O Amarelo é a Cor do Medo

Marcelo Carrard

O cinema italiano pós-Segunda Guerra Mundial é marcado pela consolidação do neorrealismo e a imposição de uma nova ética e estética cinematográficas. Ainda no início da década de 40, um conjunto de filmes fundou esse movimento de grande influência para a criação dos “novos cinemas” mundo afora. Nesse contexto, Obsessão (1943), de Luchino Visconti, Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, e Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica, por exemplo, são três obras fundamentais que ganharam a admiração do público e da crítica. Paralelamente ao renascimento da indústria cinematográfica italiana, marcada por um grande volume de filmes produzidos e uma diversidade de gêneros, começa a surgir uma produção cinematográfica mais popular, na qual filmes com temáticas ligadas ao universo fantástico começavam a ser forjados pelas mãos de diretores como Riccardo Freda e Mario Bava (por sua vez, filho do mestre dos efeitos especiais Eugenio Bava, um dos nomes responsáveis pela confecção do clássico Cabíria (1914), de Giovanni Pastrone).

Como os filmes de horror eram proibidos pelo regime ditatorial de Benito Mussolini, Caltiki – O Monstro Imortal (1959) e Os Vampiros (1957), respectivamente dirigidos por Freda e Bava, foram os primeiros filmes do gênero produzidos na Itália depois do fascismo. Em 1960, num trabalho solo na direção, Mario Bava lança o cultuado e influente A Máscara do Demônio. Com essa obra-prima do cinema gótico, ele fundamenta o horror cinematográfico italiano e inicia uma carreira capaz de influenciar todos os outros diretores que se aventuraram por esse gênero. Mas, o cineasta não parou por aí e, logo em seguida, lançou o clássico Olhos Diabólicos (1963) e a antologia As Três Máscaras do Terror (1963), na qual já se percebia o aperfeiçoamento de seu enorme talento. Quando realizou Seis Mulheres para o Assassino (1964), Bava criava, então, o thriller italiano, posteriormente conhecido como giallo, que se popularizou e se tornou o mais influente e bem sucedido dos filões do horror cinematográfico local.

Mas, em termos mais didáticos, o que seria o giallo? Para começar, giallo significa amarelo em italiano. Essa é a cor dos populares livros de mistério e crime da Editora Mondadori, que publicou a obra de autores populares como Agatha Christie, bem como autores ainda não tão conhecidos do grande público. As histórias de crimes violentos e barrocos cometidos por assassinos misteriosos, com um subtexto sexual sempre presente, marcam o conteúdo desses livros, transpostos para a tela a partir dos anos 60, mas cuja explosão de popularidade e bilheteria permaneceria na década seguinte, até mesmo fora da Itália, com o lançamento do clássico absoluto O Pássaro das Plumas de Cristal (1970), de Dario Argento. O filme inicia a cultuada Trilogia dos Animais, composta também por O Gato de Nove Caudas (1971) e Quatro Moscas sobre Veludo Cinza (1972).

Dario Argento é um herdeiro e discípulo estético de Mario Bava. Vindo da crítica cinematográfica, é filho do produtor Salvatore Argento e da fotógrafa brasileira Elda Luxardo. A construção e o desenvolvimento de seu estilo visual singular criaram uma escola dentro do giallo e do horror italiano como um todo. A arquitetura, a pintura, as “cores da escuridão” que vêm de Bava, assim como a trilha sonora e os barroquismos operísticos, se fundem a uma representação cada vez mais extrema e estilizada da violência. Essa estilização explode nas telas quando ele lança o giallo clássico e fundamental Prelúdio Para Matar (1975). Muitas de suas obsessões estéticas estão nesse filme: a imagem dos olhos vigilantes na escuridão, a figura da mulher na janela etc. Primeiro filme de Argento com a colaboração do Grupo Goblin na trilha sonora e a presença em cena de David Hemmings, o cultuado ator do Blow Up (1966) de Antonioni, e Daria Nicolodi, que foi casada com Dario e é mãe da atriz Asia Argento. Das influências desse diretor, que é praticamente sinônimo de giallo, destacam-se obras clássicas de Edgar Allan Poe e William Shakespeare, passando pela grandiosidade da ópera e filmes como Internato Derradeiro (1969), de Narciso Ibañez Serrador, School of the Holy Beast (1974), de Noribumi Suzuki, e O Gabinete do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene. A arquitetura e a geometria criadas por Dario Argento passam a ser o cenário onde suas figuras homicidas vestidas com chapéu, capa de chuva e luvas pretas cometem seus crimes regados a profundas e abissais formas de insanidade, sempre portando suas lâminas que brilham na escuridão.

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De uma forma geral, podemos afirmar que Bava, Argento e os demais diretores que se aventuraram no giallo beberam de fontes comuns. Uma delas, com certeza é o film noir norte-americano, com suas derivações expressionistas. Essas influências já nos conectam a dois mestres extremamente fundamentais para várias gerações de realizadores: Fritz Lang e F.W. Murnau. Mas, além de Lang e Murnau, temos outros dois mestres com trabalhos posteriores aos deles, que se consagraram mundialmente com o passar do tempo: o britânico Alfred Hitchcock, que dispensa comentários, e o genial Diretor francês Henri-Georges Clouzot, trazendo sua profunda sensibilidade cinematográfica. Film Noir, Fritz Lang, Murnau, Hitchcock, Clouzot, Livros Amarelos da Mondadori: com esses ingredientes básicos, pode-se dizer que o fenômeno cinematográfico popular chamado giallo se consolidou e garantiu seu lugar cativo na história do cinema. Mas, para a sorte dos espectadores, cada diretor acrescentou seu molho especial nessa receita básica, criando filmes inesquecíveis.

Nesse sentido, é importante ressaltar que outros diretores tiveram vital importância para a produção de filmes gialli. Resumindo muito, vamos destacar alguns. É impossível falar sobre os filmes gialli italianos, sem citar os trabalhos do mestre Lucio Fulci. Popularmente, Fulci é mais conhecido do grande público como o “pai dos zumbis italianos” ou como o “godfather of gore”. Sim, sua Trilogia do Inferno, composta pelos filmes Terror nas Trevas (1981), Pavor na Cidade dos Zumbis (1980) e A Casa do Cemitério (1981), são de enorme relevância para a história do horror cinematográfico italiano. Mas Fulci também se aventurou por vários outros gêneros, incluindo até o western spaghetti. No giallo, o cineasta contribuiu com quatro títulos emblemáticos. O Estranho Segredo do Bosque dos Sonhos (1972) foi um filme polêmico, ambientado em uma pequena cidade italiana onde meninos são assassinados. A obra conta com a presença da atriz cearense Florinda Bolkan, que protagoniza uma das sequências mais perturbadoras da história do cinema, quando cruza o caminho de um bando de agressores. Outro destaque feminino do elenco é a atriz Barbara Bouchet, como a ambígua e sensual Patrizia, que protagoniza uma polêmica sequência de nudez e sedução de um garoto. Bouchet estrelou filmes gialli importantes como O Ventre Negro da Tarântula (1971), de Paolo Cavara, além do extremamente erótico Em Busca do Prazer (1972), de Silvio Amadio.

Florinda Bolkan trabalhou com Fulci no ainda mais polêmico Uma Lagartixa com Corpo de Mulher (1971), um giallo “embebido” em ácido lisérgico, ambientado em Londres, com forte acento erótico, trilha sonora inspirada do mestre Ennio Morriconee boas doses de violência gráfica que proporcionaram ao filme diversos problemas com a censura. Em 1977, Fulci lança Premonição. Protagonizado por Jennifer O’Neill, o filme surpreende por não ter uma violência extrema, mas ganha pontos por seu engenhoso roteiro e pela excelente atmosfera, acentuada pela antológica trilha sonora de Fabio Frizzi. Já em 1982, o cineasta realiza o violentíssimo e polêmico O Estripador de Nova Iorque. Esse giallo pode ser considerado o mais sanguinolento de todos, ao lado de Tenebre (1982), de Dario Argento, embora Fulci tenha ido mais a fundo – e de maneira mais perturbadora – na representação da sexualidade quase mórbida, bela e ao mesmo tempo abjeta de seus personagens. Uma dicotomia, aliás, muito presente nos filmes gialli.

Entre a década de 60 e 70, o cinema de autor feito na Itália era consagrado mundialmente pela crítica e por premiações em festivais de cinema e indicações ao Oscar. Paralelamente, a produção do chamado cinema popular italiano movimentava a indústria cinematográfica do país: os gialli, os westerns, os filmes policiais, os filmes de heróis mitológicos, os Peplum e as comédias eróticas (que tanto inspiraram nossas pornochanchadas) levavam multidões às salas de cinema. Depois do sucesso comercial da Trilogia dos Animais, de Dario Argento, muitos gialli foram produzidos. Sendo assim, outros diretores se destacaram dentro cenário, como é o caso de Umberto Lenzi, por exemplo, uma espécie de pioneiro dessas narrativas de mistério, crime e sensualidade, realizador dos clássicos O Louco Desejo (1959) e Tão Doce Quanto Perversa (1969). Este segundo filme conta com a presença de uma das musas do giallo Carroll Baker. Após essas incursões no thriller policial e no suspense, Lenzi parte para a produção de dois gialli violentos e cultuados: Sete Orquídeas Manchadas de Sangue (1972) e Gatti Rossi in un Labirinto di Vetro (1975). Além dessa contribuição importante, Lenzi também inaugurou outro subgênero italiano do horror cinematográfico: o ciclo dos filmes de canibais, com o clássico Mundo Canibal (1972).

É impossível falar sobre giallo sem citar os filmes que Sergio Martino dirigiu com o protagonismo absoluto da musa Edwige Fenech. Fenech foi uma atriz exuberante, cuja beleza, na opinião de muitos, remete à nossa musa da boca do lixo paulistana Helena Ramos. Sergio Martino obteve destaque em seu primeiro giallo, O Estranho Vício da Sra. Wardh (1971), trabalhando muito bem os elementos do subgênero e suas imagens. Em seguida, vieram o psicodélico Todas as Cores da Escuridão (1972), onde Fenech protagoniza rituais de “paganismo lisérgico” ao som da antológica trilha sonora de Bruno Nicolai, e No Quarto Escuro de Satã (1972), obra em que Fenech exercita sua mais completa vilania. Outro grande destaque de Martino, dessa vez produzido pelo poderoso Carlo Ponti, é o violentíssimo Torso (1973), estrelado por outra musa do giallo, Suzy Kendall. Ao lado de Banho de Sangue (1971), de Mario Bava, Torso é um filme-chave para a criação do slasher norte-americano, que teve seu auge de popularidade nos anos 80.

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Da gigantesca produção de filmes gialli concentrados entre os anos 60 e 70, vamos destacar mais alguns títulos de grande relevância não só para esse filão, mas para a história do cinema italiano. À época, essas obras eram, em sua maioria, desprezadas pela grande crítica, por sua vez dotada de um perfil mais acadêmico, interessado no ciclo de filmes políticos italianos e no trabalho de autores mais intelectualizados como Antonioni, Fellini, Pasolini, Ferreri, Scola, Pontecorvo e tantos outros mestres.

Começo destacando um diretor pouco incensado até pelos novos críticos, mas que dirigiu dois filmes gialli muito particulares: Armando Crispino. Em Macchie Solari (1975), somos transportados para um pesadelo durante uma escaldante onda de calor em Roma. A protagonista do filme, uma mulher sexualmente reprimida que trabalha em um necrotério, passa a ver os mortos se levantando e transando num surto delirante. Antes disso, Crispino havia realizado seu primeiro trabalho de destaque no giallo L’Etrusco Uccide Ancora (1972), pouco conhecido, mas muito bem realizado e até melhor que muitos filmes feitos na mesma época.

Outro nome a ser ressaltado é o do eclético diretor Massimo Dallamano, que fez duas importantes contribuições para a difusão do giallo como fenômeno de sucesso dentro do cinema popular italiano, destacando-se o impressionante O que Vocês Fizeram com Solange? (1972). Outros títulos de grande destaque dentro desse “universo amarelo” seriam O Carrasco da Mão Negra (1972), de ToninoValerii, famoso por causa da pesadíssima sequência de assassinato em que é usada uma serra circular; A Casa das Janelas Sorridentes (1976), do versátil diretor Pupi Avati, um dos mais atmosféricos e perturbadores gialli já feitos, que cita a cidade do Rio de Janeiro, através de um afresco de São Sebastião restaurado pelo protagonista numa pequena cidade italiana; e dois gialli do diretor Luciano Ercoli: A Morte Caminha de Salto Alto (1971) e La Morte Accarezza a Mezzanotte (1972). Os dois filmes foram grande influência para diretores que se aventuraram posteriormente no suspense/thriller, como Brian De Palma, por exemplo.

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De maneira extremamente resumida, tentei apresentar neste texto o giallo, o mais italiano dos subgêneros do horror cinematográfico, falando de suas raízes e de alguns de seus mais influentes e relevantes exemplares realizadores. Claro que muitos ficaram de fora. Espero que esta modesta contribuição instigue ao leitor a caçar outros filmes e mergulhar nesse mundo de mistério e alucinação. Esse universo de cores e delírios foi homenageado por um talentoso casal de diretores, Bruno Forzani e Hélène Cattet, nos recentes Amer (2009), A Estranha Cor do Suor do Teu Corpo (2013) e Cadáveres Bronzeados (2017). Além deles, o cultuado diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn, em seu polêmico e controverso O Demônio de Neon (2016), também faz transbordar na tela todas as “cores da escuridão” do cinema de horror italiano, homenageando Bava e Argento e, por consequência, o delirante, violento e sensual universo dos filmes gialli.

Com o surgimento das novas tecnologias (DVD, Blu-ray, torrent, streaming), os gialli foram redescobertos por jovens cinéfilos e críticos, com a benção de fãs famosos como Quentin Tarantino, Guillermo Del Toro, Tim Burton e Martin Scorsese. Quando Christopher Lee apresentou a série sobre os cem anos do horror no cinema, coincidindo com os cem anos da invenção do cinema, falou sobre Mario Bava em um dos episódios e até mostrou uma sequência de Lisa e o Diabo (1973). No final, atribuiu ao mestre italiano a frase que intitula esse artigo: “O Amarelo é a Cor do Medo”.