Um surrealista no capitalismo tardio
João Campos
No início de The Square – A Arte da Discórdia (2017), assistimos a uma cena que não só prefacia o filme, mas sintetiza o gesto da obra. Estamos no pátio em frente ao museu onde a maioria das ações se desenrolará. Uma equipe de construção retira um monumento, que dará lugar a uma nova instalação. Na operação, as coisas vão mal, o cavaleiro do monumento é decepado e a estátua se espatifa no chão. A partir daí, já suspeitamos: não há lugar para o passado no mundo que o filme busca retratar. É possível olhar para o monumento decepado enquanto alegoria do capitalismo tardio, em que o presente imediato engole a experiência sem deixar lugar para as ressurgências do passado. A estátua é ainda índice de eventos que, apesar de irreconhecíveis a nós, podemos tomar, mesmo que arriscadamente, como fragmento dessa História renegada. De outra coisa podemos ter certeza: em cena, tudo ruirá.
Ruben Ostlund, em sua filmografia, nos reconduz a situações do cotidiano, mostrando sua face estúpida e indeterminada. Em seus filmes anteriores, principalmente Involuntário (2008) e Força Maior (2014), o autor põe em cena os desentendimentos, trapalhadas e desgraças que surpreendem as pessoas em suas interações no mundo – vale dizer, mundo urbano, capitalista, globalizado. Hipocrisia e cinismo marcam as ações de suas personagens, elementos que, em The Square, alcançam um exagero absurdo, devido a distorções surrealistas.
O curador de um importante museu de Estocolmo protagoniza a obra, dando o mote para que o filme perscrute as relações que envolvem distribuição e recepção da arte contemporânea, desenvolvendo uma crítica debochada. As reuniões de curadoria e marketing, a montagem da instalação “The Square”, uma celebração com um grupo de mecenas, o momento da limpeza das salas do museu etc., tudo no dia-a-dia da instituição é conectado ao caos.
Parte da força dessa mise-en-scène está na justaposição entre a falta de sentido que embala o mundo da arte contemporânea e as confusões e desentendimentos que proliferam entre os personagens. A obra de Ostlund parece se esforçar para trazer à tona as confusões recalcadas do cotidiano, aproveitando suas virtualidades tragicômicas. Partimos do museu, sob o ponto de vista de seu curador, para uma estranha errância, uma verdadeira comédia de erros, cuja história lembra Fargo, dos irmãos Coen.
Ao justapor o mundo da arte contemporânea, com seus discursos opacos e vazios, a situações da vida ordinária, o cineasta produz choques e faíscas. Há claramente um enredo, mas este é composto a partir de esquetes absurdistas, como numa sucessão de happenings. Tal operação de justaposição absurda – cara aos surrealistas – faz da mise-en-scène de The Square uma reunião selvagem de mundos aparentemente distantes. Estes, no decorrer da história, se afetam e até se misturam. A confusão no que diz respeito ao entendimento ou acesso a complicadas obras conceituais encontra a agonística do dia-a-dia: um zelador destrói uma instalação ao varrê-la do chão, onde deveria permanecer exatamente do jeito que estava (montes simétricos de areia dispostos numa sala); o curador é assaltado numa engraçada operação nas ruas de Estocolmo, e escolhe lidar com a situação da maneira mais estúpida possível, ameaçando os ladrões (e todos os seus vizinhos); ofendida, uma criança demanda prestação de contas, seus gestos violentos transpiram ódio, elemento que se choca com sua fragilidade enquanto figura pobre e indefesa; a campanha de marketing da instalação “The Square” desemboca num escândalo público, o que também demanda reparação. No filme, não há quem não se afogue na lama.
Se a obra de Ostlund já se interessava pelo signo do caos que atravessa nossas relações com e no mundo, em que The Square difere, por exemplo, de uma obra-prima como Força Maior? Sem a ambição de dar conta da questão, exploro apenas um caminho: no segundo, a montagem contribui para uma composição harmônica e bem estruturada; os segmentos se conectam de modo a vislumbrarmos claramente o dispositivo que organiza a mise-en-scène. A história é dionisíaca, mas a forma é apolínea. Em The Square, a forma se desestrutura, a desordem se infiltra nas operações estéticas, os cortes são abruptos, as situações se conectam indeterminadamente, numa crueza que retoma o gesto de The Guitar Mongoloid (2004) (obra que carecia de certa maturidade, mas que já revelava, embrionariamente, os interesses do cineasta). Ostlund se deixa levar pelas intensidades dos mal-entendidos, chegando ao ápice na cena em que uma performance ultrapassa os limites do tolerável – ou mesmo da ética. Não sabemos absolutamente nada do artista, mas sua performance parece explorar a face animalesca do homem, numa espécie de simulação de um estado de natureza. Ficção ingênua, mas que é encenada enquanto coreografia agressiva – chocante no contexto do jantar de gala no museu (que lembra o jantar de O Anjo Exterminador (1962)), palco da encenação. O artista tateia os convidados, cheira seus corpos, procura piolhos em seus cabelos, os ameaça com grunhidos e gestos expansivos. Por fim, tenta estuprar uma das convidadas, que grita por socorro. Diversos convidados (cada vez mais!) começam a espancar o performer. Em cena, tudo rui..
O filme de Ostlund parece querer liberar as forças destrutivas do absurdo. Encenar o mundo da arte burguesa como estúpido e hilariante é desestabilizar um universo hegemônico, assim como fizera antes o grande Buñuel. Nos surrealistas, Walter Benjamin louvava uma inteligência movida por uma “iluminação profana”, capaz de produzir “desvios perturbadores”[1]. Para o filósofo, o objeto mais onírico (e, portanto, horripilante) concebido pelos surrealistas foi a cidade de Paris, e “nenhum rosto é tão surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma cidade”. Em The Square, Ostlund se aproxima desse ímpeto, ainda que acanhadamente. Suas esquetes retomam a imagem da Paris surreal, “capital do século XIX”, onde “o que se passa entre as pessoas se move como uma porta giratória”. A estupidez, o individualismo e o cinismo que atravessam as situações se transformam em elementos de uma crítica embriagada. Em cena, toda expectativa de congruência e linearidade é frustrada pela embriaguez das conexões – entre as esquetes, por exemplo. Retomo o texto de Benjamin: “Em todos os seus livros e iniciativas, a proposta surrealista tende ao mesmo fim: mobilizar para a revolução as energias da embriaguez”. E ainda: “em outras palavras: uma política poética?”.
Reelaborar o passado – da política, da forma – de modo reflexivo foi uma das forças manifestas do cinema moderno, e The Square logra nesse caminho ao exagerar e justapor fragmentos da experiência contemporânea para fazer pensar e, muitas vezes, gargalhar.
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[1] BENJAMIN, Walter. “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”. In: Obras Escolhidas I – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.