Zama (2017), de Lucrecia Martel

Partilhar um sonho, um mundo

Hannah Serrat

Lucrecia Martel realiza Zama (2017), seu último filme, como quem, resistente e crítica aos horizontes dos homens brancos europeus, reinventa um sonho, entre ameaças e desacolhidas. Se, nas entrevistas concedidas à imprensa desde o lançamento do filme, a realizadora convoca a ficção científica para repensar a elaboração das narrativas históricas, não é para projetar o filme em direção a um futuro distópico, mas para reencontrar, nas fraturas do passado, algo desolador e fantástico que ainda hoje se anuncia. Não se trata bem de uma aproximação com as narrativas apocalípticas de Hollywood, mas, talvez, com as cosmologias ameríndias e africanas daqueles que, há pelo menos cinco séculos, aprenderam a viver após o fim do mundo[1]. Zama é um filme que se volta à colonização latino-americana para melhor cindi-la, entre a tentativa de uma afirmação constante identitária e os assombros de figuras de alteridade que se multiplicam em seu entorno.

A primeira imagem do filme em que vemos Zama (Daniel Giménez Cacho), o protagonista, bem vestido e imponente diante da margem do rio (que ali quase se assemelha ao mar) pode ser lida como a operação de uma distância entre o funcionário da coroa e a intransponível barreira que o separa de sua partida. No entanto, parece ser mais que isso: ali, já se esboça um enfrentamento fundamental entre a constituição bem marcada e definida de uma força identitária e seu encontro com o Outro, figurado na incomensurabilidade da natureza, na presença das mulheres, dos bichos, das crianças e dos espíritos que, quando não coabitam o quadro, parecem vir perturbá-lo do fora de campo. Martel trata, com isso, de fissurar um imaginário liso e solipsista da história, retratando um território intensamente povoado. Ao adentrar nas questões individuais e existenciais de seu protagonista, o filme nos lança, a cada vez, para fora e não para dentro. Reverberando, de certo modo, a bela crítica de Davi Kopenawa, que nos atenta:

 “Os Brancos só nos tratam como ignorantes porque somos gente diferente deles. Mas seu pensamento é curto e obscuro; não conseguem ir além e se elevar, porque eles querem ignorar a morte. […]. Os Brancos não sonham longe como nós. Eles dormem muito, mas só sonham consigo mesmos[2].

Reinventar um mundo sonhado, vivamente assombrado, que acolha sua própria pluralidade e nos aponte para as potências dos encontros com o Outro e  com a morte, revolvendo a força de uma experiência histórica fundante: eis a maestria de Martel em se engajar em tão audaciosa tarefa.

Desenvolvido ao longo de nove anos, em parceria com produtores e produtoras internacionais (entre eles, a brasileira Vânia Catani), Zama é a primeira adaptação da realizadora argentina para o cinema, remontando o celebrado romance homônimo de Antonio di Benedetto, publicado originalmente em 1956 e dedicado a narrar a permanência de Dom Diego de Zama, funcionário da coroa espanhola, em um pequeno povoado no interior do Paraguai, quando a sua transferência passa a ser indefinidamente adiada. Situado no século XVIII, como no livro, e filmado na região do Gran Chaco, entre a Argentina, o Paraguai, a Bolívia e o Brasil, o longa se furta de oferecer referências espaciais ou datas históricas, levando-nos a acompanhar a passagem do tempo e os deslocamentos no espaço por inferências contextuais, pela caracterização dos personagens e dos lugares filmados. Sem se comprometer com uma fidelidade factual da narrativa, Zama aposta em figuras de estranhamento e presenças fantasmáticas que colocam em questão a impossível concretização do horizonte de perspectiva colonizador. É na esfera do absurdo que qualquer investida nesse sentido parece ressoar. Afinal, como afirmar, como faz um funcionário da Coroa em expedição, ameaçado pela presença de dois indígenas guanás, cujas cabeças são cobertas por cocos na forma de um bico de pássaro, e acompanhado por pobres homens, perdidos e desolados, que “o Rei da Espanha, senhor destas extensas terras, manda saudações e oferece sua amizade”? Uma frase como essa que, em outros contextos, poderia dar lugar ao aniquilamento de comunidades inteiras, se esfacela no instante seguinte à enunciação. O grupo de sete homens armados, supostamente à procura de um temido saqueador, nada pode diante dos dois indígenas solitários e a força de sua presença. Na faixa sonora, o canto alto das cigarras, dos grilos e do vento, torna o desenlace desse encontro ainda mais desconcertante.

Se, no centro da narrativa, está a presença dos homens brancos, dos funcionários da coroa, de um comerciante, da esposa de um ministro, ou mesmo dos homens pobres à procura de enriquecimento, nas bordas, onde se encontram os animais, as mulheres, as crianças e os homens, negras, negros e indígenas, o delicado e cuidadoso registro de Martel encontra uma potência disruptiva. A realizadora não trata de acolhê-los na cena apenas à título de figuração, nem continua a endossar representações irrisórias. Muito pelo contrário: é, ali, onde nossos ouvidos não alcançam, onde os rostos ora se retraem ora nos encaram ativamente, onde uma fala, um gesto ou um rito não encontram tradução possível em nosso vocabulário que o filme trata de desordenar o universo europeu aparentemente bem demarcado e que, perversamente, é aquele que uma espectatorialidade colonizada, como a nossa, parece compreender melhor. O mundo onírico e quase surrealista construído por Martel não é, portanto, apenas dirigido à inserção do absurdo que vem desmontar o desejo colonialista; é também um modo de acolher e provocar cisões onde o devir identitário já não dá conta de encerrar um território constituído de relações de alteridade tantas vezes subestimadas.

Em meio a isso, o infortúnio de Zama é julgar estar mais próximo à coroa espanhola que aos nativos locais. É renunciar ao presente vivido e se encantar com as taças e o luxo de Luciana Piñares de Luego (Lola Dueñas). De certa forma, o assessor jurídico se vale do poder tal como as vestes reais se assentam sobre seu corpo nu – de modo superficial e temporário. A figura do homem negro escravizado, que aparece em alguns momentos no filme portando uma mensagem para Diego de Zama, é emblemática nesse sentido. Apenas metade de seu corpo aparece coberta: a cabeça com uma peruca branca e o busto com um paletó azul. Da cintura para baixo, ele usa apenas uma tanga de pano, as pernas ficam à mostra, e os pés, descalços. Uma vinculação provisória e precária que o distingue dos demais, mas também não o localiza propriamente junto aos funcionários do aparato real. Afinal, para ela, o mensageiro há de ser sempre um negro escravizado, nada mais. Se Zama ainda poderia ascender ou conseguir sua transferência, como fazem alguns de seus colegas, a partir de suas relações pessoais e políticas, é um equívoco imaginar como garantida qualquer recompensa pelo trabalho prestado ou uma projeção junto aos membros da coroa. Apesar de ser homem branco de ascendência europeia, Zama não detém nem a nobreza de título nem a de consanguinidade. Ao final, será com os homens pobres e sem nome que ele irá se reunir.

Especialmente, a expressividade do olhar de Zama, a que o filme atenta cuidadosamente na recorrência de primeiros-planos de seu rosto, é o que concede uma força singular ao personagem que, à medida que o tempo da espera se prolonga, tem cada vez mais acentuado seu estado de desolação e desorientação. A espera é algo que vem, então, se inscrever fisicamente em seu corpo, nos seus olhos, no seu rosto, nas suas vestes. A robustez e altivez de sua identidade, bem vinculada a seu ofício, vão, aos poucos, se desmanchando com o mundo em seu entorno.

Sem enredar-se em qualquer teleologia ou salvação possível, o destino de Zama é não ter destino. O filme torna impossível pensar em qualquer tipo de apontamento para o futuro, a não ser que em meio aos destroços e à falta. A figura de Vicuña Porto (Matheus Nachtergaele), então, que morreu tantas vezes, teve suas orelhas arrancadas e dependuradas num cordão, e que, por fim, parece encontrar-se vivo e íntegro, a comunicar-se com os índios e a buscar pedras preciosas junto a seus companheiros, não é propriamente a do bandido terrível até então projetado pelos relatos e narrativas, ainda que suas escolhas não deixem de ser brutais. Trata-se, antes, da construção de uma ameaça quase ilusória e onipresente, que viria personificar o caos e a violência cotidiana em um homem sem posses, ao passo que aos colonizadores restaria o lastro da pacificação.

Como dizia Sérgio Buarque de Hollanda, a “exploração dos trópicos não se processou, em verdade, por um empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade construtora e enérgica: fez-se antes com desleixo e certo abandono. Dir-se-ia mesmo que se fez apesar de seus autores”[3]. A caracterização dos colonizadores, negligentes e desinteressados, nesse sentido, parece precisa. Em meio ao mofo, aos cupins e ao suor, Martel joga com a impossibilidade de operar um trânsito seguro entre os costumes europeus e as formas de resistência dos povos e dos territórios latino-americanos. Mais que a espera, Zama trata de operar um estado de vigília, no intervalo violento entre o mundo vivido e o mundo sonhado, quando ainda são poucos aqueles que já aprenderam a inventar, nos dois, formas possíveis de coabitação.

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[1] Como bem nos lembram Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski, em Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins, 2014.

[2]Citado por Danowski e Viveiros de Castro, 2014, p. 99.

[3] Raízes do Brasil, 1995, p. 43.