Lembro Mais dos Corvos (2018), de Gustavo Vinagre

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Territórios esgarçados, relações a construir.

Thomas Lopes Whyte

Lembro Mais dos Corvos (2018), de Gustavo Vinagre, é um filme de estrutura simples. Sucinta, a sinopse nos indica, em uma única linha, o tempo (uma noite), a protagonista (Julia Katharine, atriz) e o formato (“Documentário” /conversa). Logo de cara, todo o espaço que abrigará o espectador pelos próximos 80 minutos é apresentado: uma única sala de apartamento, com mobiliário e elementos de decoração japoneses, dispostos de forma plasmada e perpendiculares à lente, que, pelo menos em relação à sua legibilidade, remetem ao cenário Kabuki. Ao despertar notívago de Julia no primeiro quadro segue-se um momento vagaroso, quando as incertezas de uma atriz ainda pouco certa sobre o papel que lhe cabe nessa conversa/entrevista vêm à tona.

Ao escrever sobre arte contemporânea e a desmaterialização do próprio objeto artístico, que tanto influenciaram o cinema do pós-guerra, Nicolas Bourriaud destacou o crescimento de uma produção estruturada a partir de relações entre 3 campos: o social, o histórico e o estético. Ainda que estejamos distantes de uma situação realmente democrática – como aponta um estudo recente da ANCINE, que indica a pequena participação de mulheres e negros na cadeia produtiva –o longa de Vinagre é fruto, mesmo que parcialmente, de uma tendência global de filmes socialmente engajados e que se inserem nas discussões de representatividade.

No campo histórico, porém, essa relação é menos sólida. Ainda que o tema da produção esteja atrelado a nosso zeitgeist, sua conexão com o passado parece vacilante. A impressão que se tem é que alguns filmes – e talvez seja esse o caso de Lembro Mais dos Corvos –, em virtude da urgência demandada por seus contextos, acabam partindo de um falso senso de novidade, uma tabula rasa que, ao tentar reescrever caminhos já traçados, acabam alinhando impulsos criativos originais a sistemas duros de signos já catalogados e nem tão revolucionários assim.

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É claro que o conceito de originalidade pode ser contestado, mas a proximidade formal, por exemplo, com o filme de Shirley Clarke, Portrait of Jason (1967), evidencia alguns anacronismos e cacoetes na abordagem dos temas. O mais recorrente talvez seja o insistente zoom in/ zoom out, típico do documentário direto dos anos 60, que não encontra na personagem de Júlia a mesma força dialógica que vemos no filme da diretora norte-americana. A busca pelos reenquadramentos no decorrer da conversa é, certamente, expressão de um gesto autoral em ambos os casos. Porém, no filme de 1967 o recurso vai além da condição de prótese e se justifica pela natureza exibicionista do protagonista, mais à vontade com a noção de uma teatralidade física que ocupa todo o espaço disponível do “palco”. Apesar disso, como quem afina um instrumento durante a apresentação, Vinagre, gradualmente, deixa de se preocupar com alguns desses referenciais estéticos e acaba aliviando a mão enquanto mergulha no universo de Julia.

Ao final da década de 1980, o artista Cubano Felix Gonzalez-Torres redefiniu os paradigmas da arte que tinha a homossexualidade como centro temático. A partir de um repertório singelo de objetos pessoais, cujas significações remetiam a experiências compartilhadas por quaisquer casais, Gonzalez-Torres foi capaz de apontar para uma direção oposta (ainda que igualmente contundente) à de Marlon Riggs em seu Tongues Untied (1989). Realizou uma série de objetos que extrapolavam os limites estéticos do círculo identitário, deslocando sua obra em direção a outros paradigmas, a partir de premissas igualmente vigorosas e politicamente relevantes.

A problemática expressa pelo binômio afirmação/desconstrução é também colocada no filme. Talvez as travestis e transexuais ainda tenham que percorrer parte do caminho já feito por outros grupos minoritários no Brasil. Se em Rainha Diaba (1974) e Madame Satã (2002), a representação se justifica pela potência das personagens como ícones e pela distância que isso implica da experiência do cotidiano, talvez dentro de algum tempo tenhamos na tela uma quantidade de vidas sendo retratadas para além da violência e dessa marginalização territorializada. E é Julia quem canta a pedra. A própria atriz, que também pretende se tornar diretora, é quem identifica no olhar de Ozu uma almejada representação dos espaços familiares, da carga dramática diluída e de um texto que revela sua força justamente a partir daquilo que não é verbalizado.

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É com franqueza que se apresentam não só essas questões, como também as incoerências de uma personalidade ambígua, que se esconde ao mesmo tempo que revela. Apesar de, às vezes, detectar no olhar do interlocutor uma espécie de curiosidade fetichizante, a atriz toma para si a responsabilidade de interpretar um duplo papel, sendo, ao mesmo tempo, objeto e sujeito. A partir do espaço negociado com Gustavo Vinagre, a protagonista reafirma sua existência complexa e passa pelos tempos agitados de sua juventude, enquanto oferece também sua caretice como contraponto.

No fim das contas, o filme parece ser menos a respeito de Julia e mais sobre sua relação com o outro, representado aqui pelo próprio autor/diretor. A maior virtude do longa está em sua capacidade de modificação, de se instituir enquanto obra processual, que cresce a partir de suas próprias contradições e das de seus protagonistas. Entretanto, tal movimento carece de certo amadurecimento: de modo paradoxal, são justamente os diálogos que impedem o filme de executar um mergulho mais profundo. Parece-me que, no vazio, localizado entre autor e personagem, Gustavo tropeça na quimera formada pela história que havia visualizado e o filme concreto, construído com Julia. Apesar de partir de procedimentos aparentemente semelhantes aos do cinema de conversação de Eduardo Coutinho, não há ali o jogo de cintura, que procura extrair um retrato através do subtexto, – característica verificada também nas ficções de Ozu –, e que, nas próprias palavras de Coutinho, elimina os espaços gerais, de tipos mais ou menos imediatos, coerentemente simbólicos de um grupo social.

Adotar certos pontos de vista nesse jogo de cena, que trabalha nos interstícios entre ficção e “realidade”, pode ser uma aventura desconcertante para o espectador. Os lembretes de que Julia, apesar de tudo, é também atriz, e “seu” quimono é na verdade um objeto de cena colocado ali pela equipe, tendem a funcionar como dispositivo que recoloca toda a natureza do filme em perspectiva. Mas se esse componente da farsa, das relações entre verdade/mentira, ficção/realidade, for apenas um recurso periférico e não condição de existência, ele corre o risco de ter seu potencial reduzido a um salvo conduto, um tipo de álibi, uma cortina de fumaça que tão somente turva as determinações e asserções que estão lá, mas não querem ou podem ser vistas.