Hannah Serrat
O tempo do trabalho e o tempo das cantigas enlaçam-se aos corpos dos trabalhadores do campo de uma só vez, ritmados por seus movimentos repetitivos de arar a terra, descaroçar o cacau, recolher o barro do chão. Na cidade, ao contrário, é preciso ir para longe das fábricas, de seu trabalho árduo e contínuo, para melhor expressar os antigos cantos que, ali também, se transmitem de geração para geração: o samba de roda, o partido alto. Conhecido por seu engajamento político, o cinema de Leon Hirszman se dedica em Cantos de Trabalho (1974 – 1976), Partido Alto (1982) e Nelson Cavaquinho (1969) a encontrar, nas periferias rurais e urbanas, os corpos, os rostos e as vozes dos homens e mulheres que, em comunidade, partilham a vida, o tempo do trabalho e o tempo da invenção.
A série Cantos de Trabalho é constituída por três curtas-metragens realizados durante a atuação de Hirszman no Departamento de Assuntos Culturais do então Ministério da Educação e da Cultura, a partir de meados dos anos 1970. Primeiro, Hirszman retorna a Alagoas, estado em que pouco antes ele havia filmado São Bernardo (1972), e realiza Cantos de Trabalho – Mutirão (1974), interessado nos cantos de trabalhos realizados coletivamente no Brasil. Dois anos depois, ele vai com a mesma equipe à Bahia, em Feira de Santana e Itabuna, e realiza Cantos de Trabalho – Cana de Açúcar (1976) e Cantos de Trabalho – Cacau (1976), sobre os cantos dos trabalhadores durante a colheita desses produtos aos quais os títulos dos filmes fazem referência.
A proposta central dos três curtas é a mesma: registrar, sobretudo em função da necessidade de preservação e de um propósito educativo, alguns cantos entoados pelos homens enquanto trabalham coletivamente na terra. De certa forma, a cartela que informa sobre os mutirões, no primeiro filme da série, parece ressoar nos filmes seguintes que se interessam por trabalhos do mesmo gênero. Ela anuncia: “Mutirão, adjutório, bandeira, traição, faxina, ajuri, batalhão, boi, são algumas das denominações que exprimem diferentes formas de trabalho confraternizado, colaboração visual, ajuda mútua que se pratica em benefício de alguém, realizando-se trabalho que para um só indivíduo seria extremamente penoso ou difícil” (grifos originais).
A inserção das cartelas, nos filmes seguintes, é substituída pela presença da narração em voz over interpretada por Ferreira Gullar, que nos faz breves contextualizações e pequenos comentários em alguns trechos dos filmes. Nem a entrada da narração, nem o uso das cartelas, no entanto, vêm se sobrepor às imagens fechando-lhes os sentidos ou direcionando sobremaneira a atenção do espectador. A câmera recuada, que articula planos fixos a um registro mais próximo dos corpos, apanha atentamente o movimento dos trabalhadores, com seus olhares e gestos, registrando tanto a interação entre eles (e, em raras vezes, inclusive com a própria câmera), como com a paisagem no entorno. De certa forma, trata-se de um registro que se aproxima do chamado “cinema direto”, optando mais pelo gesto observacional, sem interferência da equipe nas cenas (que não se propõe a realizar entrevistas ou a fazer quaisquer intervenções).
O principal comentário que se repete, de modo geral, nos dois filmes narrados por Gullar e que remonta certo espírito das realizações talvez seja este (retirado especificamente do Cantos de Trabalho – Cacau): “Os cantos de trabalho são uma forma cultural em extinção. As modificações que se operam no campo, a urbanização crescente e a influência dos meios de comunicação de massa tendem a fazê-los desaparecer”. Esse desejo de preservação, imantado de um lado por certa idealização do campo e certa nocividade dos processos de urbanização e industrialização das cidades, dita o caráter do registro e situa sua importância em meio ao assombro de uma provável desaparição. As questões sobre a miséria, a má distribuição de terras e dos meios de produção, e o analfabetismo, tão presentes em filmes como, por exemplo, Maioria Absoluta (1964), ausentam-se para dar lugar à riqueza poética e expressiva do trabalho no campo, ao mundo sensível daqueles cuja vida é constantemente expropriada pelos ditames do capital. Eis aí a manifestação de uma outra chave política no cinema de Hirszman, tão marcado por sua filiação marxista. O gesto parece ser semelhante em Partido Alto e Nelson Cavaquinho.
Nestes dois filmes, o cenário é o morro carioca e o principal interesse é o samba popular, expressado de um lado pela criação do artista e de sua personalidade, e do outro, pela invenção coletiva. Em Nelson Cavaquinho, Hirszman compõe um retrato (talvez um dos mais belos do cinema brasileiro) do célebre compositor e sambista, adentrando sua casa e acompanhando parte de seu cotidiano. A primeira imagem do filme é um primeiríssimo plano do rosto de Nelson Cavaquinho de perfil, vista ao som de uma de suas músicas enquanto ele fuma um cigarro. Seu rosto, filmado em primeiro plano, aparece diversas vezes no filme com uma gravidade singular– como se algo da força da personagem pudesse se inscrever nessas imagens, semelhante ao que acontece em A falecida (1965), em que Hirszman realiza, com maestria, aquilo que Ismail Xavier chamou de uma “dramaturgia de primeiros-planos” [1]. As canções de Nelson Cavaquinho são, então, articuladas a diversos momentos em que a câmera registra-o em casa, a andar pelas ruas ou a beber em um pequeno bar. Em alguns momentos, o filme recolhe seus depoimentos, pequenos e contundentes relatos concedidos a equipe do filme sobre a sua biografia. O que mais me interessa, no entanto, em trazer Nelson Cavaquinho para o diálogo com os outros filmes aqui citados é o modo com que os enquadramentos mais abertos aparecem sempre povoados por outros moradores, provavelmente, vizinhos de Nelson, a levar a vida ou mesmo a observar as cenas, a conversar e cantar junto dele… De certa forma, enquanto filma o sambista, Hirszman acaba por registrar também, seja no bar, nas ruas ou nas beiradas das portas e janelas, certa dinâmica do morro e de seus moradores, sua ociosidade produtiva, que vai ser alargada e potencializada anos depois em Partido Alto.
Este último filme, realizado com a colaboração de Paulinho da Viola, como o próprio nome indica, dedica-se a resgatar o “partido alto”, o gênero musical fundamental para a história e a preservação do samba popular. Pouco depois do início do filme, um corte apresenta-nos um plano fechado do rosto de Candeia, outro famoso sambista carioca. Ele faz uma breve caracterização do samba de partido alto e começa a cantar um partido da Mangueira. A câmera, pouco depois, volta-se ao seu entorno e apresenta um grupo de mulheres cantando, homens sentados ao fundo e, pouco a pouco, mostra-nos outros músicos dando especial atenção a cada um, aproximando-se dos seus corpos e fazendo planos mais fechados. A segunda parte do filme, Na Casa de Manacéa, consecutiva a essa cena, apresenta-nos os rostos de alguns homens que, a cada vez, comentam o que eles entendem por “partido alto”. Não há uma proposta de deslocamento dos entrevistados para algum lugar mais silencioso e tranquilo, onde seus depoimentos poderiam ser coletados com maior clareza. O filme se volta a essa escuta, em meio ao mundo, durante um almoço ou uma confraternização em um quintal, filmando-os enquanto eles comem coletivamente ou enquanto dançam e cantam, apanhando, no fundo, uma série de ruídos, com uma espontaneidade rara. A câmera na mão, muito atenta, parece imersa na situação, voltando-se a diferentes sujeitos, sempre que algo chama atenção no fora-de-campo.
Como no filme sobre Nelson Cavaquinho, os planos, desde o início do filme, são irrigados, portanto, pela presença de muitos sujeitos, que, desta vez, ao contrário de ocuparem as bordas do quadro, são enquadrados com mais centralidade e atenção. Ao final do filme, já de noite, como se o samba no fundo do quintal tivesse varado o dia, a voz de Paulinho da Viola compõe a faixa sonora, em off, dizendo: “A roda de partido é um momento de liberdade, o partideiro mesmo tira o verso de improviso, como fazia o João da Gente, o Alcides, Aniceto do Império, Candeia e tantos outros. Hoje, como não há mais essa obrigação, qualquer um pode dizer seu verso, mesmo decorado. Quando menino, eu via no partido uma forma de comunhão entre a gente do samba. Era a brincadeira, a vadiagem, onde todo mundo participava como podia e como queria. A arte mais pura é o jeito de cada um e só o partido alto oferecia essa oportunidade…”. A liberdade da roda de partido e o acolhimento de todos, em sua singularidade e diferença, descrita por Paulinho da Viola já no fim do filme, parece ecoar no modo com que Hirszman escolheu filmar esses homens e mulheres (sobretudo os homens) no morro, compondo planos capazes de acolher, ao mesmo tempo, a singularidade de cada um e a fraternidade entre todos. Impossível não nos lembrarmos imediatamente dos homens que aravam o campo e cantavam em mutirão. Lá, o trabalho os unia e mantinha os cantos vivos; aqui, é a vadiagem que possibilita o improviso e a inventividade coletiva do partido alto.
Dando um salto, lembro-me de um trecho (talvez longo, mas fundamental) de um texto de Jean-Claude Bernardet que compõe o clássico “Cineastas e imagens do povo” e que se dedica ao documentário de curta-metragem Maioria Absoluta (1964), de Hirszman. Esse trecho sempre me interessou bastante porque se volta, especialmente, à “passagem da palavra”, no filme, do cineasta para os povos que ele decide filmar. Bernardet comenta:
Há um corte que merece comentários. Com o plano 43 iniciam-se as entrevistas com camponeses. Logo antes vemos, em primeiro plano, numa feira nordestina, um homem olhando para o eixo da câmera – o vocativo visual -, e sobre ele incide um trecho da locução que diz: ‘passemos a palavra aos analfabetos. Eles são a maioria absoluta’. O plano 43 mostra um homem doente, sentado à porta de um barracão, atingido de forte tremedeira, incapaz de falar; ele emite apenas uma espécie de zumbido. Entra off a voz de uma mulher que a câmera descobrirá logo a seguir e ela comenta a doença desse seu parente. O que motiva a entrada desse plano exatamente nesse momento e o torna duplamente significativo? A força expressiva do doente, cuja imagem enche a tela, e a relação com a locução do plano anterior: passamos a palavra e só vem a gagueira. Os analfabetos não tomam a palavra; ela lhes é outorgada e mesmo assim não têm condição de falar, o que legitima que o cineasta tome a palavra – ou melhor, permaneça com a palavra; o que legitima que se fale no lugar daqueles que não falam. Por outro lado, “passemos a palavra” indica ainda que o filme gostaria que eles falassem. Encontramos aqui essa contradição do intelectual progressista que espera que o povo fale e aja, mas, como ele elabora uma imagem passiva desse povo, toma ele a palavra, por enquanto…
O procedimento de montagem que Bernardet descreve e que produz essa relação entre a gagueira de um homem e o gesto de “passar a palavra ao povo” parece-nos bastante infeliz, tendo em vista que, pouco depois, o filme se abre a valorosos depoimentos de homens e mulheres conscientes de sua marginalização social. Ainda assim, se não é possível que os povos tomem a palavra neste momento, necessitando da mediação do cineasta, o que o cinema de Hirszman oferece, nos demais filmes aqui citados, é a aparição expressiva de seus rostos, seus gestos, sua inventividade e poeticidade próprias, capazes de retirá-los desse lugar passivo e miserável a que, recorrentemente, eles são lançados, ainda que com alguma finalidade política de engajamento e mobilização. Se não é a luta de classes que está em primeiro plano nos filmes sobre o samba e sobre os cantos de trabalho, nem por isso a política neles se ausenta, trazendo à tona outras forças que vêm reordenar o sensível, os modos de ver, de sentir e de fazer de uma comunidade política, para dizer como Jacques Rancière.
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[1] Ver XAVIER, Ismail. A falecida e o realismo a contrapelo de Leon Hirszman. In: ________________.O olhar e a cena: Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac &Naify, 2003.
[2]Ver BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 44 – 45.