Uma Lagartixa num Corpo de Mulher (1971), de Lucio Fulci

O médico e o monstro no paz e amor desacreditado

 Leandro Afonso

Inicialmente um diretor de comédias, Lucio Fulci não dispunha do mesmo domínio cômico de um Federico Fellini, um Dino Risi ou um Mario Monicelli. Sendo assim, aproveitou seus primeiros longas para se familiarizar com a câmera, que posteriormente utilizaria para captar menos sonhos e risadas que pesadelos e mortes. Com esse foco, o cineasta demonstrou crença inabalável não no quadro, mas no plano, não na fotografia, mas no movimento, indo muito além do fetiche pela sanguinolência explorado em seu cinema, especialmente, do fim dos anos 1970 em diante. Em Que o Céu a Condene (1969) e Uma Sobre a Outra (1969), Fulci começa a assumir o gosto pelo mistério e pelo horror, antes de consolidá-lo de uma vez por todas em Uma Largartixa num Corpo de Mulher  (1971).

Nesse whodunit à italiana, cria-se um quebra-cabeças em que as peças estão sendo (re)embaralhadas o tempo inteiro. O maneirismo da encenação se encaixa no habitual horizonte de expectativas de um giallo, mas Fulci – crítico de arte antes de se tornar cineasta – vai além. Uma Lagartixa num Corpo de Mulher é, em certo aspecto, o resgate de uma iconografia tradicional italiana, ao mesmo tempo em que é uma possível resposta à pergunta: como entender o mundo e o cinema em 1971?

A protagonista sofre de um transtorno de dupla personalidade, o que nos leva a “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Stevenson, livro lançado no final do século XIX, mesma época em que nascia a psicanálise freudiana. Essa protagonista, com suas personalidades, faz psicanálise. Porém, ela se consulta no período influenciado pelo flower power de Ginsberg, pelo summer of love e pelo movimento hippie, momentos fincados nos anos 1960, quando também é fundada a Escola Freudiana de Paris. Todos esses elementos estão lá, na época e no filme, mas o roteiro se desvia das expectativas óbvias. Ele engana quem acredita que a protagonista é uma releitura de Dr. Jekyll, de “O Médico e o Monstro”. Engana quem acredita que ela contou a verdade para seu psicanalista. Para encerrar, engana também quem acredita no movimento hippie como inofensivo. A psicodelia do ácido, presente no imaginário coletivo da época, é interpretada menos como uma experiência sinestésica transcendental que como um delírio agressivo. Hippies se divertem confundindo um ser-humano com um réptil, mas também se divertem assassinando. Em Uma Lagartixa num Corpo de Mulher, resumindo muito brevemente ideias complexas, essa mescla entre o autoconhecimento profundo e o pacifismo idealizado não é harmônica. O quebra-cabeças se mostra pouco generoso com os modismos, por mais bem-intencionados que eles sejam. Para Fulci, pelo menos aqui, o paz e amor freudiano só poderia existir em conjunção com suas dualidades e contradições.

Analisado em perspectiva, o longa pode ser crucificado por esse olhar. A cena dos cachorros e suas vísceras parece existir não exatamente por sua importância estética ou dramatúrgica, mas pelo desejo do diretor mostrar sua simpatia pela medicina, curso que abandonou antes de fazer cinema. Outro ponto fundamental diz respeito à posição do cineasta diante da psicanálise. O personagem do terapeuta pode passar a impressão de estar mais interessado em narrar o filme que o cineasta apresenta ao público do que, necessariamente, exercer suas atividades profissionais.

Fulci, contudo, é alguém essencialmente do cinema e, fundamentalmente, do cinema de horror. Este é o fim que todos os meios se esforçam para alcançar, não importa qual seja seu método. Além de captar a libido e o homicídio com o mesmo desejo lascivo-estético (um afago às pulsões de vida e morte?), o cineasta deixa claro esse desejo também nas cenas familiares, na conversa entre pai e filha (dá para parecer mais incestuoso?) e nas paredes pintadas com facas, só para citarmos alguns exemplos. No filme, a experiência plástica é sempre mais forte que a inventividade de suas resoluções narrativas.

Isso não significa, todavia, que Uma Lagartixa em Corpo de Mulher se resuma a um exercício de estilo requintado e narcísico na sua tradição giallo. Ele também compra brigas. Em palavras mais diretas, o filme não acredita na psicanálise e não acredita no movimento hippie. Pode-se dizer que pesa a mão numa abordagem preconceituosa, especialmente no que diz respeito aos efeitos alucinógenos do LSD, mais fieis às ideias do diretor que aos impactos usuais da droga. Por outro lado, é fácil jogar pedras no longa com o olhar contemporâneo, capaz de encontrar qualquer informação a poucos dígitos e um clique. À distância de quase meio século, parece mais adequado salientar a coragem de quem pondera: desconfie, sempre desconfie…

Essa desconfiança, sublinhada aqui, visa esclarecer que o filme vai além da potente experiência sensitiva a olhos e ouvidos. Ele é, de fato, menos pedagogia que estética, menos um estudo de personagem e mais um estudo de linguagem. Entretanto, também é menos um panfleto ideológico e mais um texto crítico, embora às vezes enviesado. A desconfiança ser maior que a fidelidade é algo que está em sintonia com o whodunit, mas o longa pega os modismos da época e os encara na contramão. Em suas imagens, em seus movimentos e em sua dúvida, Uma Lagartixa num Corpo de Mulher é o reflexo de um cineasta desassossegado, que, provavelmente, atinge ali sua maturidade como artesão de uma imagem que aceita o inverossímil ou, até mesmo, o ideologicamente contestável, mas não aceita nenhum plano ordinário.