu a consolidação dos gêneros cinematográficos, por outro, o cinema e os espectadores começaram a exigir cada vez menos um do outro. Para cada obra-prima realizada por Ozu ou Naruse entre os anos 1930 e 1960, existem dezenas de Shomingeki [4] medianos e ruins. Essa forte política comercial consolidou a intensa segmentação de gêneros, que se adaptavam, de um lado, a camadas muito específicas do público e, de outro, a diretores que se especializavam em determinados tipos de filme. Assim como aconteceu com a Nova Hollywood, o flanco aberto pelo desgaste das velhas fórmulas, que já não dialogavam com os jovens criados à sombra das bombas atômicas, possibilitou nos anos de 1960 e 1970 o surgimento de novos gêneros e, no caso da maior parte dos filmes dos autores da Nuberu Bagu, o aparecimento de obras inclassificáveis.
2º A subversão, mesmo que sutil, de algumas das regras do Bunraku, tornando-o impuro através do próprio cinema.
No caso de Duplo Suicídio em Amijima, parte da potência do longa espelha a profunda compreensão de Shinoda das técnicas envolvidas não só no teatro de bonecos, como também do Kabuki. Durante uma das cenas mais impressionantes do filme, Jihei, em um acesso de fúria, destrói o cenário, tornando ainda mais visíveis os mecanismos por trás da composição da peça filmada. O ator escancara as engrenagens do palco, mostradas de forma detalhada pela mudança constante do enquadramento e o dilatar sucessivo da ação através da câmera lenta. A cena é um dos únicos momentos do filme em que o personagem, esvaziado de qualquer resquício de racionalidade, passa a ser controlado pelos três Ningyōzuka [5]. Até então (e essa é uma diferença sútil, porém reveladora), as sombras humanas que se movimentavam pelo set não correspondiam exatamente aos titereiros do Bunraku. Apesar de usarem vestes semelhantes, os homens de negro, deslocando-se de um lado para o outro do cenário, se assemelham mais aos Kurogo, auxiliares pertencentes ao Kabuki e responsáveis por parte dos efeitos secundários da peça. Em entrevista concedida a Lúcia Nagib, Shinoda, formado em artes e teatro, pontua a importância do Kabuki, que constitui em grande parte a essência de seu pensamento como realizador. [6]
Existia uma tendência no cinema japonês do pós-guerra a se recusar qualquer sentimento totalitário, fruto de um mal-estar geral que levou os diretores a explorarem questões da individualidade humana em detrimento de aspectos coletivistas. Não parece uma surpresa então que, na concepção de seus amantes suicidas, Shinoda tenha evitado submeter seus corpos ao controle externo de um Ningyōzuka. A responsabilidade pelo sacrifício último, nesse caso, pertence tão e somente a Jihei e Koharu. Depreende-se daí uma visão pessimista e contrária ao heroísmo redentor do Seppuku [7] dos tradicionais personagens oprimidos pela lealdade filial. O suicídio, antes, deixa antever motivações que recolocam o indivíduo no controle de suas ações.
A questão central do filme passa pelo conflito entre dois componentes da formação do homem e mulher japoneses, o Guiri e o Ninjô. O Guiri corresponde à responsabilidade social do ser, o dever para com os pais e a sujeição da parte ao todo. O Ninjô, por sua vez, está associado aos impulsos individuais e paixões. Ainda nos anos de 1930, como resposta à censura e o nacionalismo ascendente do país, os filmes começaram a ser protagonizados por personagens que rejeitavam a lealdade servil do Guiri. Popularizou-se a figura dos ronins, samurais andarilhos, sem senhores e com uma postura frequentemente niilista. Um tipo que, com o fim da guerra e da ocupação norte-americana, voltou a figurar nas telas juntamente com outros rebeldes, como é o caso dos amantes suicidas.
3º A convergência, às vezes fortuita,de traços estilísticos do teatro japonês do período Edo e do filme.
As formas teatrais discutidas até aqui são marcadas pela exuberância, pela ênfase no movimento, na cor, no drama – privilegiando, muitas vezes, temas como crueldade e morte. O filme de Masahiro Shinoda utiliza, de forma precisa, em especial, os três elementos fundamentais do Bunraku. Além da presença dos Ningyōzuka, a ação é acentuada pela música do Shamisen, pela marcação das matracas (Hyôshigi) que ajudam a criar uma atmosfera de tensão e, finalmente, pela narração.
Apesar das sutilezas estilísticas na criação da mise-en-scène e de todas as hipóteses que se podem levantar para a interpretação do Duplo Suicídio de Amijima e seus subtextos, o filme não se baseia exclusivamente na compreensão das convenções, ou qualquer sistema de códigos indecifráveis. Longe disso, parte da força do teatro de características barrocas [8] está no fato de operar com uma lógica aberta, mais permeável e capaz de abarcar as imprecisões e imperfeições do mundo. Duplo Suicídio de Amijima é anticlássico: o cenário, o figurino, a maquiagem, a música concorrem para a criação de soluções estéticas únicas e, ao mesmo tempo, não excludentes. As barreiras simbólicas decorrentes de diferenças culturais e filosóficas são transformadas em força expressiva visual pura, e caem por terra a partir da depuração operada pelas lentes argutas de Shinoda.
A Viagem do Capitão Tornado
Diferente da obra de Shinoda, A Viagem do Capitão Tornado (1990) é uma adaptação de um romance satírico do tipo capa e espada e não de uma peça. Escrito no séc. XIX pelo francês Théophile Gautier, o livro narra as desventuras do jovem barão Sigognac, que, sem posses e acometido por vários dos infortúnios da vida, se lança em turnê com um grupo teatral italiano.
O filme de Ettore Scola, não sendo diretamente tributário do teatro, poderia ter sido estruturado enquanto qualquer um dentre os vários tipos de adaptações proporcionadas pela amplitude do romance que, diferente do texto teatral, admite com mais facilidade a supressão de personagens, mudanças no texto e a reestruturação da narrativa para adequação ao roteiro. Isso de fato acontece no filme de Scola, que para efeitos expressivos, opta por modificar algumas das estruturas do livro. Ele, por exemplo, valoriza Matamouros (o primeiro Capitão Tornado), herói quixotesco interpretado por Jean-François Perrier, dando a ele, diferentemente de sua versão literária, uma posição mais central na narrativa. Sua altivez e forte senso de dever, contrastante com sua figura fisicamente debilitada, perdida entre a virtude e a inépcia do viver em um mundo que não o da arte, o coloca no centro de um raro momento cinematográfico, no qual o diretor, fazendo-se valer das convenções expansivas do drama barroco, consegue alcançar com sutileza uma expressividade ímpar, possível somente em virtude do olhar humanista de Ettore Scola.
Se observado de modo mais desinteressado, o filme parece refletir a seguinte ordenação: cinema-literatura-teatro. Ou seja, parece tratar-se de um filme sobre um livro que fala sobre teatro. Mas tal afirmativa é falsa. Se não o fosse, o componente teatral não se referiria necessariamente à linguagem do palco e o registro não passaria de uma mera escolha temática. O diretor, de forma habilidosa, opera uma mudança na hierarquia do filme, submetendo a narrativa de Gautier a a uma mise-en-scène teatral, de modo a obtermos a seguinte ordem: cinema-teatro-literatura.
Para que não restem dúvidas em relação à forma artificial e artificiosa de sua obra, Scola emoldura a história em um espaço cênico desprovido de maiores especificidades. Na primeira sequência do filme, a câmera se projeta em um travelling e se desloca na direção do palco. As cortinas se abrem e somos apresentados ao cenário da primeira cena. Esse simples movimento, sem nenhum outro referencial, desloca o filme no tempo e lhe confere, de forma instantânea, um caráter atemporal, excluindo-o, automaticamente, de uma leitura que possa interpretá-lo como simples obra de época.
Essa estratégia inicial de revelar ao espectador um filme duplo libera o diretor do compromisso (se é que ele existe) de seguir regras de verossimilhança impostas por registros clássicos. Daí em diante, a partir de um pacto estabelecido com o espectador, o autor é livre para explorar a alegoria em toda sua exuberância. Lançadas as regras do jogo, o material que compõe a narrativa pode ser calibrado de acordo com o que for conveniente ao autor e oscilar entre os dois pólos, realismo e alegoria, aproveitando-se das virtudes inerentes a cada um deles. Embora evite closes e grandes planos gerais, mantendo enquadramentos mais familiares à experiência teatral, Scola insistentemente oferece o contraponto da linguagem cinematográfica, revelando os cenários e ações através de uma intensa movimentação da câmera e constante mudança do ponto de vista – salvo nas cenas em que a trupe se apresenta e é enquadrada de frente, como faziam os antigos cineastas que apostavam no living tableu. A experiência, nesse caso, opera um tipo de resgate histórico e o espectador compartilha da mesma visão do público ao pé do palco.
Os famosos tipos italianos de Scola, com seus narizes aquilinos e gestos expansivos, encontram nos personagens da commedia dell’arte uma segunda via expressiva, uma nova camada, mais esquemática, é claro, mas não menos humana, que se mescla ao já rico tecido psicológico dos atores da trupe, interpretados por Massimo Troisi e companhia. Através de uma habilidosa configuração entre esses componentes, Scola é capaz de apresentar ao espectador um sábio Pulcinella [9], perito em oferecer bons conselhos ao jovem Herói, ou até mesmo uma história de amor amarga, com um desfecho contrário ao tradicional destino reservado ao casal de enamorados na commedia dell’arte, desta vez interpretados por Vincent Perez e Emmanuelle Béart.
É possível que muitas pessoas que já tenham ido ao circo ou a qualquer apresentação teatral na rua (e até mesmo as que não o fizeram) reconheçam na comédia de Ettore Scola algum ponto de contato com suas próprias memórias. A mirada afetuosa em direção ao passado, nesse caso, cria uma atmosfera tão envolvente e nostálgica que o filme, apesar de sua concepção burlesca, adquire feições históricas que transformam os estúdios da Cinecittà em vilarejos mais verossímeis do que aqueles existentes no interior europeu.
Perseguição e Assassinato de Jean-Paul Marat Representados Pelo Grupo Teatral do Hospício de Charenton Sob a Direção do Senhor de Sade.
Com um título quilométrico, a peça escrita por Peter Weiss em 1963 teve seu valor reconhecido de imediato e recebeu várias montagens ao redor do mundo, inclusive a realizada por Peter Brook, no Aldwych Theater, em 1964. O filme, porém, realizado também por Brook, só veio 4 anos depois, em 1967. A maior parte dos elementos utilizados na montagem para o teatro foi mantida na versão cinematográfica – o mesmo texto, os mesmos atores, cenário e figurino –, fatores que transformam Marat/Sade (1967) em um dos casos mais didáticos para o estudo das questões apontadas até aqui.
Assim como em A Viagem do Capitão Tornado, o tema do palco no palco é retomado. O filme, como o nome/prefácio diz, refere-se à encenação de uma das várias peças dirigidas pelo Marquês de Sade durante o tempo em que esteve internado no Hospício de Charenton, e exibe a história do assassinato de Jean-Paul Marat, revolucionário apunhalado por Charlotte Corday, interpretada magistralmente por Glenda Jackson.
A peça não prima pelo rigor histórico, o que valeu a Weiss ressalvas por parte da crítica. O compromisso do texto é para com o público, na medida em que o coloca diante de ideias e não necessariamente dos fatos. Os personagens são caracterizados de forma a personificar questões que extrapolam delimitações históricas estritas. O Marat de Weiss, por exemplo, não só incorpora o ideal da revolução francesa em seu contexto específico, como, através de seus solilóquios, proferidos quase sempre de sua banheira, reverbera ecos de um socialismo ainda embrionário. Um dos objetivos da tese por trás do teatro engajado é fazer com que possamos perceber na representação dos personagens traços ideológicos, com maior ou menor nitidez. Os personagens construídos pelos métodos de atuação de Peter Brook carregam consigo o peso de um conjunto de valores que reflete visões diferentes do mundo, e utilizam o espaço do palco como um campo de batalha para o embate, de forma parecida com o que fizera Glauber Rocha em Terra em Transe, no mesmo ano de 1967.
A Royal Shakespeare Company, comandada na época por Peter Brook,recusa a experiência da interpretação mediada pela racionalidade. Em alguma medida, o palco transforma-se em arena, permitindo a aplicação parcial do Teatro da Crueldade proposto por Artaud – um teatro, sobretudo de natureza física, voltado para o exterior, que encontra principalmente na expansão do movimento e na projeção da voz, o estofo necessário para a consolidação dos personagens. Cabe ao espectador coadunar os elementos diversos colocados em cena, criando assim sua própria tese. Tal qual Brecht e Piscator, Peter Weiss recusa a tradição realista, preferindo alinhar-se ao teatro épico, pautado pela observação desinteressada a partir do exterior.
Brook faz do espectador testemunha, despertando nele a atividade mental e forçando-o a tomar decisões. Em relação a isso, o teatro possui uma vantagem se comparado ao cinema, pois reclama para si, de forma às vezes inconsciente, esse tipo de operação intelectual. As limitações pelas quais o sistema de signos teatrais se submete, decorrentes de seu formato, impõe aos espectadores um exercício de abstração a partir do momento em que são obrigados a reconhecer aquele espaço como simulacro, fazendo assim os ajustes que criam condições para interpretação da obra.
A estrutura geral seguida por Peter Brook em sua adaptação da peça de Weiss lembra uma matrioska – a ação ocorrendo nas três esferas que dão forma à obra. A primeira, eternizada pelo quadro de Jacques-Louis David, se passa em 1793, ano da morte de Jean-Paul Marat, quando foi apunhalado em sua banheira pelas mãos de Corday. A segunda, que abrange todo o espaço da projeção, se passa poucos anos depois, em 1808, no hospício de Charenton. A terceira e última camada, por continuidade, é aquela em que a 4ª parede se rompe e o público é convidado a participar do espetáculo, como fizera Shakespeare na cena em que Hamlet recria no palco a morte do próprio pai. As duas primeiras, relacionadas ao espaço cênico, se mantém quase constantes nas duas versões, teatro e cinema, enquanto a última concentra a maior parte dos rearranjos que constituem uma síntese das linguagens cinematográficas.
Sobre a função do diretor, como intermediário entre texto e público:
“Quando dirigira a peça, não buscara impor meu próprio ponto de vista à obra; pelo contrário, procurara torná-la tão multifacetada o quanto pudera. Como consequência, o público estivera continuamente livre para escolher, a cada cena e a cada momento, os aspectos que mais o interessavam. É evidente, no entanto, que eu também possuía minhas preferências e fiz, no filme, aquilo que um diretor de cinema não pode evitar, que é mostrar aquilo que seus próprios olhos vêem” (BROOK, 1992) [10]
Sem dúvida, a experiência regulada pelo enquadramento definido pelo diretor de cinema força os espectadores a assumirem um papel mais submisso, levando-os, de uma forma ou de outra, a criar uma conexão com a obra mediada menos pelo intelecto e mais pelos sentidos. A contradição contida nesse efeito colateral sinestésico é atenuada em alguns momentos em que Peter Brook trabalha sem cortes e com composições pictóricas.
Dos três filmes analisados até aqui, Marat/Sade é o que mais radicalmente explora os recursos da câmera. Em meio a tantos personagens, declamações e rupturas, o diretor filmou, simultaneamente, com três câmeras e explorou ao máximo as possibilidades inerentes a cada tipo específico de enquadramento. A continuidade é desconsiderada e, de uma forma geral, a sequência das imagens não importa muito, desde que sejam claras e se tornem fortes o suficiente para sustentar alegorias. A força imagética dos fragmentos que formam a cena (e não o todo) deve fazer ressoar o ponto de vista idealista e perigosamente autoritário de Marat, exercido a cada fala e em cada gesto, assim como o cinismo de Sade, o reacionarismo dissimulado de Coulmier, diretor “liberal” do hospício, o anacronismo do oportunista Duperret e a melancolia de Charlotte Corday.
Ao final, tudo se esvai, os internos não conseguem ser controlados pelos enfermeiros, o cenário e figurino são destruídos, a loucura dos personagens, de forma mais violenta, se transforma em um exercício teatral de improvisação e vice-versa. O cenário cai, assim como aconteceria três anos depois em Duplo Suicídio em Amijima. A catarse gerada através da destruição da instituição e seus mecanismos de poder, para o delírio do próprio Marquês, sinaliza o ruir do mundo teatral e a transformação do espaço cenográfico em vazio.
E agora?
O “cinema teatral” não se resume a uma equação meticulosa, cujo intuito é demarcar os limites entre as duas linguagens. Não é preciso filtrar a arte teatral e remover suas partes mais frágeis, decorrentes das limitações impostas por sua própria estrutura, em busca de uma interação perfeita.
Em A Viagem do Capitão Tornado, por exemplo, a intervenção cinematográfica no registro da “peça” é bastante sutil. A câmera trabalha em uma escala humana e atua quase como uma subjetiva, um canal através do qual nos colocamos na pele de um espectador atrevido, que se levanta do assento e passa a acompanhar a ação diretamente do palco. Sem grandes peripécias e piruetas e com uma montagem clássica, o filme representa o uso de técnicas teatrais de forma mais discreta, sem grandes rupturas. Recurso similar foi utilizado por Jean Cocteau em O Pecado Original (1948).
Cabe, no entanto, refletir a respeito da vitalidade desse tipo de filme, já explorado de forma competente inúmeras vezes ao longo de mais de um século. Quase três décadas se passaram desde o lançamento do mais recente filme analisado neste ensaio, e de lá para cá outros pontos de tensão entraram em cena com o surgimento de novas tecnologias no campo da representação cinematográfica. Hoje o realismo parece ter alcançado seu ápice, a materialização do imaginário passou do stop-motion para a animatrônica e, finalmente, a computação gráfica. As adaptações desajeitadas operadas pelo “cinema de arte” da era pré-Griffith deram lugar ao ciclo interminável de adaptações que hoje se debruçam sobre os quadrinhos, e os enormes cenários de Cabíria (1914), Sumurun (1920) e O Ladrão de Bagdá (1924) foram substituídos por versões contemporâneas ainda mais imersivas. Há um apelo em favor de um ultra-realismo capaz de tornar verossímil, através da tecnologia, qualquer uma das fantasias humanas, por mais ambiciosas que sejam.
Já não é mais necessário advogar em defesa dos benefícios da relação cinema/teatro, como o fez Bazin. Daqui em diante, o ponto principal ao redor dessas questões repousa na tentativa de responder aos “por quês” e não ao “como”. Arrisco-me a dizer que a resposta definitiva não virá, mas cabe ressaltar uma das importantes funções desses filmes: a de contaminar, de tempos em tempos, o cinema, e lembrar-nos da fragilidade ideológica que reside no mito da pureza artística e cultural. O teatro é capaz de impulsionar a sétima arte através de um movimento expansivo, centrífugo e profano, capaz de diluir as certezas e destruir as muralhas do reducionismo em benefício do próprio cinema.
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Notas:
[1] Gênero mais tradicional do cinema Japonês, os Jindaigeki, são os dramas históricos, ambientados geralmente no período Edo ou Meiji.
[2] O benshi era um tipo de narrador que além de explicar parte da história aos espectadores, era responsável por dublar os personagens. Até os anos de 1930 eles exerciam forte influência na indústria japonesa, e foram responsáveis por postergar a adesão do Japão ao cinema sonoro, que ocorreu de forma mais lenta em relação ao restante do mundo.
[3] Como no Kabuki, até 1920 a maior parte das personagens femininas do cinema japonês eram interpretadas por homens. Os atores especializados nesses papeis eram chamados de Oyama.
[4] Gênero de tendências realistas que retratava o núcleo familiar e os pequenos conflitos cotidianos enfrentados pelos cidadãos japoneses comuns.
[5] São os três manipuladores do Bunraku. Os dois auxiliares, responsáveis pelos movimentos das pernas e braço esquerdo ficam sempre vestidos de negro, com as cabeças cobertas, enquanto o omozukai, manipulador chefe responsável pela cabeça e braço direito, pode ter a face descoberta e usar um traje distinto dos demais titereiros.
[6] Para entrevista completa, conferir: NAGIB, Lucia. Em Torno da Nouvelle Vague Japonesa. Ed. Unicamp, p.75.
[7] Suicídio ritual cometido principalmente pela classe dos samurais, conhecido no ocidente como harakiri.
[8] O barroco aqui é compreendido como uma categoria estética e não como conceito histórico.
[9] Personagem típico da commedia dell’arte, o Pulcinella é um bufão, geralmente tolo e digno de pena, representado com uma corcunda e uma máscara com um grande nariz
[10] Tradução de Gabriela Lírio Gurgel Monteiro