Fábio Feldman
Formalmente falando, os dez filmes exibidos na Mostra Foco deste ano compõem um conjunto bastante heterogêneo: curtas experimentais, documentários, ficções de natureza clássica, de baixíssimo orçamento, de acabamento rebuscado – repletos de vida, repletos de potencialidade, repletos do mesmo. Entretanto, um forte gesto curatorial se evidencia quando analisada a temática da maior parte dos filmes. Dotados de natureza abertamente política, eles refletem diferentes lugares ocupados por figuras marginalizadas em nossa sociedade, dando voz, corpo e movimento a representantes de minorias identitárias, grupos histórica, social e culturalmente segregados, e vítimas contemporâneas dos ardis políticos que projetaram nosso país em meio às sombras.
A primeira sessão da Mostra foi aberta por Estamos Todos Aqui (2017), de Chico Santos e Rafael Mellim. O curta segue os passos de Rosa, jovem trans moradora da Favela da Prainha. Expulsa de casa, ela procura um novo lar em meio a paisagens desoladas, tornando-se cada vez mais consciente dos malefícios causados pelo projeto de expansão da zona portuária. Ao mesmo tempo uma estrangeira, em função de sua identidade, e uma representante de um grupo amplo, marginalizado e oprimido pelo peso da miséria e da desigualdade, Rosa se firma, gradualmente, como uma emblemática figura de resistência. E é sua sede e fúria que dão a tônica de Estamos Todos Aqui, obra urgente, apaixonada – mesmo que, creio eu, um bocado reiterativa e formalmente imatura (sua montagem frenética, marcada pelo uso de jump cuts, rapidamente se trivializa, exaurindo-a de boa parte de seu impacto). Irregularidades formais à parte, trata-se de um filme de momentos fortes, tendo servido de indicativo acerca dos mais promissores rumos tomados pela Mostra.
O mesmo não pode ser dito acerca de Iara (2018), de Erika Santos e Cássio Pereira dos Santos. Representando o encontro, às margens de um lago, de uma mãe e uma filha com uma figura feminina misteriosa, o filme, constituído sob uma chave naturalista, flerta com elementos do cinema de horror e fantasia. Nesse sentido, lembra produções de artistas como Marco Dutra, Juliana Rojas e Gabriela Amaral Almeida. Porém, enquanto em curtas como Uma Primavera (2011) e Um Ramo (2007), o cruzamento entre real e fantástico, o banal e o Estranho, ocorre de maneira orgânica, em Iara tudo parece artificial. A fotografia, os enquadramentos, as mise-en-scènes, tudo sabe à diluição. Más atuações e falta de potência dramatúrgica também não ajudam, embora o plano da Iara retornando às águas apresente certa intensidade imagética. Há quem leia o filme como alegoria de um relacionamento lésbico ou mesmo uma representação de diferentes variações do Feminino. A meu ver, trata-se, sobretudo, de um integrante menor – já que formalmente mais precário e menos original – de certo filão do cinema de horror brasileiro contemporâneo.
Peito Vazio (2017), de Yuri Lins e Leon Sampaio, o melhor filme do primeiro dia da Foco, em minha opinião, não se destaca radicalmente do cenário estético contemporâneo (são perceptíveis, por exemplo, os diálogos que estabelece com obras de autores como Adirley Queirós). Entretanto, tampouco pode ser considerado um mero exercício diluente. Posicionando-se entre o micro e o macro, o filme acompanha os passos de um jovem desolado com a rejeição de sua amada, enquanto o processo de impeachment de Dilma Rousseff se descortina diante dos olhos e ouvidos da nação. Paralelos sutis são estabelecidos entre a situação subjetiva do protagonista e a sombria constituição objetiva do Brasil: um coração partido, sangrando, precisa, por pressão da vida e do tempo, singrar; um país em choque, letargicamente, opta por não se entregar; e, morta, uma árvore melancólica dá lugar a uma nova. De uma perspectiva formal, creio que o filme peca por eventuais momentos de esquematismo (penso, sobretudo, na desnecessária cena em que dois jovens cantam um rap para o professor), mas, no geral, é capaz de sintetizar elementos de uma estética “suja”, realista, política, e traços poéticos singulares. Certamente, um dos destaques da Foco em 2018.
Outras (2017), de Ana Júlia Távia, fechou a primeira noite da Mostra. O documentário retrata a vida de várias mulheres que, vivendo na selva de pedra paulistana, se veem às voltas com o peso do racismo, da opressão e da misoginia – temática espinhosa e urgente. Entretanto, ousaria dizer que, de uma perspectiva cinematográfica, Outras decepciona. Sua estrutura básica (narração em off sobreposta a imagens das mulheres em questão) peca não apenas pela falta de inventividade como de funcionalidade. A relação entre as imagens e as palavras, nos melhores momentos, é repetitiva e maçante (ícones visuais se firmam como ilustrações pobres das palavras enunciadas); nos piores, incoerente. Boa parte do que vemos não parece dizer nada, apenas preencher espaço enquanto postulados são verbalizados. Não há tensão dialética, não há complementaridade: apenas repetição e vazio.
A segunda sessão da Mostra contou com três curtas bastante diversos. Calma (2017), de Rafael Simões, vencedor do prêmio do júri da crítica, explora os espaços de um apartamento decadente. Nele, o tempo é dilatado: todos os gestos se desenham com enorme vagarosidade, os relatos se espraiam como que projetados do e para o além. Apesar da ausência de humor, o filme parece estabelecer conexões com a obra de Beckett, uma vez que embalado por um espírito forte de absurdismo (como comprova a imagem do homem abandonado no meio da sala, tão reminiscente de peças como “Fim de Partida”). Seria o limbo em que habitam os corpos sujos dos protagonistas um reflexo do estado de coisas que compõe o Brasil contemporâneo? A falta de voz dos marginalizados, a paralisia que doma suas vidas e neutraliza seus ímpetos – seria Calma um retrato do niilismo político que nos consome? Cinema experimental sem grandes experimentalismos (nada radicalmente novo é tentado aqui), o curta se filia a tradições marcadas pelas tentativas de expansão do trabalho com a imagem-tempo, a fim de produzir um efeito seja de afasia, incômodo ou maravilhamento. O resultado é rigoroso, sincero – ainda que, por vezes, desnecessariamente redundante.
Sr. Raposo (2018), de Daniel Nolasco, dá uma guinada rumo à direção oposta. Pulsante, ágil, carregado de sexo e morte, ele representa, aparentemente, os últimos dias de um personagem acometido pela AIDS. A estrutura do filme não é linear ou visualmente coerente: entre a pornochanchada, o drama, o pornô propriamente dito, a (auto) paródia, o exercício pós-moderno e a linguagem popular(esca) típica das novelas e dos desenhos animados, o curta parece se configurar como uma espécie de sonho ou delírio. Pulsões primárias, de vida e de morte, são representadas dos mais diversos modos, seja no interior de construtos de encenação mais naturalistas, seja por vias abertamente artificiosas e afetadas. Visualmente, o efeito gerado é curioso: há inegável potência fílmica em Sr. Raposo. Entretanto, é preciso salientar o quão horizontal a obra é. A objetificação constante de todos os personagens, a redução de suas identidades ao desejo que os devora, a insistência (resultante do emprego de tantos procedimentos e dispositivos “carnavalizantes”) em resumir a história trágica de um homem à sua obsessão por corpos torneados – em suma, a falta de sutileza do filme, abraçada por tanto tempo e negada na “poética” cena final, me parece gerar curtos-circuitos incontornáveis. Nem Derek Jarman nem François Ozon, nem o antigo John Waters nem o jovem Guiraudie, Sr. Raposo é um fluxo estético queer à espera de algo mais bem definido a expressar.
A grande surpresa da noite – e, quiçá, de toda a Mostra – veio na sequência: A Retirada para um Coração Bruto (2017), de Marco Antônio Pereira, filme de baixíssimo orçamento produzido no pequeno município de Cordisburgo (MG). Dadas suas características singulares, ele, por si só, já se configuraria enquanto um desafio a qualquer crítico que ousasse analisá-lo; posicionado no interior de uma Mostra tão coesa do ponto de vista temático, Retirada agiu como uma bomba, lacerando a tapeçaria discursiva que, até então, cobria a Foco. A sinopse do filme é, nesse sentido, bastante reveladora: após perder sua esposa, Ozório, um senhor de 70 anos, habitante de uma zona rural, passa os dias cuidando da casa e ouvindo heavy metal em seu radinho. Apaixonado pelo som da guitarra elétrica, ele resolve comprar uma pedaleira, mas não consegue plugá-la na velha viola. Felizmente, acaba por estabelecer contato com dois alienígenas que, saídos de um precário disco voador, o convidam a montar uma banda de rock pesado. Meio Aruanda (1959), meio The Eric Andre Show, o curta sinaliza caminhos algo inéditos dentro da paupérrima paisagem que abriga o cinema popular brasileiro contemporâneo. Irreverente, consciente de suas próprias limitações formais e disposto a transformá-las em material para gags, Retirada parece, ao mesmo tempo, honrar uma tradição de humor televisivo pré-youtube, muito em voga, sobretudo, na década de 90 (“Hermes e Renato” vem à mente), introduzir elementos visuais oriundos da cultura dos memes e, surrealisticamente, subverter uma série de expectativas narrativas sem nunca alienar sua audiência. Obra essencialmente popular, A Retirada para um Coração Bruto é, ao mesmo tempo, fruto e paródia de uma “estética da pobreza”, cravando no solo impenetrável da terra de Guimarães Rosa um interessantíssimo veio nonsense rumo ao futuro.
O terceiro dia da Mostra foi iniciado com Febre (2017), de João Marcos de Almeida e Sérgio Silva. Embora também conte com um protagonista gay que luta para se estabelecer num mundo alheio, Febre não comunga de praticamente nenhuma similitude formal com Sr. Raposo. Diferente deste, o curta de Almeida e Silva é bem mais clássico, estruturalmente coerente e focado. A presença de Helena Ignez e a godardiana inserção de um quadro de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963) em uma das cenas não me parece fazer sentido intertextual claro. O filme não se filia, de modo algum, às tradições abertas pelo Cinema Novo, Cinema Marginal ou mesmo Cinema da Boca. Estudo de personagem, de tom “sério”, Febre lembra filmes da safra indie hollywoodiana do final da década de 90 e início de 2000, além de obras como Oslo, 31 de Agosto (2011), do norueguês Joachim Trier e Shame (2011), de Steve McQueen (como não associar a cena em que, circundado por ruídos dissonantes, o protagonista anda, salta e corre pelas ruas de seu bairro ao belíssimo plano em que Michael Fassbender, ouvindo Bach, cruza a melancólica noite urbana?). Os enquadramentos, as mise-en-scènes e, principalmente, os movimentos de câmera, são bastante rigorosos. Febre é, sem dúvidas, um filme sobre movimento – ou melhor: sobre um mundo que se move à revelia do protagonista, alguém que retorna de um país distante e precisa se reconectar com os escombros do passado. Infelizmente, assim como ocorre em diversos filmes de Caetano Gotardo (incluindo-se aí Merencória (2017), curta exibido esse ano na Mostra Panorama), parece-me haver em Febre um excesso “parnasiano”, um desejo artificioso de expressar sentimento e sensibilidade por vias verbais e visuais forçadas, falsamente “poéticas”. A lição rosselliniana é sacrificada em prol do que João Cabral denunciou como a “poetização do poema” – procedimento perceptível em vários esforços de artistas jovens, talentosos, mas ainda incapazes de entender o grande poder da simplicidade.
Fantasia de Índio (2017), de Manuela Andrade, perfaz outro caminho. Seus planos iniciais, com fotos de crianças fantasiadas de índios, nos levam a pensar no tema da “apropriação cultural”. O curta, porém, não se ocupa dele – prefere, antes, falar sobre algo mais importante: o fato de tais trajes remeterem a imagens míticas, perdidas num istmo entre o imaginário e a história antiga. Fantasia de Índio deixa claro que, embora apenas um contingente vergonhosamente pequeno de representantes dos povos originários permaneça vivo e atuante, pelo menos 12 etnias indígenas residem no interior do estado de Pernambuco. Etnias que não foram silenciadas, que permanecem sustentando seus valores e visões de mundo e resistindo ao impiedoso peso do “progresso”. Formalmente, o documentário se vale de várias estratégias distintas. O uso do voz over é primoroso, cumprindo ora sua função informativa/complementar à imagem, ora uma demanda dialética. A inserção de animações em pontos-chave também me parece funcionar bem, criando distinções poéticas entre duas formas epistêmicas de se acessar o real. Dito isso, o filme é ainda carregadamente expositivo. A exploração dos espaços e comportamentos dos membros da Comunidade Xukuru é bastante superficial. Falta o gesto rouchiano, a coragem de, respeitosamente, penetrar o espaço do outro e o tornar real diante das lentes da câmera. Por mais que sua mensagem e diversos de seus procedimentos apontem para um lugar de extrema riqueza, a fragilidade dramatúrgico/composicional de Fantasia de Índio, por vezes, se coloca como obstáculo. Ainda assim, trata-se de uma opção instigante a despontar no panteão dos filmes sobre temática indígena lançados nos últimos anos no Brasil.
Finalmente, fechando o último dia da Mostra, foi exibido Inconfissões (2017), de Ana Galizia. Construído a partir de imagens de arquivo, o documentário representa aspectos da vida de Luiz Roberto Galizia, artista teatral importante nas décadas de 70 e 80, e um tio que a diretora nunca conheceu. As imagens que compõem o filme são todas inéditas, tendo sido encontradas por Ana trinta anos após o falecimento de Luiz. Diferentemente de obras nas quais realizadores buscam acertar contas com o passado – ou mesmo, flertando com o modelo do thriller, recorrer a fragmentos a fim de montar uma narrativa (penso nos exemplos recentes de Coração de Cachorro (2015), de Laurie Anderson, e do belíssimo La Casa de Los Lúpulos, (2016), de Paula Hopf), Inconfissões não é um tributo convencional a seu objeto de análise. Entretanto, tampouco é uma forma de problematizá-lo, desconstruí-lo ou mostrar dele “a outra face” (como bem fez Maria Clara Escobar em Os Dias Com Ele (2014)). Mais do que qualquer coisa, Inconfissões é um filme de fantasma. O Galizia que vemos não é o ator, o acadêmico ou o fundador da Ornitorrinco. Ele não é exatamente o filho, o ativista ou o mentor. O Luiz de Inconfissões é uma presença – esquiva, mutante, incompleta. Tanto a trilha sonora quanto a brilhante montagem do curta ajudam a criar uma constante sensação de imprecisão: cenas bucólicas são atravessadas por fotos protocolares ou desconcertantes imagens de intimidade sexual. O homem, que parecemos conhecer tão bem ao final dos 21 minutos de projeção, nos é sempre um total estrangeiro, o esboço de uma figura sem margens. Há algo de hipnótico em Inconfissões, filme reflexivo, carregado de potência afetiva e, ao mesmo tempo, vazio de certezas. Com sua obra, Ana Galizia, conscientemente, atinge o oposto do que muitos almejam: coaduna cenas fortes, de modo forte, a fim de dar materialidade a um espectro.
Todas as coisas que vemos são ecos: as ruas sujas, as tardes nos jardins, as paradas, os apês. No poderosíssimo plano final, um homem performa sexo oral em um Luiz duplicado, diagonal, sem rosto. Assim como no filme que culmina, tudo em tal imagem é mistério: matéria do tempo, leve, destrutiva e enigmática. Em suma: pura Vida, puro Cinema.
Nenhuma obra poderia ter fechado melhor a Mostra.