Zavattini e a cinematografia latino-americana

Joana Oliveira

Os editores desta revista me pediram um texto sobre o roteirista italiano Cesare Zavattini para a corrente edição. Ainda tocada pelas mortes do cineasta argentino Fernando Birri, em dezembro de 2017, e do brasileiro Nelson Pereira dos Santos, em abril de 2018, publico aqui a introdução quase completa da minha pesquisa de mestrado sobre como o Novo Cinema latino-americano se relaciona estreitamente com o Neorrealismo Italiano e a figura do cineasta.

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“Comecei a me interessar pelo trabalho do roteirista Cesare Zavattini (1902-1989) quando fui estudar cinema em Cuba, no ano de 2002. Eu havia passado na seleção da EICTV – Escuela Internacional de Cine y TV de San António de Los Baños, para a cátedra de direção de ficção. A Escola foi um projeto ambicioso pensado por um comitê de cineastas latino-americanos da Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano – FNCL – para formar jovens de países onde quase não havia escolas de cinema nos anos de 1980. Inicialmente projetada para receber alunos e alunas da América Latina, África e Ásia, a EICTV foi inaugurada em 1986. Seus fundadores, os cubanos Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996) e Julio García Espinosa (1926-2016), o argentino Fernando Birri (1925-2017) e o colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), haviam se conhecido quando estudaram cinema no Centro Sperimentale di Cinematografia, na Itália, e tinham a intenção de ajudar os países do sul do mundo a ter uma cinematografia própria.

Nos dois anos que passei em Cuba, a Escola passava por transiçõesestavam transformando o seu curso regular de dois anos para três anos. Como os estudantes ficam internos na Escola que é isolada em uma fazenda, houve muita discussão sobre o assunto: seriam três anos demais para um internato? Nessa época, eu era representante de turma do nosso primeiro ano e acabei sendo convocada junto com outro aluno venezuelano para participar das discussões na sede da fundação em Havana. Ficava sempre muito tímida nessas reuniões, pois, em 2003, meu espanhol ainda não era muito fluente e eu era muito jovem. Tomás Gutiérrez Alea já não era vivo nessa época, mas Julio García Espinosa era o diretor da Escola e muito ativo. Fernando Birri visitava Cuba e a EICTV pelo menos duas vezes por ano, apesar de viver em Roma, e sempre estava envolvido nas decisões do colegiado. Entretanto, a reunião em que mais fiquei acanhada foi aquela que teve a presença do fundador e membro da FNCL, Gabriel García Márquez, pois admirava muito seu trabalho como escritor. Foram nessas rodas que comecei a entender a influência do Neorrealismo italiano no cinema latino-americano e, principalmente, o papel de Cesare Zavattini em nossa cinematografia.

No discurso intitulado “Aceitam-Doações”, pronunciado por Gabriel García Márquez, na inauguração da sede da Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano, na Quinta Santa Barbara, em Havana, no dia 04 de dezembro de 1986, o escritor deixou claro que ainda na escola na Itália seus fundadores já falavam da inspiração neorrealista para o tipo de cinematografia que queriam construir na América Latina:

“Entre 1952 e 1955, quatro dos que hoje estamos a bordo deste barco, estudávamos no Centro Experimental de Cinematografia de Roma: Julio García Espinosa, vice-ministro de Cultura para o cinema; Fernando Birri, grande pai do Novo Cinema latino-americano; Tomás Gutiérrez Alea, um de seus ourives notáveis, e eu, que então não queria nada mais desta vida senão ser o diretor de cinema que nunca fui. Já desde então falávamos quase tanto quanto hoje do cinema que haveria de ser realizado na América Latina e de como se haveria de realizá-lo e nossos pensamentos estavam inspirados no Neo-Realismo italiano, que é – como teria de ser o nosso – o cinema de menores gastos e o mais humano de quantos já foram feitos.  Porém, já desde então, tínhamos consciência de que o cinema da América Latina, se em realidade queria existir, tinha que ser uno. O fato de que, nesta tarde, estejamos aqui, falando como estes loucos sobre o mesmo tema, depois de trinta anos, e que estejam conosco falando do mesmo assunto tantos latino-americanos de todas as partes e de gerações distintas, gostaria de destacar como uma prova a mais do poder impositivo de uma idéia indestrutível.” (MÁRQUEZ apud CAETANO, 1997, p. 42).[1]

O Neorrealismo italiano teve influência na grande onda de cinema latino-americano dos anos 1950, 60 e 70 e até mesmo foi corresponsável pela fundação de cinematografias que não existiam em países do nosso continente. O professor da New York University e teórico norte americano Robert Stam assinala, em seu livro Introdução à Teoria do Cinema, que “O caminho para o terceiro-mundismo cinematográfico se encontrava preparado, ao menos na América Latina, pela popularidade do neo-realismo italiano, facilitada em parte pelas populações de imigrantes da Itália, mas também por certas analogias da situação social italiana com a latino-americana” (STAM, 2003, p. 113). Quando se estuda o início do movimento canonicamente conhecido como Nuevo Cine Latinoamericano, três filmes são os citados como os pioneiros: Rio, 40 graus (Brasil, 1955), de Nelson Pereira dos Santos; El Mégano (Cuba, 1955), de Julio García Espinosa e Tomás Gutiérrez Alea; e Tire Dié (Argentina, 1960), de Fernando Birri. Não à toa se conecta esse movimento com a experiência neorrealista, pois todos esses realizadores tiveram contato com a cinematografia italiana do pós-Segunda Guerra Mundial.

No texto “An/Other View of New Latin American Cinema”[2], a professora universitária, pesquisadora e crítica cinematográfica norte-americana B. Ruby Rich remonta as influências no surgimento do Novo Cinema Latino Americano em três passos, todos ligados ao Neorrealismo italiano. O primeiro passo sendo a mudança para o México do cineasta espanhol Luis Buñuel (1900-1983) e, principalmente, a filmagem de Los Olvidados, em 1950. Apesar de o cineasta ser conhecido por sua veia surrealista, esse filme trazia a experiência neorrealista para a América Latina. “Dada a ênfase nos despossuídos, a vida ‘real’ do Terceiro Mundo, em imagens não bonitas o bastante para terem chegado aos cinemas antes e um estilo de câmera fluido o suficiente por corresponder, o filme é um presságio do que estaria por vir” (RICH, 1977, p. 274).[3] Entretanto, segundo ela, como Buñuel é europeu, esse filme ainda não é um clamor interno da América Latina e suas necessidades, mas seria um anúncio do que estaria por vir.

Já o segundo passo descrito por Rich fala das grandes figuras Tomás Gutiérrez Alea, Julio García Espinosa, Fernando Birri e Gabriel García Márquez que foram estudar na Itália e que trouxeram da fonte as influências neorrealistas para seus novos filmes e que também fundaram escolas de cinema para incentivar a produção de novos cineastas latino-americanos nos moldes neorrealistas.

“Durante 1952-55, os latino-americanos viajaram para a Itália para estudar no lendário Centro Sperimentale da Universidade de Roma: Tomás Gutiérrez Alea, Fernando Birri, Julio García Espinosa e Gabriel García Márquez. Quando Birri retornou à Argentina, fundou a Escola de Cinema de Santa Fé, agora lendária para a geração de cineastas que se treinou ali. Quando Tomás Gutiérrez Alea e Julio García Espinosa retornaram a Cuba, dirigiram juntos El mégano. Este primeiro trabalho do Novo Cinema cubano foi concluído em 1954 e banido por Batista. No período insurgente, Espinosa tornou-se o chefe de “Cine rebelde”. Ambos se tornaram, assim, participantes chave na criação de um cinema que tentaria fundir novos temas com novas formas e, assim, definir um standart para o movimento Novo Cinema Latino-Americano. Embora Gabriel García Marquéz, o aspirante a roteirista, tenha se voltado para a literatura, nos últimos anos, ele se tornou uma influência singular no cinema latino-americano: por meio de seu papel como diretor da FNCL (Fundação do Novo Cinema Latino Americano) que supervisiona a escola de cinema fundada em 1986 em Cuba para formar jovens cineastas; através de adaptações para a tela de seus escritos e seus próprios roteiros; e em 1987, através dos roteiros de Amores dificiles, série de seis coproduções com cineastas latino-americanos ou espanhóis para a televisão espanhola, todos baseados em histórias ou ideias de García Márquez”. (RICH, 1977, p. 274, 275).[4]

Há, ainda, na teoria de Ruby Rich, um terceiro passo;a influência neorrealista nos cineastas que não tinham ido à Europa, mas que tiveram acesso aos filmes no cinema, mesmo que com poucos títulos lançados. No Brasil, chegavam alguns filmes neorrealistas, gerando “uma onda de otimismo com as novas possibilidades para o cinema”[5], mas é importante ressaltar a volta do cineasta Alberto Cavalcanti (1897-1982) ao nosso país, depois de 36 anos morando entre a França e a Inglaterra. Em 1949, Cavalcanti foi convidado para ministrar uma série de dez conferências sobre cinema, no Seminário de Cinema do Museu de Arte de São Paulo[6]. Naquele momento, Cavalcanti apresentou para inúmeros cineastas brasileiros vários filmes neorrealistas e sua temática entrou em discussão. Nelson Pereira dos Santos (1928- ), grande expoente do Cinema Novo, fazia parte desse círculo de cineastas que assistiram aos filmes trazidos por Cavalcanti.

“Finalmente, o terceiro passo ilustra que a influência do Neo-realismo italiano não se limitou àqueles que viajaram fisicamente para a meca de Roma para estudar com seus mestres. Nelson Pereira dos Santos, de volta ao Brasil, fazia parte de um círculo que reconhecia a importância dessa estratégia estética e política para o cinema brasileiro. Este círculo foi estimulado pela chegada de Alberto Cavalcanti, que expôs os jovens cinéfilos ao cinema Neo-realista. O primeiro curta de Pereira dos Santos, Juventude, foi feito na época da estreia mexicana de Buñuel (produzido para o Partido Comunista Brasileiro, foi perdido quando enviado a um festival europeu) e seu primeiro longa, Rio 40 graus, construído sobre o exemplo Neo-realista para se tornar um trabalho fundador do Cinema Novo em 1955. Pereira dos Santos recorda: ‘Sem o Neo-realismo, nunca teríamos começado, e acho que nenhum país com uma economia cinematográfica débil poderia ter feito filmes de autorretrato, se não fosse por este precedente’”. (RICH, 1977, p. 275).[7]

De volta a 2002, nas conversas entre os fundadores da EICTV, que foram também os pioneiros do Novo Cinema Latino-americano, sempre se falava de “Za” – o apelido de Cesare Zavattini. O que me chamava a atenção era o fato de Zavattini ser roteirista. Eu conhecia os nomes e algumas obras de Vittorio De Sica (1901-1974), Roberto Rossellini (1906-1977), Michelangelo Antonioni (1912-2007), Luchino Visconti (1906-1976) e as relacionava com o Neorrealismo Italiano; afinal, eram os diretores de grandes filmes da época, mas era “Za” o grande autor e filósofo citado por eles. Em um artigo intitulado “La penumbra del escritor de cine”, escrito para o jornal espanhol El País no dia 17 de novembro de 1982[8], Gabriel García Marquéz reflete sobre o papel secundário que os roteiristas recebem como autores dos filmes, logo depois da morte do roteirista Franco Solinas (1927-1982). Considera, entretanto, que Zavattini foi uma exceção à regra:

“Depois da Segunda Guerra Mundial, os escritores de cinema vivenciaram ‘seus quinze minutos de fama’ com a aparição no primeiro plano do roteirista Cesare Zavattini, um italiano imaginativo e com um coração de alcachofra, que difundiu ao cinema de sua época um sopro de humanidade sem precedentes. O diretor que realizou seus melhores argumentos foi Vittorio De Sica, seu grande amigo, e foram tão identificados que não era fácil saber onde terminava um e quando começava o outro. Foram eles as duas estrelas maiores do neo-realismo, cujo céu tinha outras tão radiantes como Roberto Rossellini. Juntos fizeram Ladrões de bicicletas, Milagre em Milão, Umberto D e outras obras inesquecíveis. Na prática, foram muito poucos os filmes italianos daqueles tempos cujos roteiros não passaram pelo rastro purificador de Zavattini, quem aparecia sempre no último lugar dos créditos só porque eles eram colocados por ordem alfabética.” (MÁRQUEZ, 1982).[9]

Cesare Zavattini foi uma figura aglutinadora para o movimento neorrealista, o teórico que pensava o movimento, o roteirista que passava por inúmeros projetos de diferentes cineastas e que tentava sempre colocar nos roteiros uma visão humanista das histórias convidando à reflexão. Acreditava em uma revolução através do cinema, justamente por isto não aceitava que o Neorrealismo tivesse tido seu fim forçado na Itália nos primeiros anos de 1950. O governo italiano começou uma grande campanha contra o movimento, dizendo que era um cinema antinacionalista, que só mostrava os problemas do país, quando este tentava se reerguer economicamente no pós-guerra. O pesquisador e curador italiano Giacomo Gambetti – estudioso do movimento neorrealista italiano e,principalmente, da obra de Cesare Zavattini – escreveu, em seu livro Zavattini mago y técnico:

“O fechamento governamental e oficial contra o Neorrealismo foi duro e intransigente: atacaram um cinema que em sua totalidade havia contribuído como nenhum depois da Guerra, ao elevar o nome e a imagem do nosso país em todo o mundo, colhendo admiração e estima. Os governantes ignoraram, desvalorizaram, não compreenderam tudo isso (exceto para exaltar o Neorrealismo anos depois, eles próprios, alguns críticos, alguns mercenários): mesmo sem entendê-lo, tantos e tais eram seus temores como a preferir um modesto e historicamente estreito orgulho de grupo cultural e intelectual ainda vigente. É um fato que o Neorrealismo terminou tanto por intervenção oficial, com nome e sobrenome (havia suficientes razões históricas e sociológicas para fazê-lo definhar) e, o que é pior, porque os seus autores, pelo menos alguns deles, estiveram muito limitados, quando não – mais ou menos abertamente – boicotados.” (GAMBETTI, 2002, p. 23-24).[10]

A maior e mais influente onda cinematográfica italiana era boicotada e enterrada por políticos italianos. Após sua decepção com o fim do Neorrealismo na Itália, Cesare Zavattini veio até a América Latina, em busca de uma continuidade do movimento. Pode-se dizer que se poderia completar a teoria dos três passos de Ruby Rich com um quarto passo na influência neorrealista no cinema latino-americano: a presença de Zavattini em nosso continente. Ele encontrou cineastas ávidos por filmar a realidade latino-americana e, principalmente em Cuba, teve condições reais de passar sua experiência para frente e continuar trabalhando no fazer cinematográfico.

“As inacabáveis energias de Zavattini nos anos cinquenta impulsionariam também certo esforço pela divulgação internacional dos seus princípios (pós) neorrealistas. Ali encontraríamos a raiz dos seus contatos com o cinema espanhol dos anos cinquenta, já falamos em outra ocasião, de suas viagens para diversos lugares, com menção especial as suas três estadias no México entre 1953 e 1957, com contatos com gente de cinema como Manuel Barbachano, Carlos Velo, Benito Alazraki, Fernando Gamboa etc., ou na Argentina, em 1961, o que lhe permitiu reencontrar Fernando Birri, autêntico introdutor do Neorrealismo no país austral; mas, sem dúvida, a instância latino-americano mais importante de Zavattini foi a cubana.” (IBARROLA apud ZAVATTINI, 2002, p. 65).[11]

Em duas das vezes que foi ao México, Zavattini aproveitou para passar por Cuba. Em 1953, teve o primeiro contato com a Sociedad Cultural Nuestro Tiempo, uma associação que nasceu em 1951, durante a ditadura de Fulgêncio Bastita (1901-1973) e durou dez anos, que abrigava intelectuais cubanos inclusive Julio García Espinosa e Tomás Guitiérrez Alea. Em 1955, esteve por uma semana em Havana quando pôde assistir a filmes e revisar projetos de novos e jovens cineastas desse país. E logo, com o triunfo da revolução cubana em janeiro de 1959, foi convidado para dar uma contribuição mais potente ao cinema cubano.

 “Finalmente, os novos contatos realizados no México em 1957 com o exilado Alfredo Guevara se cristalizaram em 1959 em um convite do novo regime cubano, concretamente do ICAIC (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas) liderado por Guevara, para uma mais ampla estadia cubana. Durante seu curso, Zavattini supervisionou projetos como Cuba baila (J. García Espinosa, 1960) e Historias de la revolución (T. Gutierrez Alea, 1960), interviu na preparação de múltiplos projetos nunca realizados – ou apenas remotamente retomados em filmes posteriores – e, finalmente, participou como argumentista de um longa-metragem filmado por Julio Garcia Espinosa, El joven rebelde (1961), sobre um camponês que sobe a Serra (Sierra Maestra) para juntar-se aos guerrilheiros; lá aprende a ler e escrever para melhor integrar-se à ação revolucionária. Outra colaboração concreta de Zavattini foi o comentário escrito para o curta-metragem ¡Arriba campesino! (1961), dirigido por Mario Gallo”(IBARROLA apud ZAVATTINI, 2002, p. 65).[12]

Ao escolher como tema de pesquisa no mestrado o universo desse roteirista, descobri o imenso mundo zavattiniano. O pesquisador e curador italiano,Giacomo Gambetti, estudou sua obra por, pelo menos, 23 anos, antes de lançar seu livro Zavattini Mago e Tecnico (não publicado no Brasil), em 1986. Posterior a ele, e aproveitando seu trabalho, a pesquisadora italiana Stefania Parigi estudou por pelo menos outros 10 anos sua obra, antes de publicar o livro Fisiologia Dell’immagine Il pensiero di Cesare Zavattini, de 2006 (não publicado no Brasil). E ambos autores tratam primordialmente de seu papel no mundo cinematográfico, pois seria muito difícil dar conta de toda a complexidade de Cesare Zavattini, um homem versátil que trabalhava como escritor, jornalista, pintor, roteirista, e muito mais. Em 1986, Gambetti escreveu sobre a multifacetada figura:

“Os momentos fundamentais em uma presença operativa como a zavattiniana são, evidentemente, muitos. Mais numerosos em relação à média, pois trabalhou por quase sessenta anos em tudo: literatura, cinema, pintura, para a televisão, rádio, jornais, como um escritor e literato ou descobridor de escritores, criador de cinema e detector de talentos cinematográficos, pintor e promotor de eventos de arte, roteirista e organizador de projetos de produção, fundador e responsável por iniciativas editoriais, jornalísticas, associativas, rádio-televisivas, políticas. Cesare Zavattini foi e é tudo isso e muito mais. A partir de 1928 até a presente data influenciou longos períodos de nossa literatura e cinema, esteve no centro de qualquer polêmica de pouca importância (a “revolução” de uma palavra no rádio, no final de 1976) e de outras mais relevantes (os anos que Zavattini era sinônimo de Neorrealismo e, nele, uma verdadeira revolução cultural na Itália e no mundo, e de “antipatriotismo”, porque de acordo com “bem-pensantes”, os aspectos “negativos” da vida italiana não deveriam ter entrado no contexto de qualquer representação. Sendo já notável na literatura, ele chegou ao cinema em 1936, como protagonista, desde então até hoje).” [13] (GAMBETTI, 2002, p. 16, 17).[14]

Desde 2006, dedico-me profissionalmente a escrever roteiros e, para minha dissertação de mestrado, pensei em refletir sobre a contribuição de Zavattini na escritados filmes do período neorrealista italiano. Cesare Zavattini sempre defendeu o uso de não-atores nos filmes, uma vez que eles traziam a verdade das experiências de seus próprios cotidianos em seus rostos, em seu modo de falar, de caminhar e de reagir. Assim, ele acreditava que todos poderiam tornar-se atores, ao expressarem da forma mais verdadeira os fatos da vida. A professora doutora Mariarosaria Fabris, especialista brasileira no Neorrealismo italiano, em seu livro O Neo-Realismo cinematográfico italiano, fala sobre Zavattini e sua relação com o uso de não-atores em filmes:

“Zavattini levou ao extremo essa proposta, pelo menos no campo teórico: ele esperava que todos se tornassem atores ao menos uma vez na vida, ou seja, que cada um pudesse contribuir para que o cinema expressasse da forma mais verdadeira os fatos dignos de serem expostos à comunidade. Afirmava: “Eu nunca serei contra um filme que, mesmo se servindo de personagens ‘falsas’, seja o produto de interesses sociais, morais, vivos e atuais, mas acredito que na trajetória do raciocínio neorrealístico, assim como tinha sido começado de forma unânime tão logo acabou a guerra, tinha que chegar forçosamente o momento da personagem real, a qual tem uma responsabilidade, em relação ao público, infinitamente mais peremptória do que qualquer outro tipo de personagem.”(FABRIS, 1996, p. 83).

Em muitos dos filmes que Zavattini escreveu, atuavam tanto atores renomados quanto não-atores sem experiência alguma em cinema. No início desta pesquisa, queria analisar a experiência da transformação do roteiro ficcional na hora da filmagem com não-atores e o que eles puderam contribuir na criação desses personagens da “vida real”. Afinal, Zavattini sempre pregava que a realidade tinha que tomar a tela e isto me fez supor, em um primeiro momento, que improvisações com os não-atores deveriam acontecer o tempo todo na etapa da filmagem dos roteiros realizados por Zavattini. Mariarosa Fabris descreve, ainda, que Zavattini, a partir do final da Guerra, persegue duas diretrizes teóricas:

“[…] a da atualidade, entendida como realidade a ser apreendida antes que se transforme em futuro, e a da imediatez, ou seja, uma idéia levada à sua realização sem que nada, ou quase nada, se interponha entre elas. Dessa forma, a representação da realidade seria substituída pela própria realidade, e a câmera movimentar-se-ia a partir de seu contato com essa realidade, abandonando um uso já preestabelecido” (FABRIS, 1996, p. 84).

Em muitos momentos de seus escritos, Zavattini fala sobre como fazia seu trabalho de observação da realidade, e um relevante exemplo encontra-se na pesquisa do filme Roma às 11 Horas (Roma Ore 11, Itália / França, 1952), de Giuseppe De Santis. Em uma entrevista, De Santis relembra como foi o processo de escritura do roteiro:

“[…] A outra idéia de Zavattini – uma idéia já presente no cinema italiano de então – foi a de ouvir, senão todas, pelo menos a maior parte das moças que tinham participado da tragédia do desabamento, naquela manhã, à rua Savoia. Para a enquete, Gianni Puccini sugeriu o nome de Elio Petri, então cronista de L’Unità. Petri fez um trabalho extraordinário porque conseguiu entrevistar não somente todas as moças, mas também os bombeiros, os vizinhos, os magistrados, enfim, todos os que tinham tido alguma relação com aquele trágico evento. Portanto, é exatamente baseado na experiência humana tão direta, sugerida por Zavattini, e baseado na enquete feita por Petri que nasceu depois o roteiro do filme” (FABRIS, 1996, p. 106).

Para entender se havia de fato mudanças e improvisações que afetavam os roteiros de Zavattini na hora da filmagem, pelo fato dos não-atores aportarem suas experiências à história, entendi que teria que comparar seus roteiros com os filmes prontos. Muitas vezes essa comparação é difícil, pois nem sempre se publica a versão do roteiro anterior à filmagem. A maioria dos roteiros publicados de filmes de ficção são versões modificadas após as filmagens, sendo retirado da forma escrita o que não entrou no corte final da edição. Além disso, esta pesquisa se mostrou muito árdua, pois Zavattini trabalhou em inúmeros filmes (por vezes, nem mesmo creditado), com níveis de responsabilidade diferentes e, muitas vezes, dividindo a autoria dos roteiros com outros escritores. Durante minhas leituras, descobri que alguns roteiros de Cesare Zavattini haviam sido publicados em sua forma original anterior à filmagem. Entretanto, Umberto D. é o único filme que teve todo o processo criativo de Zavatini registrado, do primeiro esboço de ideia ao roteiro anterior às filmagens. Esse foi o primeiro trabalho de sua parceria com o diretor Vittorio De Sica, em que ele assinava sozinho o argumento e o roteiro, sem colaborações de outros profissionais. Os textos de seu processo foram publicados na Rivista del Cinema Italiano, no mesmo ano do lançamento do filme, 1952, talvez como uma forma de Zavattini mostrar sua autoria nas ideias neorrealistas contidas nessa película. Decidi, então, fazer, como objeto de estudo de mestrado, uma análise do processo criativo da escritura de Umberto D.. Foi com grande surpresa que descobri que Zavattini deixava pouco espaço para a improvisação e, em minha pesquisa, tento entender as contradições entre o discurso de Zavattini de deixar a realidade tomar a tela e sua obsessão com a história imaginada. Giacomo Gambetti relata, em seu livro Zavattini Mago y técnico, que ele mesmo esteve presente, em janeiro de 1952, na primeira projeção mundial do filme Umberto D. no cinema Metropolitan de Bolonha e que se sentiu extremamente emocionado ao presenciar o momento histórico. Ele relata também a sensação de espanto que teve ao descobrir que toda a história do filme e os seus mínimos detalhes tinham sido imaginados por Zavattini.

Estive presente […] em 21 de Janeiro de 1952, no Metropolitan de Bolonha, na primeira projeção mundial de Umberto D., filme com o qual senti uma emoção extraordinária: compreendi que estava diante de um evento histórico em nossa área; descobri por mim mesmo – digo com uma notável satisfação – a grandeza da anunciação de Maria, a torneira, a água, a lâmpada, o formigueiro, o moedor, a barriga, as lágrimas e, em seguida, o sentimento e o pudor de Umberto, sua solidão com Flick. Exceto na diversidade de forma expressiva, o lirismo não me pareceu diferente da poesia escrita. Eu acreditava na força e na personalidade de De Sica. Mas pouco depois, com documentos, comprovei que as imagens, gestos, sentimentos das personagens vistas no filme de De Sica, foram exatamente previstos nas páginas de Zavattini. Eu comprovei a prioridade e, portanto, a importância. Tal como acontece com Umberto D., vendo pela primeira vez Vítimas da tormenta, Ladrões de bicicletas, Milagre em Milão, compreendi que eu sabia muito pouco sobre os rumos da teoria cinematográfica e de Zavattini, porque não considerava essencial a influência e contribuição da escritura ao realizador – eu a via quase exclusivamente como escaleta –, ao resultado isolável e isolada na tela, independentemente do trabalho de preparação e colaboração.” (GAMBETTI, 2002, p.7-8). [15]

Ainda hoje, as influências neorrealistas são vistas a todo momento na obra de cineastas importantes e de várias partes do mundo. O iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016) e o português Pedro Costa (1958-), para citar alguns, são exemplos de realizadores que trabalham com processos narrativos semelhantes aos propostos pelo Neorrealismo, em que as personagens, com suas ações cotidianas, se destacam e se sobrepõem à trama principal, em vários filmes de suas cinematografias. No Brasil, desde os preâmbulos do Cinema Novo, mas, principalmente nos últimos anos, várias produções que dão muita importância às personagens, seus sentimentos e sua relação com o mundo – deixando a trama do filme em menor plano – têm surgido, como O Céu sobre os Ombros (Brasil, 2011), de Sérgio Borges; Girimunho (Brasil / Espanha / Alemanha, 2011), de Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr.; Ela Volta na Quinta (Brasil, 2015), de André Novais Oliveira, para citar exemplos apenas em Minas Gerais.”

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[1] No livro Cineastas Latino Americanos, de Maria do Rosário Caetano, há o discurso completo que foi publicado no Correio Braziliense, no dia 23 de dezembro de 1986.

[2] Publicado no livro New Latin American Cinema, Volume One: Theory, Practices, and Transcontinental Articulations, editado por Michael T. Martin.

[3] Livre tradução da autora de: “Given its emphasis on the dispossessed, the ‘real’ life of Third World, on pictures not pretty enough to have made it into movies before and a camera style fluid enough to match, the film is a portent of things to come”.

[4] Livre tradução de: “During 1952-55, Latin Americans travelled to Italy to study at the legendary Centro Sperimentale (Center for Experimental Cinematography) at the University of Rome: Tomás Gutiérrez Alea, Fernando Birri, Julio García Espinosa, and Gabriel García Márquez. When Birri returned to Argentina, he founded the Film School of Santa Fe, now legendary for the generation of filmmakers he trained there. When Tomás Gutiérrez Alea and Julio García Espinosa returned to Cuba, they collaborated on El mégano. This first work of the new Cuban cinema was complete in 1954 and banned by Batista. In the insurgency period, Espinosa, became the head of “Cine rebelde”. Both thus became key participants in the fashioning of a cinema that would attempt to fuse new subjects with new forms and in so doing set a standart for the New Latin American Cinema movement. Though Gabriel García Marquéz, the would-be screenwriter, first turned to literature, in the past few years he has become a singular influence upon Latin American filmmaking: through his role as head of the FNCL (New Latin American Cinema Foundation) which oversees the film school established in 1986 in Cuba to train young filmmakers; through the screen adaptations of his writings and his own screenplays; and in 1987, through the screenplays for the Amores dificiles series of six co-productions with Latin American or Spanish filmmakers for Spanish television, all based on García Márquez stories or ideas”.

[5] No livro Introdução à Teoria do Cinema, de Robert Stam (2003, p. 113): “Os filmes neo-realistas italianos provocaram uma onda de otimismo com relação a novas possibilidades para o cinema. Em 1947, o crítico de cinema brasileiro Benedito Duarte expressou no jornal O Estado de São Paulo sua admiração pela maneira como os cineastas italianos haviam forjado uma ‘estética da pobreza’, utilizando técnicas de documentário e equipamento leve para criar um cinema tecnicamente pobre, mas imaginativamente rico”.

[6] Do livro O Cinema Errante, de Luiz Nazario (2013, pp. 19, 20): “Frustrado com seu projeto de adaptar Sparkenbroke, de Charles Morgan, para a Rank, em 1949, Cavalcanti aceitou o convite de Assis Chauteaubriand, então embaixador do Brasil em Londres, e de Pietro Maria Bardi, para ministrar uma série de dez conferências sobre cinema no Museu de Arte de São Paulo – Masp, recém criado por Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado. O curso foi realizado com coordenação dos responsáveis pelo setor de cinema do museu: Marcos Margulies e Tito Batini. Segundo Jacó Guinsburg, é quase certo que o crítico de cinema Carlos Ortiz estivesse por trás do convite”.

[7] Livre tradução de: “Finally, the third step illustrates that the influence of Italian neorealism was not limited to those who physically journeyed to the mecca of Rome to study with its masters. Nelson Pereira dos Santos, back in Brazil, was part of a circle that recognized the import of this aesthetic and political strategy for Brazilian cinema. This circle was stimulated by the arrival of Alberto Cavalcanti, who exposed the young cinephiles to neo-realist cinema. Pereira dos Santos’s first short film, Juventude, was made at the time Buñuel’s Mexican debut (produced for the Brazilian Communist Party, it was lost when sent to a European festival) and his first feature, Rio 40 degrees, built on the neo-realist example to become the founding work of cinema novo in 1955. Pereira dos Santos recalls: ‘Without neorealism, we would have never started, and I think no country with a weak film economy could have made self-portraying films, were it not for that precedent’.”

[8]Arquivo on line de todos os artigos publicados no jornal espanhol El País. Disponível em: http://elpais.com/diario/1982/11/17/opinion/406335611_850215.html

[9] Livre tradução de: “Después de la Segunda Guerra Mundial, los escritores de cine vivieron su cuarto de hora con la aparición en primer plano del guionista Cesare Zavattini, un italiano imaginativo y con un corazón de alcachofa, que le infundió al cine de su época un soplo de humanidad sin precedentes. El director que realizó sus mejores argumentos fue Vittorio de Sica, su gran amigo, y estaban tan identificados que no era fácil saber dónde terminaba uno y dónde empezada el otro. Fueron ellos las dos estrellas mayores del neorrealismo, en cuyo cielo había otras tan radiantes como Roberto Rossellini. Junto hicieron Ladrón de bicicletas, Milagro en Milán, Umberto D y otras inolvidables. Se hablaba entonces de las películas de Zavattini como se habla de las películas de Bertolucci: como si aquél fuera el director. En la práctica, fueron muy pocas las películas italianas de aquellos tiempos cuyos guiones no pasaron por el rastrillo purificador de Zavattini, quien aparecía siempre en el último lugar de los créditos sólo porque éstos eran dados por orden alfabético”.

[10]Livre tradução de: “El cierre gubernativo y oficial contra el Neorrealismo fue duro y sin términos medios: atacaban un cine que en su generalidad había contribuido como ninguno después de la guerra a llevar en alto el nombre y la imagen de nuestro país por el mundo, recabando admiración y estima. Los gobernantes ignoraron, subvaloraron, no comprendieron todo esto (salvo para exaltar el Neorrealismo años después, ellos mismos, ciertos críticos, ciertos mercenarios): incluso si comprendiéndolo, tantos y tales eran sus temores como para preferir un modesto e históricamente angosto orgullo de grupo cultural y intelectual todavía dirigente. Es un hecho que el Neorrealismo terminó tanto por la intervención oficial, con nombre y apellido (hubieran sido suficientes las razones históricas y sociológicas para hacerlo languidecer), como, lo que es peor, porque sus autores, al menos algunos, estuvieron grandemente limitados, cuando no – más o menos abiertamente – boicoteados.”

[11] Livre tradução de: “Las inacabables energías de Zavattini en los años cincuenta impulsarían también un cierto esfuerzo por la difusión internacional de sus principios (post) neorrealistas. Ahí encontraríamos la raíz de sus contactos con el cine español de los cincuenta, que ya hemos hablado en otra ocasión, de sus viajes a diversos lugares, con especial mención de sus tres estancias en México entre 1953 y 1957, con contactos con gente de cine como Manuel Barbachano, Carlos Velo, Benito Alazraki, Fernando Gamboa, etc.: o en Argentina en 1961, que le permitió reencontrar a Fernando Birri, auténtico introductor del Neorrealismo en el país austral; pero sin duda, la instancia latinoamericana de Zavattini más importante fue la Cubana”.

[12] Livre tradução de: “Por fin, los nuevos contactos tenidos en México en 1957 con el exiliado Alfredo Guevara cristalizaron en 1959 en una invitación del nuevo régimen cubano, concretamente del ICAIC dirigido por Guevara, para una más amplia estancia cubana. Durante su curso, Zavattini supervisó algunos proyectos como Cuba baila (J. García Espinosa, 1960) e Historias de la revolución (T. Gutiérrez Alea, 1960), intervino en la preparación de múltiples proyectos nunca llevados a cabo – o sólo remotamente retomados en películas posteriores – y finalmente participó como argumentista de un largometraje filmado por Julio García Espinosa, El joven rebelde (1961), sobre un campesino que sube a la Sierra para integrarse en la guerrilla; allá aprenderá a leer y escribir para mejor integrarse en la acción revolucionaria. La otra colaboración concreta por Zavattini fue el comentario escrito para el cortometraje ¡Arriba campesino! (1961), dirigido por Mario Gallo”.

[13] Em livre tradução: “Los momentos fundamentales en una presencia operativa como la zavattiniana son, evidentemente, muchos. Más numerosos respecto a la media, pues ha trabajado casi por sesenta años en todo: literatura, cine, pintura, para la televisión, la radio, los periódicos, como escritor y literato o descubridor de escritores, creador de cine y detector de talentos cinematográficos, pintor y promotor de manifestaciones de arte, guionista y organizador de proyectos de producción, fundador y responsable de iniciativas editoriales, periodísticas, asociativas, radiotelevisivas, políticas. Cesare Zavattini fue y es todo esos y más aún, de 1928 a esta fecha influyó en largos períodos de nuestra literatura y nuestro cine, estuvo al centro de cualquier polémica de poca importancia (la <<revolución>> de una palabra en la radio, al final de 1976) y de otras más relevantes (los años en que Zavattini fue sinónimo de Neorrealismo y, en ello, de una verdadera revolución cultural en Italia y en el mundo, y de <<antipatriotismo>>, porque según los <<bienpensantes>>, los aspectos <<negativos>> de la vida italiana no debieron entrar en el contexto de ninguna representación. Siendo ya notable en literatura, llegó al cine en 1936, como protagonista, desde entonces hasta hoy)”.

[14] No texto, o ano de 1928 refere-se ao início da carreira de Zavattini, quando ele começou a escrever profissionalmente em um jornal em Parma. Sua chegada ao cinema, em 1936, refere-se ao seu primeiro roteiro filmado e lançado comercialmente: Darò un milione, dirigido por Mario Camerini.

[15] Livre tradução de: “Estuve presente […] El 21 de enero de 1952, en el Metropolitan de Boloña, en la primera proyección mundial de Umberto D., filme del que recibí una emoción extraordinaria: comprendí que estaba frente a un suceso histórico en nuestro ámbito; descubrí por mí mismo – lo digo con notable satisfacción – la grandeza de la anunciación de María, el grifo, el agua, la lámpara, el hormiguero, el molinillo, la panza, las lágrimas, y luego el sentimiento y el pudor de Umberto, su soledad con Flick. Salvo en la diversidad de la vía expresiva, el lirismo no me pareció diferente al de la poesía escrita. Creí en la fuerza y en la personalidad de De Sica. Pero poco después, con documentos, comprobé que imágenes, gestos, sentimientos de los personajes vistos en el filme de De Sica, estaban exactamente previstos en las páginas de Zavattini. Gusté la prioridad y, por tanto, la importancia. Igual que con Umberto D., viendo por primera vez Sciucià, Ladri di biciclette, Miracolo a Milano, comprendí que sabía demasiado poco de los rumbos de la teoría cinematográfica y de Zavattini, pues no consideraba esencial la influencia y el aporte de la escritura al realizador – la veía casi exclusivamente como escaleta -, al resultado aislable y aislado en la pantalla, independiente del trabajo previo de preparación y de colaboración”.