Letícia Badan
As relações entre cinema e artes plásticas, independente do viés pelos quais sejam exploradas, não deixam de negar um caráter de duplicidade no vínculo entre o objeto artístico e o fílmico. Essa via de mão dupla reflete um aspecto dotado não apenas de múltiplos sentidos, mas também de questões submersas, cuja chegada à superfície se dá através de fricções, comparações e análises entre ambas as esferas. Desde os seus primórdios, o cinema de ficção é pródigo de conexões com as artes plásticas, buscando no referencial pictórico certo ideal de representação por vezes artístico, histórico ou documental. Seus realizadores nutrem-se de imagens e ideias amplamente figuradas pela pintura, fazendo com que a vida do objeto escolhido seja prolongada e adquira novos olhares, quando posta em diálogo com o cinema.
No horror, no thriller e na ficção científica, para além da sobrevida característica dessa relação visual, certo traço macabro perpassa tal intersecção. Uma pintura, que, em princípio, não apresenta um caráter de fantasmagoria, pode revelar esse mesmo aspecto quando em contato com o gênero. Diversos filmes de horror contemporâneo insistem nessa chave. Para citar apenas alguns exemplos, basta ter em mente o retrato de Valak, entidade demoníaca de Invocação do Mal 2 (2016,) de James Wan e a tela modiglianesca que perturba o jovem Stanley em It – A Coisa (2017), de Andy Muschietti. Outros aspectos ainda podem ser salientados. No cinema de horror, até a mais harmônica e plácida das pinturas, o singelo nascimento de uma deusa, é capaz de despertar os mais profundos horrores naqueles que a observa[1].
O cinema produzido na Itália, especificamente através dos filmes de gênero dos anos de 1960, trazia à tela temáticas relacionadas ao poder fantasmagórico da arte, fosse ela de ordem pictórica ou escultórica. Vale salientar que esse aspecto é consideravelmente recorrente na obra de cineastas como Mario Bava (A Máscara do Demônio, 1960), Giorgio Ferroni (O Moinho das Mulheres de Pedra, 1960) e Camillo Mastrocinque (Um Anjo para Satã, 1966), por exemplo. Nas produções dos anos 70, 80 e 90, outros aspectos são identificados. Há uma notável presença da “Guernica” de Picasso, na Manhattan distópica de 2019 – Depois da Queda de Nova York (1983), de Sergio Martino. Em Noite Maldita (1991), de Umberto Lenzi, são as gravuras de Rugendas que narram a angustiante sina dos escravos zumbis, os quais, noite após noite, levantam-se de seus túmulos arrastando seus grilhões e vingando-se dos habitantes de uma fazenda brasileira. Ou, ainda, A Síndrome Mortal (1996), de Dario Argento, que se utiliza das artes de maneira mais contundente, numa exploração dos efeitos psicológicos das obras em seus espectadores. Para além do horror sobrenatural, o gótico e a ficção científica, o giallo igualmente se fortalece de aspectos diversos do objeto artístico, mas nos atentaremos aqui para um elemento muito específico: a relação de duplicidade entre arte e espectador.
Argento, cineasta nascido em Roma, em 1940, possui um amor declarado às artes plásticas, fator de inspiração para grande parte de sua filmografia e produção bibliográfica. Em “Horror – Storie di Sangue, Spiriti e Segreti”, livro de contos recém-publicado pela editora Mondadori, o autor dedica uma das histórias à sua conhecida visita noturna às salas da Galleria degli Uffizi, atordoado com a feição diabólica dos santos de Rosso Fiorentino e a voz feminista que ecoa de “Giudita che Decapita Oloferne”, quadro de Artemisia Gentileschi. Em seus filmes, notamos o atravessamento entre as artes das formas mais variadas possíveis. Prelúdio para Matar (1975), por exemplo, cria um tableau vivant da pintura “Nighthawks”, de Edward Hopper, em meio aos edifícios da Piazza C.L.N., em Turim. Já em Trauma (1993), a pintura de Millais imediatamente trará à memória de David a imagem de Aura Petrescu, e em O Fantasma da Ópera (1998), Argento reconstitui a “Madalena Penitente”, de Georges de La Tour, sob a pele da filha Asia Argento.
Mas é logo em seu primeiro trabalho de direção que o tema das artes plásticas se faz notar com maior veemência. O Pássaro das Plumas de Cristal (1970) narra a história de Sam Dalmas (Tony Musante), um escritor americano que reside com a namorada Giulia (Suzy Kendall) na Itália e se encontra mergulhado em um bloqueio criativo. Certa noite, caminhando pelas ruas de Roma, depara-se com uma cena de violência no interior de uma galeria de arte. Um homem, trajando chapéu, sobretudo e luvas pretas parece atacar uma mulher. O aparente violador foge, e Sam, na tentativa de salvar a vítima, vê-se preso entre duas grandes portas de vidro que selam a entrada do estabelecimento. O espaço interior da galeria, de uma claridade ofuscante, constitui-se em um salão branco com esculturas de grandes proporções, forjadas no que aparenta ser bronze. Os objetos apresentam uma ligeira união temática, uma visão quase modernista de artefatos tribais (alguns se assemelham a armas ou utensílios de caça, outros a totens e deuses). O local é amplo, livre de ornamentação, salvo pelas esculturas dispostas em seu interior. Tal solução contrasta com os demais espaços do filme, em suma escuros e reclusos, nos quais um aspecto diverso de claustrofobia é salientado. A brancura e os reflexos da luz nas portas aproximam a cena das produções hiper-realistas americanas, sobretudo aquelas de Richard Estes, como notado em outras produções de Argento.
Ao longo do filme, descobrimos que o assassino velado de Argento nutre uma forte ligação com o mundo das artes. No passado, ele sofrera um ataque quase mortal que o levou a desenvolver um trauma. Após entrar em contato com uma das pinturas do artista naïf Berto Consalvi (Mario Adorf) – a qual representa a cena fatídica de seu encontro com o agressor –, o trauma ressurge, levando-o a um distúrbio de personalidade que o faz cometer assassinatos. A pintura, porém, não apresenta um caráter assombroso apenas para o assassino. A namorada de Sam, ao observar uma reprodução em preto e branco da obra, igualmente sente repugnância e pavor. Perante a imagem, Giulia se mostra amedrontada e abraça o companheiro. A obra de arte aqui tem uma função crucial para a narrativa. Ela conforma um papel no qual porta-se não apenas como objeto de decoração, mas como sujeito, dialogando intimamente com o passado assombroso de seu espectador.
Além de Argento, outros cineastas italianos também conceberam tramas capazes de propor algum tipo de identificação entre o espectador e a arte, como é o caso de Emilio Miraglia em La Dama Rossa Uccide Sette Volte (1972). A narrativa do filme se desenvolve em torno da história de Kitty e Evelyn Wildenbrück, duas irmãs fadadas a repetirem a maldição que assombra sua família. A lenda se faz visível no retrato das antepassadas, conhecidas como Rainha Negra e Rainha Vermelha. Na tela, ambas, trajadas com as respectivas cores de seus títulos, são exibidas numa trágica cena de assassinato e vingança. Apesar da tentativa do avô de dar fim ao destino trágico das netas, o poder emanado pela obra de arte ultrapassa os próprios limites da lenda familiar. Antes mesmo de ouvir a história que circunda a família, Evelyn, quando criança, sofre as influências da pintura. Diante do quadro, ela se vê hipnotizada. Caminhando de uma extremidade à outra do aposento, com a boneca da irmã nas mãos e sem desgrudar os olhos da tela, repete alucinadamente os dizeres: “eu sou a Rainha Vermelha e Kitty é a Rainha Negra, eu sou a Rainha Vermelha e Kitty é a Rainha Negra”. O punhal utilizado para cometer os assassinatos no passado é exposto como uma relíquia pelo avô, logo abaixo da pintura, sobre uma almofada de fino veludo rubro. Evelyn empunha a arma entre os dedos e perfura repetidas vezes a boneca, arrancando-lhe a cabeça sob o eco de uma risada maligna. Evelyn não compartilha o sangue dos Wildenbrück, mas isso não impede que seja igualmente atingida pelos efeitos da composição pictórica.
O poder latente das imagens, expresso nos casos acima citados, ganha força, à medida que elas deixam de ser estáticas e transformam-se em objetos vivos e pulsantes. No cinema de horror, esta constituição estética foi amplamente explorada por Lucio Fulci. Sua filmografia versa, de forma considerável, sobre a questão da arte e da arqueologia. Demonia (1990), por exemplo, resvala sobre as catacumbas das freiras satânicas. Já Manhathan Baby (1982) se vale dos assombros causados por um amuleto egípcio. No entanto, são quatro de seus filmes que apontam diretamente para as potencialidades das artes plásticas atravessadas pelo cinema: Terror nas Trevas (1981), Enigma do Pesadelo (1987), Vozes do Além (1991) e Uma Lagartixa num Corpo de Mulher (1971).
Nos concentremos, então, nesse último que, diferentemente dos anteriores, não se utiliza de uma pintura original, realizada especificamente para a produção, mas de obras conhecidas e consagradas no mundo das artes. O filme apresenta a história de Carol Hammond (Florinda Bolkan), uma mulher de classe média-alta residente em um bairro nobre londrino, cujo estilo de vida difere-se consideravelmente daquele de sua vizinha, Julia Durer (Anita Strindberg), com a qual sustenta uma relação tortuosa. Carol sofre com um pesadelo recorrente no qual envolve-se amorosamente com Julia e em seguida a assassina. Seus sonhos são relatados ao analista, que busca desvendar o significado das imagens de seu inconsciente. Certo dia, o corpo de Julia é descoberto em seu apartamento, e Carol passa a ser investigada pela polícia local pelo homicídio.
Assim, Uma Lagartixa num Corpo de Mulher conserva a progressiva e dúbia reciprocidade dos opostos. Em primeiro lugar, a contraposição feita por Fulci entre as casas da protagonista e de sua vizinha é um importante elemento de reiteração trazido pelo filme. Temos a divisão dos ambientes em split screen. De um lado, um aposento completamente estruturado e sóbrio, o jantar silencioso e a ornamentação antiquada da residência da família Hammond, contrastando com o espaço psicodélico e dionisíaco do apartamento de Julia. Ali, veludos, tapetes, drogas e orgias mesclam-se com o alto volume da música.
Contudo, algo chama a atenção na decoração da casa de Carol Hammond. Enquanto o ambiente – e os residentes ali – são completamente estruturados e austeros, presos nas regras de etiqueta e moralidade, a arte entra para trazer um aspecto de desequilíbrio e desconforto no local, tornando audíveis os problemas camuflados pela máscara de normatividade social que enclausura a família. São diversas as obras presentes na residência, mas algumas parecem colaborar com a atmosfera onírica que perpassa a trama, sendo elas “Bacchanale”, de Salvador Dalí – a primeira de suas pinturas para o balé homônimo de Leonide Massine –, além de diversas pinturas de autoria de Francis Bacon, sobre as quais trataremos em seguida.
É somente no domínio do inconsciente, onde as obras outrora silentes e presas em sua harmonia interna encontram uma voz, que o filme consegue mesclar os conflitos interiores de Carol e os dilemas sociais de sua vida cotidiana. O cisne, retratado na pintura de Dalí como uma referência ao mito grego da rainha de Esparta, Leda, ganha dimensão e peso no sonho, perseguindo Carol num grande campo gramado. As telas de Bacon, por outro lado, se fazem notar numa escala ainda maior. Em meio à coleção de pinturas do referido artista, uma salta aos olhos. Trata-se de um dos estudos inspirados no “Retrato do Papa Inocêncio X”, realizado por Diego Velázquez em 1650. A tela consegue transformar a imagem do Sumo Pontífice, que, com um olhar austero, empunha em mãos a carta com a dedicatória e assinatura do grande retratista espanhol, em uma condição assombrosa, imersa em um ambiente claustrofóbico e obscuro que não parece ter começo ou mesmo um fim. O olhar certeiro, revelador e irrefutável da autoridade retratada reverte-se num grito, uma representação brutal, grotesca e fantasmagórica do Papa.
Serão esses os elementos presentes na pintura, a serem descortinados no inconsciente da personagem. O horror presente na obra, incialmente recluso nos limites da composição, é posto em evidência no plano do subconsciente. O homem que ocupava o trono papal na tela, metamorfoseia-se em todos os familiares de Carol, os quais um a um são vistos por ela tal qual a pintura, mimetizando seu urro atordoante. De feições cadavéricas e bocas abertas, eles se sentam com as palmas abertas sobre os apoios laterais das poltronas, parelhas à imagem presente na composição de Bacon. Ali, na infinitude obscura do universo mental da protagonista, realidade e sonho se embaralham, criando um mundo brutal e aterrorizante, revelado tão somente pelo contato com a pintura.
É interessante notar como todo o espaço de vivência dos Hammond reporta indiretamente a aspectos da pintura. Bacon trabalhou sobre o tema com insistência, criando uma série de dezenas de estudos, nos quais é perceptível a retomada de diversos elementos. Em diversas telas, identificamos ao redor do trono do Papa linhas finas que parecem encarcerar a figura em seu interior. De forma semelhante, são observados na decoração do quarto de Carol, elementos de ornamentação que se reportam às composições de Bacon. O dossel da cama, de um dourado metálico, traz à mente a estrutura de tons amarelos que encerra o troco papal. No consultório de seu analista, no quarto da falecida Julia, o preto parece imperar, nos reportando igualmente tanto à tela quanto ao pesadelo caliginoso de Carol.
Mesmo que de maneira indireta, a arte presente no filme detém um poder e exerce uma constante influência sobre a personagem. Assim, o filme trafega entre os limites do real e do ilusório. Se inicialmente a realidade alucinógena de Julia é replicada nos sonhos de Carol, transformando a ordenação de seu mundo real em um universo cada vez mais caótico e alucinatório, a presença macabra das pinturas de Bacon reitera o aspecto soturno do consciente e inconsciente da personagem. Sua relação de duplicidade com a obra ultrapassa a simples identificação com o personagem, como em Argento ou Miraglia. O domínio da arte se estende a todo o seu entorno.
O poder ameaçador da pintura, nos três filmes acima explorados, reflete como a arte é capaz de despertar sensações de medo e tormento naqueles que as olham. As imagens, em sua totalidade, parecem desenvolver um papel primordial em seu cinema, onde tal característica se mostra como uma obsessão. Elas enganam e elucidam, revelam e omitem. A pintura se mostra como uma porta de entrada para o mundo do inconsciente. Fulci e Miraglia igualmente trafegam por essa via. Não se trata apenas de um mero objeto inanimado. A arte é vista com a importância e presença de um personagem. Desde a identificação do assassino de O Pássaro das Plumas de Cristal à associação visual entre os personagens e as telas de Francis Bacon em Uma Lagartixa com Corpo de Mulher, é possível perceber como, por meio desse paralelismo com a pintura, um processo de transformação dos personagens se faz emergir.
O caráter de duplicidade ou mesmo de identificação entre arte e espectador é um tema que foi amplamente explorado nas diversas produções culturais, sendo inúmeros os autores que trataram do tópico no cinema, na literatura, na ópera e no teatro (Marcel Proust, Alfred Hitchcock, François Truffaut, Brian de Palma, Edgar Allan Poe, Thomas Harris, Lord Byron e H.P. Lovecraf). Assim, percebemos que são diversos os casos em que a pluralidade de questões tecidas no interior das imagens é salientada. O contexto específico do giallo italiano se estabelece no tipo de relação entre objeto artístico e sujeito. Nele, a arte é sempre nociva. Ela revive traumas, desperta medos e, por vezes, até mata.
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[1] Faço referência aqui ao efeito inquietante que o quadro em questão desperta em Anna Manni (Asia Argento), em Síndrome Mortal (1996), de Dario Argento.