Fábio Feldman[1]
Influenciados por filmes de krimi alemães, literatura pulp, thrillers americanos da década de 60, referências contraculturais (visuais e ideológicas) e, acima de tudo, pelo cinema e o ideal de cinema criados por Alfred Hitchcock, o giallo é considerados por muitos fãs do suspense e do horror como um dos gêneros (ou filones) mais ricos a surgir na paisagem cinematográfica italiana pós-década de 60. Ao mesmo tempo perturbador e plasticamente deslumbrante, coeso e desconjuntado, sendo embalado por fortes torrentes psicanalíticas, o giallo foi arquitetado e expandido por artistas importantíssimos, dentre os quais Mario Bava, Lucio Fulci, Sergio Martino, Riccardo Freda, Umberto Lenzi e Luigi Cozzi.
Cozzi, como a maioria de seus colegas de geração, adentrou o universo do giallo aos poucos. Um fanático pelo gênero da ficção científica, iniciou sua carreira como crítico, posteriormente lançando O Túnel do Submundo (1969), ficção-científica experimental de baixíssimo orçamento que, com o tempo, tornou-se um clássico cult. Consolidando uma forte amizade com Dario Argento, ele passou a se interessar pelo universo dos romances de mistério e do então nascente giallo. Colaborou com Argento em diversas empreitadas, tendo coescrito o roteiro de Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza (1971), sido assistente de direção de Síndrome Mortal (1996) e do segmento de Argento em Dois Olhos Satânicos (1990), além de ter produzido os efeitos especiais de Fenômeno (1985), dentre outras coisas.
Para além de suas colaborações cinematográficas com Dario, Cozzi também se estabeleceu como importante cineasta solo, dirigindo filmes de diversos gêneros – da comédia à aventura, do horror ao sci-fi. É autor do icônico giallo Matador Implacável (1975) e, ao longo das décadas, tornou-se um verdadeiro especialista no tema do horror italiano, tendo lançado livros de crítica e biografias.
Em uma conversa franca com a Rocinante, Cozzi declara sua enorme admiração por Argento – que considera o legítimo pai dos gialli –, reflete sobre sua história, as relações dos filmes com a política, outros cinemas e artes, e nos fala sobre seus próximos projetos.
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Em sua opinião, qual foi o primeiro verdadeiro giallo, o marco fundante, o iniciador do filone? E o que o diferencia dos thrillers italianos predecessores?
O primeiríssimo giallo de qualidade foi Aquele Caso Maldito (1959), de Pietro Germi, uma obra-prima que fez grande sucesso em nosso país. Mas não instituiu um gênero, porque, acima de tudo, tratava-se de um filme de autor. Em seguida, vieram Olhos Diabólicos (1962) e Seis Mulheres Para o Assassino (1964), do Mario Bava, dois gialli básicos que continham todos os futuros elementos do gênero, mas que passaram batidos na Itália por terem sido fracassos de bilheteria. O giallo não foi considerado um gênero comercial aqui na Itália até o final de fevereiro de 1970, quando o primeiro filme de Dario Argento, O Pássaro das Plumas de Cristal, estreou. Inicialmente, não criou imitações ou variações porque não foi um sucesso imediato. Porém, Pássaro se tornou um hit surpresa nos Estados Unidos, quando, em maio de 1970, abriu em Nova York como The Phantom Killer (O Fantasma Assassino), atingindo número 1 na bilheteria americana. Esse fato convenceu a distribuidora National General a encomendar à produtora italiana Titanus a filmagem de um segundo giallo assinado por Argento. O Gato de Nove Caudas (1971) nasceu e, quando estreou na Itália, no final de fevereiro de 1971, subitamente, se tornou um enorme sucesso, fundando um gênero seguido por toda sorte de imitações e variações.
No âmbito das influências cinematográficas e literárias, quais seriam algumas das mais importantes para a formação do giallo? E em que sentido vocês foram capazes de ultrapassá-las/subvertê-las?
Dario Argento era um ótimo roteirista e em seu Pássaro das Plumas de Cristal misturou vários elementos oriundos de diferentes fontes: elaborou a história principal, o background psicológico pervertido e a ideia de uma mulher sendo a assassina, a partir da leitura de um romance de mistério de 1949 chamado The Screaming Mimi, de Frederic Brown. Porém, moveu a história de Chicago para um cenário romano similar ao de Mario Bava em Olhos Diabólicos, adicionando também o assassino da luva negra e as longas cenas de assassinato inspiradas por Seis Mulheres para o Assassino. Outra influência de Argento foi o estilo dos krimis, thrillers alemães baseados em Edgar Wallace e lançados na mesma época, enquanto as cenas de jovens ameaçadas certamente vieram das sequências com Audrey Hepburn em Um Clarão nas Trevas (1967), de Terence Young. Todos misturados, tais elementos diferentes se tornaram a base do giallo enquanto gênero.
Em muitos gialli, o herói não precisa descobrir objetivamente a identidade do assassino. O que ele precisa fazer é liberar suas memórias reprimidas e encontrá-lo lá. O senhor acredita que houve um diálogo entre tais filmes e a psicanálise? E ela já lhe serviu, em algum momento, como fonte de inspiração?
Nesse período (começo dos anos 70), logo depois dos levantes estudantis de 1968, jovens não gostavam da polícia, consideravam-na um braço do Estado. Muitos de nós, sendo homens de esquerda, também não gostávamos de policiais, e é por isso que na maioria dos gialli há tão poucos deles em ação. Além disso, há muito pouca ação policial representada em The Screaming Mimi, livro que Argento usou como inspiração para a construção do enredo de O Pássaro das Plumas de Cristal. Filmes do gênero giallo lançados ulteriormente se apropriaram dos moldes de Pássaro. Então, a psicanálise chegou nesse universo fílmico a partir de Argento, derivada por ele do romance de Brown. Livro que, não nos esqueçamos, é considerado nos EUA como fonte de inspiração para Psycho, de Robert Block, posteriormente adaptado para as telas por Hitchcock.
Conte-me um pouco sobre o cinema italiano durante as décadas de 60 e 70, período que nos legou Fellini, Antonioni, Pasolini, mas também autores como Monicelli, Leone, Bava e o senhor. Como eram as interações e trocas que ocorriam entre o mundo do cinema popular e a arena modernista/experimental?
Cinema era algo muito importante e popular na Itália durante os anos 60 e começo da década de 70. Foi um período em que filmes hollywoodianos começavam a perder impacto, enquanto a cultura jovem passava a ganhar poder e desenvolver novas formas de pensamento. Argento e outros como Bernardo Bertolucci trouxeram novas visões para a indústria italiana, que no final dos anos 60 havia sido quase totalmente renovada (como ocorreu em Hollywood na mesma época). Esse também foi o período em que comecei a trabalhar com filmes, possuindo apenas vinte e três anos de idade. Claramente, havia muita interação entre jovens cineastas e a arena modernista/experimental. Um novo estilo mais moderno de cinema estava nascendo. Mais literário, mais político e cultural do que aquele geralmente feito no passado.
A maioria dos gialli são whodunits. Entretanto, tratam-se de whodunits muito peculiares. O nível de estilização aplicado à maioria deles é tão extremo que o enredo quase se torna abstrato… O senhor diria que eles se aproximam mais do ideal hitchcockiano de “cinema puro” do que das regras dos clássicos whodunits americanos, ingleses e alemães?
Os principais gialli não são whodunits clássicos e nunca tiveram a intenção de ser: o whodunit clássico já estava muito fora de moda no começo dos anos 70. Os primeiros modelos de Dario foram filmes como Silêncio nas Trevas (1946), de Robert Siodmak, ou romances como Black Alibi (1942), de Cornel Woolrich, ambos bastante diferentes e mais inovadores do que muitos dos whodunits. Além disso, Dario (e vários outros de nós) tinha grande afeição pelo ideal hitchcockiano de “cinema puro” e sempre foi fiel a ele. Também recriou as incrivelmente longas sequências de duelo forjadas por Sergio Leone, dando à luz as longas sequências de morte das vítimas dos assassinos.
Embora Argento seja considerado um mestre e tenha sintetizado todos os principais elementos do filone em suas principais obras, não há dúvidas de que Bava foi também um grande inventor. Como apontado pelo senhor, a maioria das convenções que Argento aperfeiçoou em produções posteriores já se encontrava em Olhos Diabólicos e Seis Mulheres Para o Assassino. Poderia nos falar um pouco sobre o diretor, seu legado e posição dentro do universo do cinema italiano?
Mario Bava foi um fantástico diretor de fotografia e, tendo sido também um pintor (seu maior hobby e paixão), ele amava brincar com as cores. Mas seus próprios filmes de horror eram quase totalmente ignorados pelas audiências italianas – exceto por alguns poucos jovens fãs entusiasmados com o gênero. Argento, sendo um deles, certamente foi influenciado, no início de sua carreira, pelos filmes de Bava. A principal diferença entre as obras de ambos é a seguinte: Dario, tendo sido ele mesmo um crítico, amava os clássicos e os modernos também, enquanto Mario, sendo mais velho, se inspirava, sobretudo, no estilo do cinema italiano das décadas de 40 e 50.
Na verdade, Mario era, acima de tudo, um diretor romântico e gótico, enquanto Dario era um cineasta mais contemporâneo. Além disso, Bava não era um escritor: ele colaborava em seus roteiros, mas nunca escreveu um inteiro sozinho, enquanto Dario era um escritor, e um escritor muito bom. Assim, Dario sabia compor bons roteiros que podiam fascinar todas as audiências (e ele fez isso, começando com O Pássaro), enquanto Mario sempre fez excelentes filmes graças, exclusivamente, a seu fantástico talento visual e cinematográfico. Os scripts com que trabalhava eram, frequentemente, horríveis, fora de moda e, em alguns casos, até estúpidos.
O senhor poderia descrever seu processo de criação no que tange a um roteiro de giallo? Iniciava possuindo um plot inteiro em mente? Ou começava com cenas elaboradas ou set pieces, prosseguindo daí? Em suma: era mais orientado pela história ou sua abordagem era mais “plástica”, associada à construção de momentos de intensidade?
Cada escritor tem seu próprio modo de compor seus roteiros ou romances. Muitos preferem delinear resumos exatos de cada parte do plot antes de começar a escrever. Alguns apenas sentam e esperam pela inspiração, sem saber aonde a história os levará. Outros usam sistemas de escrita diferentes… Para escrever Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza (1971), eu e Argento partimos da ideia que o herói precisava ser um membro de um grupo de rock; então, começamos a escrever fortes sequências de assassinato, mesmo sem saber quem as vítimas e o assassino eram. Quando as completamos, começamos a procurar por um enredo, a fim de amarrar tudo. Em outros momentos, eu comecei roteiros de giallo sabendo apenas como a cena final precisava ser, posteriormente inventando outras que me levassem a ela… Os caminhos são muitos!
Desde seu primeiro filme, o experimental O Túnel do Submundo (1969), o senhor lidou com ficção científica e fantasia. É possível dizer que seu amor por tais gêneros precede mesmo seu interesse pelo suspense? O senhor é ainda um grande fã?
Eu tenho sido um fã de fantasia/sci-fi desde criança. Até ter conhecido Dario Argento, eu não era um especialista em mistério. Quando me pediu para escrever com ele o Quatro Moscas, a primeira tarefa que me deu foi ler livros de Cornell Woolrich, Raymond Chandler, Dashiell Hammett, Rex Stout, Erle Stanley Gardner, Fredric Brown e Ellery Queen… Bem, ele foi meu professor de literatura giallo e, desde então, passei a amar os gialli também.
Temas fantásticos (especialmente conectados ao Oculto) foram gradualmente incorporados ao seu trabalho, assim como aos filmes de outros mestres. Por que o senhor acha que o gênero começou, em certo momento, a abrir suas portas para temas sobrenaturais?
No começo, Dario queria que elementos relacionados ao Oculto e ao Fantástico fossem mantidos absolutamente FORA dos roteiros de seus próprios gialli. Então, em 1973, O Exorcista veio: foi um gigantesco sucesso ao redor do mundo e ampliou toda a visão que se tinha dos gialli. Finalmente, Dario ousou mesclar giallo e o Oculto e fez Prelúdio Para Matar (1975), filme que se tornou um grande sucesso na Itália e convenceu vários outros produtores e diretores que o filone podia se misturar ao paranormal e, finalmente, ao horror também.
Falando em horror, após o giallo ter atingido seu pico, muitos de seus autores seguiram caminhos diferentes. Um diretor muito consistente foi Lucio Fulci. Tendo dirigido alguns dos gialli mais medonhos e naturalistas dos anos 70, ele permaneceu relevante durante a década seguinte, dedicando-se a filmes de horror perturbadores e sanguinolentos. Quais suas opiniões sobre, ambos, a fase giallo de Fulci e os filmes que fez posteriormente, como Zumbi 2 – A Volta dos Mortos (1979) e Pavor na Cidade dos Zumbis (1980)?
Fulci foi um ótimo cineasta profissional que, durante sua carreira, fez dúzias e dúzias de filmes, passeando por vários gêneros. Mas ele sempre fez aquilo que era mais comercial no período. Por isso, me parece ter sido um diretor imitativo – bom e competente, mas nunca um inventor. Na verdade, ele começou a dirigir gialli apenas após os filmes de Argento terem se tornado fenômenos de bilheteria na Itália. Da mesma forma, Fulci migrou do giallo para o horror após Suspiria (1977) ter feito bilhões aqui. Apesar dessa falta de originalidade, alguns gialli e filmes de horror dirigidos por Fulci são interessantes, porque neles, tentando ultrapassar os de Argento em quantidade de assassinatos e sangue, Fulci atingiu níveis absolutos de gore, criando alguns filmes visualmente absurdos e interessantes, como Zumbi 2, Terror nas Trevas (1980) e Pavor na Cidade dos Zumbis.
Gostaria de perguntar sobre o trabalho que o senhor desenvolveu no campo do horror, especialmente sobre Paganini Horror (1989). Uma das características mais fascinantes dos gialli e de outros tipos de filme dessa época é o fato deles combinarem, sem esforço, elementos de vários campos artísticos diferentes. A ideia de unir uma lenda urbana do universo da música clássica, horror e rock n’ roll é muito interessante! O senhor poderia nos falar um pouco sobre suas aventuras no horror durante a fase pós-giallo e sobre esse impulso pós-moderno que parece nortear seu trabalho e o de tantos de seus contemporâneos?
Na verdade, Paganini Horror parece ser um filme de horror porque foi escrito para parecer assim. Porém, ele é, realmente, um filme de ficção científica sobre tempo, espaço e teorias einsteinianas misturadas com física moderna, relacionadas à possível existência de outras dimensões. Os mesmos temas se encontram em meus The Black Cat (1989) e Blood on Meliès Moon (2016), dois filmes que parecem horror, embora sejam, em essência, puras ficções científicas.
Por que eu gosto de misturar vários elementos diferentes em meus filmes? Bem, na verdade, se analisar a estrutura deles, você descobrirá que, basicamente, a maioria é bem similar: uma moça é a heroína, enquanto um homem é o vilão – um vilão que tende a ser mais idiota e/ou engraçado do que perverso, embora em alguns filmes ele se revele enquanto o verdadeiro herói e o único personagem simpático (como o Demônio em Paganini Horror ou o assassino em Matador Implacável).
Sobre essa estrutura básica, eu gosto de adicionar elementos incomuns, retirando-os dos livros ou filmes (ou música…) que mais gosto e os misturando, a fim de criar algo novo. Mas isso não é um método que eu tenha inventado! É apenas uma forma típica de criação aplicada a todos os “gêneros” de literatura e cinema. Todos que trabalham nesses campos (giallo, horror, sci-fi, western, romance…) sempre usam elementos previamente criados por outros, adicionando novos à mistura.
Alguns diretores também gostam de acrescentar a suas obras elementos tirados de campos criativos totalmente diferentes… E isso, Argento, eu e muitos outros também fizemos. Mas não se trata de um novo “método”: em todas as artes é raríssimo presenciarmos uma obra totalmente nova. Quase todo artista cria seus próprios trabalhos lembrando-se bem de tudo o que foi feito antes por outros criadores no mesmo campo (ou em campos diferentes) antes.
A seu ver, quão forte foi o impacto do giallo nas gerações futuras? O senhor consegue identificar referências a seu trabalho e aos dos demais mestres em obras de artistas como Léon Klimovsky, Brian De Palma, John Carpenter e Quentin Tarantino, só para citar alguns? E acredita haver cineastas contemporâneos capazes de manter viva a tradição aberta por vocês?
O giallo italiano teve um impacto muito grande sobre gerações futuras, de De Palma a Carpenter, entre muitos outros. A partir de Klute, O Passado Condena (1971), que rendeu à sua estrela, Jane Fonda, o Oscar de melhor atriz, muitos cineastas, do mundo inteiro, foram fortemente influenciados pela nova forma de arte cinematográfica criada, sobretudo, por Argento – incluindo dezenas e dezenas de diretores italianos também.
O senhor poderia nos contar um pouco sobre o que anda fazendo hoje em dia? Qual é a história por detrás da PROFONDO ROSSO, sua loja em Roma? E há novos filmes que planeja escrever e dirigir?
Em 1989, após terminar de trabalhar com Argento em Dois Olhos Satânicos [Cozzi foi assistente de direção na segunda parte dessa antologia, co-dirigida por Argento e George Romero], eu comecei a trabalhar na loja que ele fundou, PROFONDO ROSSO[2], a fim de transformá-la em um ponto de encontro para fãs do mundo todo. Assim, comecei a ter menos tempo para me dedicar a filmes e, desde 1995, após ter cuidado dos efeitos especiais de Síndrome Mortal, eu me dediquei completamente à loja e à publicação de uma série de livros sobre cinema. Apenas em 2014, decidi voltar a dirigir e fiz Blood on Méliès’ Moon, um longa de quase duas horas que cruza toda sorte de gênero, do giallo ao sci-fi. Esse novo filme recebeu críticas muito positivas e tem sido exibido em vários festivais internacionais dedicados, sobretudo, ao cinema fantástico, como o SITGES (Catalunha), o BIFF (Bruxelas). Agora estou trabalhando nos efeitos especiais de um novo filme dirigido por mim, The Little Wizards of Oz, uma fantasia a ser lançada até setembro de 2018.
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[1] Agradecimentos a Beatriz Saldanha, Flavio C. von Sperling, Leandro Afonso e Letícia Badan.
[2] www.profondorossostore.com