Roberto Cotta
Naquela noite leu-se uma peça bastante obscura de Lícofron, que me agrada por suas loucas justaposições de sons, alusões e imagens, e pelo seu complexo sistema de reflexos e ecos.
(Marguerite Yourcenar, “Memórias de Adriano”)
A tradução mais patente sobre o establishment do cinema contemporâneo pode ser encontrada na avidez de críticos, professores, pesquisadores, curadores e cineastas em sustentar uma lógica na qual as demandas extrafílmicas têm importância superior à própria matéria cinematográfica. Ao redor do mundo, nas três últimas décadas, tal condição vem sendo entranhada de modo irrevogável, carregando consigo estruturas discursivas muito bem articuladas e inclinadas a defender uma valorização dos filmes guiada por fatores que não necessariamente os constituem.
Por conseguinte, essa engrenagem tem sido capaz de mensurar as qualidades e deficiências de qualquer obra, até mesmo antes de sua estreia. Na medida em que os filmes surgem (caso, de fato, consigam), tem-se a impressão de que os olhares lançados a eles, muitas vezes, dispensam suas construções visuais, seus registros sonoros, seus critérios narrativos, sua inventividade estética, suas estruturas documentais, ficcionais, experimentais ou a forma como abordam seus próprios temas. Nesse primado de axiomas, o que vale mesmo são os pontos de partida, ou seja, aqueles protocolos preestabelecidos que indicam o que pode ou não constar numa obra, para que seja bem aceita em um determinado circuito.
No que tange à aceitação, mesmo com as transformações impulsionadas pela cultura digital, ainda podemos considerar dois caminhos mais evidentes. O primeiro deles diz respeito à distribuição comercial, sedimentada pelas salas multiplex, assinaturas de TV a cabo e plataformas de vídeo sob demanda, onde costumam ganhar atenção obras narrativamente mais palatáveis e/ou realizadas mediante um sistema de produção industrial e orçamentos vultosos. Nesse caso, a aceitabilidade tende a ser medida pelo lucro proporcionado a quem investe nos filmes. É claro que o pensamento crítico também possui seus graus de intervenção, mas essa interferência tem sido cada vez menos efetiva. Acima de tudo, nesse campo, quem dita as regras é a economia de um mercado voraz que tenta estabelecer suas próprias condições de influência para o grande público.
Já o segundo trajeto apresenta um conjunto de produções cuja circulação é essencialmente viabilizada por festivais e mostras cinematográficas, espaços supostamente mais libertos das amarras comerciais, onde, em aparência, busca-se atribuir visibilidade a uma variedade maior de filmes, desde os mais narrativos àqueles capazes de apostar em construções de linguagem distantes de uma padronização. Entretanto, engana-se quem imagina que tal espectro esteja isento das formulações mercadológicas. Só que a mercadologia aqui se manifesta de modo muito mais subterrâneo, embora traga balizas tão definidoras quanto às do primeiro exemplo. Afinal, para que um determinado filme circule, ele precisa da chancela dos curadores, da repercussão crítica e acadêmica do momento e da vitrine autoral concedida a quem o realiza. Nesse contexto, existe uma retroalimentação entre as várias partes envolvidas, permitindo a elas um lugar cada vez mais destacado nesse panteão, fomentando suas respectivas carreiras e consolidando definitivamente suas trajetórias.
A economia desse mercado cultural, então, coordena um campo de representações autocentradas disfarçadas de um caráter artístico, com o intuito de sustentar uma ideia homogênea sobre cinema, várias vezes destituída de posições críticas firmadas, colocando barricadas ante os possíveis desvios e anulando as eventuais exceções. Via de regra, é justamente a articulação de um pensamento padronizado e ambíguo uma presença garantida na concepção de diversos filmes, no desenvolvimento do projeto cinematográfico de seus realizadores e no trânsito deles por um circuito de festivais e mostras mundo afora, onde são obtidos os louros, as premiações, as publicações extensas nas mais conceituadas revistas de cinema (impressas ou virtuais), as teses e dissertações acadêmicas, a entrada no processo contínuo de formação de repertório. Isto é, a manutenção ou categorização do filme como obra de arte ou bem cultural, algo que seguirá como legado para as próximas gerações.
Essa seara de influências também traz inúmeras responsabilidades. Algumas delas, inclusive, tornaram-se mais óbvias desde que Jean Douchet escreveu célebre ensaio sobre a compreensão de determinados valores pertencentes à atividade crítica. Num dos trechos, ele defende:
Considerar o cinema (porque é dessa arte que falamos) como um assunto de conversa e somente como tal, me parece inqualificável. Visualizá-lo unicamente como objeto de interesse pessoal (ganha-pão, ocasião de construir um nome e aparecer, possibilidade de vender um roteiro ou se vender), ou utilizá-lo para conduzir um combate ideológico, político, religioso que lhe é estranho, resumindo, inflar o ego ou uma causa, a mais nobre que seja, em detrimento do cinema, trai uma desonestidade intelectual consumada. A arte exige da crítica que ela lhe sirva e não que ela se sirva da arte.[1]
É lógico que o cinema mencionado por Douchet não deve ser encarado como um bezerro de ouro, cuja adoração nos ofereça uma visão de mundo cristalizada e incontornável. Ao longo de sua história, a arte cinematográfica foi composta por várias perspectivas, sejam elas mais perenes, efêmeras ou cambiáveis. Ressalta-se que a percepção dele sobre a utilização do pensamento crítico para fins alheios ao próprio cinema foi publicada em 1961. Portanto, não se trata de uma ressalva direcionada às valorizações de um cenário contemporâneo à nossa geração, mas uma posição atemporal que busca desvendar as particularidades históricas dessa expressão, merecendo ser levada em consideração ainda hoje. E o ponto de reflexão trazido pelo crítico não rechaça a diversidade de temas, abordagens e princípios que têm modulado essa história. Pelo contrário, assim como Rivette[2] dizia em seu texto sobre a repulsa que lhe causou o filme Kapò (1960), de Gillo Pontecorvo, Douchet também acreditava que os temas mereciam nascer iguais em direito, cabendo ao tom, ou seja, à forma descortinada pelas obras a mola propulsora para futuras impressões, análises e juízos de valor atribuídos a elas. Mas, então, o que mudou?
Dentre diversos fatores, a partir dos anos 1990, é válido destacar a influência de estudos baseados em algumas perspectivas pós-estruturalistas e multiculturais no campo das artes. Desde então, uma série de pautas têm se desdobrado dessas vertentes teóricas, proporcionando camadas de expressão essenciais no cinema e em suas relações com a formação do pensamento crítico. Partindo de uma reconfiguração do posicionamento acadêmico de intelectuais como Stuart Hall e Homi K. Bhabha, muitos críticos e pesquisadores têm lançado mão de ideias que dão vazão a uma diversidade cultural presente em todas as esferas do cinema (da crítica à curadoria, da academia à realização). Nesse sentido, o princípio fundamental é conceder visibilidade a grupos marginalizados pela tradição cinematográfica, relegados pela cinefila, com parca representatividade nos filmes e sem tanta circulação no âmbito comercial ou nos festivais. Desse modo, nos últimos anos, tem se constituído um espaço que possa abrigar cada vez mais grupos identitários, especialmente mulheres, negros e a comunidade LGBTQIA+, permitindo que consigam se sentir contemplados por uma arte tão elitista, cuja história ajudou a construir bases edificadas, principalmente, por homens brancos e heterossexuais. Esse fator é mais do que justo, considerando que as matrizes históricas deixaram como herança uma desigualdade social e econômica descomunais.
No entanto, alguns reflexos dissonantes têm pegado carona na atual reformulação de conceitos pós-estruturalistas ou multiculturais e suas respectivas aplicações no cinema. O mais notório deles indica o afunilamento da legitimidade, quase sempre pertencente a um determinado grupo que disponha de partilha cultural suficiente para pensar/conceber filmes que abordem temáticas inerentes a suas categorias, algo compreendido como forma de referendar o status de reconhecimento de uma obra específica. Isto, muitas vezes, pode gerar árduos debates, especialmente quando a discussão envolve grupos que ocupam espaços representativos distintos. Por exemplo, no momento em que presenciamos discussões nas quais cineastas brancas são deslegitimadas, de antemão, por levarem a cabo uma representação do corpo feminino negro, o que está em evidência não é necessariamente o filme em si, o modo como suas matérias (seus planos, sua mise en scène, sua montagem, suas tentativas de construção de sentido) se apresentam diante de nós, mas algo que está na órbita das articulações da própria obra.
Assim, a permissão simbólica pode se confundir com a sensibilidade de olhar, permitindo que a evidência discursiva suprima o pensamento crítico que a compõe. É pertinente a defesa de que a experiência cinematográfica carrega uma historicidade que não tem como ser totalmente contemplada diante da câmera. Diante disso, é possível afirmar que cineastas LGBTQIA+, normalmente, consigam apresentar de forma mais autêntica temas que atravessam suas vivências e experiências. Respeitadas as devidas diferenças, o mesmo também poderia ser dito em relação a cineastas de outros grupos culturais. Mas, além disso, é importante perceber que essa tônica não precisa ser tomada como uma posição dominante para atender às demandas de um mercado, cujo interesse maior é engessar os discursos e colocá-los numa mesma vitrine.
Em linhas gerais, a valorização de um filme como Moloch Tropical (2009), de Raoul Peck, parece não mais se encontrar na magnitude de condução de sua trama, na forma aguda como aborda o racismo e constrói com perspicácia cada um de seus personagens, materializando a narrativa de um rei despótico, mas completamente impotente diante de sua população. A sensação trazida pelos textos críticos dedicados a esse e a outros filmes de Peck é de que a recente importância atribuída à sua obra, sobretudo, se aporta no fato de ser realizada por um cineasta negro, nascido num país estigmatizado de forma tão pejorativa como o Haiti. E como se esse aspecto já demarcasse um lugar específico a ser ocupado por seus filmes e os colocassem, automaticamente, em parâmetro de comparação com obras dirigidas por outros cineastas negros, igualmente talentosos, como Ousmane Sembène e Idrissa Ouédraogo, originários de nações tão distintas como Senegal e Burkina Faso. Assim como diversas vezes vimos colocarem num mesmo balaio de percepções obras com características tão diferentes como as realizadas por Ida Lupino, Agnès Varda, Safi Faye e Lina Wertmüller, motivadas pelo fato de todas essas diretoras serem mulheres.
Aliás, a impressão que fica é de que se todos os cineastas desativassem suas contas nas redes sociais, se abstivessem de participar dos debates para os quais são convidados e, mais do que isso, não assinassem as obras que realizassem, definitivamente, teríamos que lidar com um posicionamento crítico a respeito de seus filmes. No cinema contemporâneo, pode-se dizer que parte dessa priorização a fórceps da figura do autor e de tudo que alimenta sua óbita também se deve às heranças deixadas pela política dos autores criada pela crítica francesa nos anos 1950, tal como Jean-Luc Godard certa vez percebeu:
A partir daí, desenvolvemos a política dos autores, que consistia em sustentar o autor, mesmo quando ele era fraco. Sustentávamos com mais facilidade um filme de um autor ruim do que um bom filme de alguém que não o fosse. E assim o conceito se perverteu, transformou-se em um culto do autor, e não no de seu trabalho.[…] Acho que quando lançamos a política dos autores, nos enganamos ao privilegiar a palavra “autor” quando, na verdade, era a palavra “política” que deveria ter sido destacada. Pois o verdadeiro objetivo desse conceito não era demonstrar quem faz a direção, mas explicar o que faz a direção.[3]
Cada vez mais, estamos enaltecendo a figura do autor antes mesmo de nos debruçarmos sobre os filmes que realiza. Para ancorarmos essa ideia, temos tomado emprestado alguns conceitos científicos ou filosóficos para podermos deturpá-los, buscando, de todo jeito, sustentar nossas predileções. Diante desse princípio, no cinema atual, é curioso perceber que muitos dos argumentos críticos se escoram em corruptelas do conceito de política. E a política utilizada parece significar tudo, menos aquilo que ela propõe de mais essencial, que é o reconhecimento de uma liberdade de pensamento que possa se estender às esferas coletivas e individuais. Não considerando suas essências, ela tem sido confundida diversas vezes com estética, que, consequentemente, também passou a ser sinônimo torto de poética. E essa subversão de sentidos transforma todos esses conceitos em ferramentas direcionadas a trazerem hipóteses vendidas como teses prontas, cunhadas apenas para justificarmos o agrupamento dos mais distintos filmes possíveis nos festivais de cinema, nos congressos acadêmicos, nos artigos científicos e nos textos críticos. Nunca criamos tantas regras. Nunca dispensamos tanto as exceções.
Em Je Vous Salue, Sarajevo (1993), talvez o monumento recente mais incisivo sobre a potência da imagem e a destruição de seus sentidos, Godard nos alerta sobre o engolimento da concepção artística promovido pelas engrenagens da gestão cultural. Segundo ele, as distinções entre ambas (arte e cultura) têm sido esfumaçadas, evidenciando as condições que sustentam os padrões e dilaceram as manifestações de exceção. Com o apagamento iminente dessas linhas divisórias, o que nos resta é o confronto. É somente através da aspereza de um atrito que algum tipo de expressividade poderá marcar presença frente a essa sistemática comandada por espessuras discursivas líquidas ou rarefeitas.
O filtro de densidade neutra do cinema contemporâneo caracteriza-se por uma ganância por sintomas passageiros, como se, em qualquer movimento, o pensamento crítico tivesse a obrigação de esquecer sua história para incorporar qualquer tipo de fascínio. Toda efemeridade também passa a ser compreendida como um importante postulado cultural. No entanto, não podemos deixar de lado os filmes e o que eles representam. Ignoramos o fato desse novo continente possuir mais de um século de existência, tendo sido habitado em diversas ocasiões, o que ressalta a incondicional importância da persistência da memória face às tentativas de contemporização do esquecimento. A roupagem fashion atribuída ao cinema atual surge como uma revolução inerte, que tem fortalecido apenas a crueldade e o fascínio turístico trazido por alguns ditames culturais, como aqueles que são aplicados sobre os filmes de Abdellatif Kechiche e Xavier Dolan ou aos longas de Apichatpong Weerasethakul feitos após Mal dos Trópicos (2004), transformando o cineasta num cacoete autoral de si mesmo.
Sabemos que, desde sempre, a arte cinematográfica tem enfrentado dificuldades de sobrevivência à passagem do tempo, sendo o pensamento crítico a instância que melhor pôde defendê-la nesse sentido. Portanto, seja expressa de maneira oral ou escrita, prosaica ou acadêmica, a crítica continua sendo uma ferramenta essencial para que possamos entender que as mais belas e vastas formas cravadas em nossos tempos talvez estejam sendo anuladas pela artificialidade de qualquer automatismo vigente. Para que isso seja melhor refletido, é válido que firmemos posições não autoritárias sobre o cinema, buscando concentrar nossos olhares em torno da própria expressividade existente e compreendendo que os filmes e suas matérias são aquilo que, de fato, tende a sobreviver às intempéries trazidas pelo futuro.
É importante também que esta visão não se confunda com uma percepção nostálgica e purista de cinema, até mesmo porque estamos falando de uma expressão artística derivada de outras tantas. Mais do que nunca, tem sido fundamental que reconheçamos nossos próprios critérios e saibamos porque fazemos determinadas escolhas, concedendo a esse processo seletivo o máximo de evidência que pudermos. Assim como é essencial que consideremos o pensamento crítico como uma condição imiscuída em todas as camadas do cinema. Só esperamos que, diante dessa construção de posições, também possamos entender que os filmes merecem ser compreendidos como filmes, não como meros adereços enclausurados pela economia de um mercado cultural.
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Notas
[1] DOUCHET, Jean. A arte de amar. Publicado originalmente na Cahiers du Cinéma, nº126, dezembro de 1961. Traduzido do francês por Ruy Gardnier e disponibilizado pela revista eletrônica Contracampo: http://www.contracampo.com.br/100/arttraddouchet.htm.
[2] RIVETTE, Jacques. Da Abjeção. Publicado originalmente na Cahiers du Cinéma, nº120, junho de 1961. Traduzido do francês por Lúcia Monteiro Ramos e disponibilizado no catálogo online da mostra “Já Não Somos Inocentes”, curada por Francis Vogner dos Reis e Luiz Carlos Oliveira Jr.: https://vaievemproducoes.files.wordpress.com/2013/09/rivette-miolo-final.pdf.
[3] GODARD, Jean-Luc. O perigo de querer ser um autor. In: TIRARD, Laurent. Grandes diretores de cinema. Tradução: Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.