A Carne é Fraca
Daniel Rodriguez
Ao lado de cineastas como Park Chan-wook, Hong Sang-soo e Kim Jee-woon, Bong Joon-Ho é um dos nomes mais proeminentes do novo cinema sul-coreano. Trabalhando com entrelaces entre o cinema de gênero e a sátira, o diretor imprime um olhar político em meio às formas do terror, do suspense e da ficção científica. Okja (2017), seu mais recente longa, não foge à regra.
Okja é o nome dado a um premiado super-porco criado por um pequeno fazendeiro em uma região montanhosa da Coréia do Sul. Esse animal fictício parece ser um elo-perdido (ou melhor, um elo-fabricado) entre porco e hipopótamo. Vendido ao povo como uma raríssima espécie mamífera chilena, o super-porco é, em verdade, um produto de engenharia genética desenvolvido como forma de suprir o consumo mundial por carne, neutralizando alguns dos principais danos causados pela pecuária e outras criações.
Dentro da filmografia de Bong é possível encontrar premissa semelhante em O Hospedeiro (2006). Ao passo em que em Okja, os animais são criados em laboratório, intencionalmente, este outro apresenta uma monstruosidade gerada acidentalmente pela ação do homem. A interferência humana na natureza é, portanto, um tema comum, abordado de formas diferentes. No filme de 2006, Joon-Ho se preocupa especialmente com a questão da presença americana em solo coreano, optando por trabalhar tal mote pelo viés do horror e dos filmes de monstro. Em seu último trabalho, essa crítica se amplifica, mirando a produção e consumo de carne em escala global. Ao invés do horror, Joon-Ho cria um estranho híbrido de aventura e documentário pró-vegetarianismo, amarrado em um invólucro dramático.
De maneira análoga ao que acontece na maioria das obras do diretor, o longa possui uma estrutura narrativa descendente. Transcorre durante o primeiro ato uma história de amizade, simples e direta, entre Mija, a filha do fazendeiro, e a super-porca Okja. Tal relação dura até o momento em que os verdadeiros donos do super-porco intercedem, almejando levá-la para os Estados Unidos com o intuito de vendê-la para o público e, posteriormente, abatê-lo e processá-lo.
Ao longo do primeiro ato, Joon-Ho constrói um filme leve, de ar aventuresco, pontuado pelo humor quase pastelão e personagens excessivamente caricatos. Não obstante, a atmosfera que compõe é gradativamente destruída pela retratação cínica e pessimista da sociedade em que os personagens são inseridos, de forma que, ao final, resta apenas inconformismo.
Essa perspectiva niilista marca o trabalho do autor, como comprovamos seminais Memórias de um Assassinato (2003) e Mother – A Busca Pela Verdade (2009). Em ambos, ambientes aparentemente descontraídos são substituídos, pouco a pouco, por cenários desalentadores e vazios de sentido, nos quais os personagens são, geralmente,moralmente destruídos. Em Okja, a atuação caricata de Tilda Swinton e Jake Gyllenhaal, em específico, parece remeter a seu longa anterior, Expresso do Amanhã (2013), que apresentava figuras de poder de forma igualmente burlesca. Nesses dois trabalhos mais recentes, a posição social é seguida de uma transformação, cujo resultado é pitoresco.
É difícil não pensar em Okja como uma crítica aberta à sociedade de consumo. A exposição é cruelíssima e realista ao ponto de ser incômoda. Joon-Ho insere diversos momentos de brutalidade, muito semelhantes ao que vemos em documentários que utilizam imagens da rotina sádica dos abatedouros com o intuito de sensibilizar o espectador. Não obstante, o próprio Joon-Ho acaba por amenizar certas cenas em virtude do excesso de deboche na representação dos personagens previamente citados. Em um dos momentos supostos de suscitar maior impacto, Wilcox (Gyllenhaal) tortura Okja, misturando vingança pessoal contra o animal e contra seus superiores. O comportamento over the top do mesmo acaba por minar a tensão que a sequência supostamente deveria promover. Esses personagens satíricos são muito mais balanceados dentro do microcosmo de Expresso do Amanhã, já aqui soam como uma repetição pouco sucedida de um artificio dele próprio.
No decorrer dessa transformação de uma estrutura de ação/aventura para um filme que denuncia e ataca, Joon-Ho abre mão de uma construção estética mais elaborada, buscando, em primeira instância, expor uma realidade problemática. De um lado, temos uma trama simples, contada com a maestria de um grande cineasta; do outro, existe uma trama complexa exposta de maneira simplória, que acarreta em uma perda de ritmo. A obra em sua completude soa como episódios distintos mesclados em um. Ao passo em que isso é parcialmente intencional, falta coerência dentro dessa mistura, de forma que tanto o entretenimento como a provocação ficam subaproveitados. É no primeiro ato, pelas montanhas da Coréia do Sul, que Joon-Ho parece mais confortável.