Por outros olhares
Larissa Muniz
Descentralização do cinema, questionamento constante do olhar, busca por outros modos de fazer. Em sua 20ª edição, o Festival Internacional de Curtas apontou para um lado “explosivo” do cinema, procurando saídas num espaço propositivo de não acomodação. Da oficina de crítica de cinema com Carol Almeida ao seminário de Cinema Negro com Heitor Augusto, da competitiva internacional à competitiva Brasil, inúmeras questões estavam no ar – formais, estéticas, sociais, raciais, sexuais, de gênero. Questões que, no cinema contemporâneo, não podemos esquecer e invisibilizar, mas, ao contrário, precisamos tensionar o tempo todo.
Com 137 obras e 10 dias de duração (9 a 19 de agosto), o festival foi composto por 13 programas: as competitivas (Internacional, Minas e Brasil), as mostras (Cinema Negro, Akosua Adoma Owusu, Atravessamentos, Extravasamentos, Mulher Corpo Político, Juventudes, Infantil, Animação e Maldita) e o tributo a Safi Faye. Além disso, foram ministradas duas oficinas (Criação Híbrida, com Lynne Sachs e Crítica de Cinema com Carol Almeida) e um seminário (Cinema Negro, com Heitor Augusto). As sessões foram acompanhadas por breves aberturas, contextualizando os filmes selecionados e a ideia geral do programa. Quando cineastas estavam presentes, havia espaço para comentários pós-sessão e rodada de perguntas – um movimento imprescindível para a proposta da mostra de abrigar olhares diversos e afligir conceitos bem estabelecidos, uma vez que, na plateia e no palco, perspectivas eram compartilhadas e, mais uma vez, tínhamos a chance de pensar o cinema em conjunto.
A própria cinefilia, tal qual a conhecemos, pressupõe um rito coletivo de assistir aos filmes, afinal, a imagem nos toca positiva ou negativamente e pensar o como ou porquê disso é essencial. Se uma obra nos sensibiliza ou repele não é à toa: como uma elaboração torta do mundo, ela é permeável a inúmeros atravessamentos, cujas implicações são incontroláveis e podem tanto resultar em construções problemáticas quanto emancipadoras. Dessa forma, a imagem incorpora naturezas políticas e traiçoeiras, confrontantes e apaziguadoras, as quais nunca estão inteiramente cerradas em seus significados e, por isso, precisam ser discutidas. São considerações que me acometeram durante toda a mostra, oriundas não só do turbilhão de imagens de tantos filmes diversos, mas também dos debates que os circundaram. As exibições e eventos do festival salientaram que o cinema não é um pedestal inquestionável e impermeável. Se o fosse, não estaríamos tão interessados nele e em suas possibilidades estéticas, políticas, filosóficas e humanas. Se o fosse, não teríamos, hoje, o movimento disruptivo de ocupação da direção por pessoas historicamente excluídas da mínima possibilidade de determinar o olhar. Se o fosse, não teria porquê escrever sobre cinema.
É por isso que o gesto do Festcurtas de reunir essa proliferação de materiais, de tantas abordagens formais distintas, diz muito acerca da exigência contemporânea para que o cinema seja diverso e responda às questões do seu tempo, corroborando-as ou as refutando. Destaco ainda a curadoria que, diferente da maioria dos programas de ensino de cinema e festivais do país, teve quantidade relevante de mulheres diretoras e de direções negras. As duas homenageadas da mostra exemplificam isso: mulheres, pretas, africanas (uma do Senegal, Safi Faye, uma de Gana/Estados Unidos, Akosua Adoma Owusu). Mais do que reconhecer a importância de colocar esses nomes no circuito, tal impulso diz também da necessidade fundamental de procurar outros olhares.
Competitiva Internacional
A primeira competitiva do festival, a internacional, composta por cinco programas e dezoito filmes, foi marcada pela diversidade estética e política, reunindo obras experimentais, found footages, documentários e ficções “tradicionais”. Muitos filmes trataram de resistências individuais diante de conflitos públicos. Outros se ocuparam de pensar o cinema como linguagem que estabelece relações singulares da câmera com o ambiente e as figuras filmadas, desenhando identidades e as afetando por meio do processo fílmico.
Carolee, Barbara and Gunvor (2018), de Lynne Sachs, premiado com Menção Honrosa pelo Júri, segue a lógica desse dispositivo que toca singularidades, envolvendo suas protagonistas e as transformando em formas peculiares de expressão. Afinal, quando a câmera abraça sua personagem, se transforma nela, e a imagem resultante transmite uma pulsão cinematográfica que engloba a possível essência desses corpos. As três artistas contempladas pelo filme, Carolee Schneemann, Barbara Hammer and Gunvor Nelson, todas cineastas experimentais pioneiras, são percebidas em suas dinâmicas de trabalho e transformadas em imagem-movimento, com uma câmera íntima e aberta às suas particularidades. Carolee, em sua casa empoeirada, com uma fotografia desbotada, conta sua história – sua paixão pela câmera, seu ímpeto de filmar coisas triviais, a desconfiança de seus amigos em emprestar equipamentos para ela. Barbara, com seu vigor, corre para a câmera num movimento repetido de intensa vitalidade: a imagem estática não poderia apreender seu caráter inquieto – ao invés disso, ela invade o enquadramento e exige que seus olhos o engulam por completo. Já Gunvor pouco aparece – é capturada por folhas mortas, pelo movimento da água corrente e por plantas dançando com a brisa. Quando sua figura é finalmente gravada pela câmera, ela está de longe, respeitosamente, como se não pudesse ultrapassar uma distância máxima entre a imagem cinematográfica e a personagem discreta.
Assim, em cada seção, o filme segue o ritmo de sua artista, e a diretora media essa relação de forma delicada, elaborando preciosos minutos de cinema que evidenciam a relação câmera-artista e câmera-diretora: Lynne Sachs constrói sua visão acerca do trabalho e da personalidade de outras cineastas, às quais, elas mesmas, possuem uma relação muito particular com a imagem. Carolee, Barbara and Gunvor parte de um gesto simples que, no entanto, é complexificado devido às implicações das relações entre a câmera, o cinema e a criação.
Já Palenque (2017), de Sebastián Pinzan Silva, ganhador da Competitiva Internacional, é uma manifestação potente das poéticas da resistência, numa espécie de documentário musical. Ele segue o ritmo de San Basilio de Palenque, uma comunidade da Colômbia construída no século XVI por escravos foragidos em sua luta por liberdade, sendo o único município restante dessa história e abrigando o primeiro povo livre das Américas. Partindo de um contexto revolucionário, o filme cria um mapa musicado que acompanha cotidianos singelos – ora duros, ora amáveis. Os habitantes, devido à resistência do passado, conseguiram manter diversas tradições africanas. Com isso, as imagens, ocupadas por corpos negros que cintilam juntamente com o rosa da cidade, o azul do céu e o marrom da terra, caminham e cantam, conversam com seus companheiros e batucam seus tambores.
A abertura de Palenque prenuncia a dinâmica desenvolvida ao longo da narrativa: a câmera filma de dentro de um tambor (resultando numa imagem bege semelhante à textura da lua), que vibra com um batucar de mãos, das quais só vemos sombras. Já de início, o diretor afirma uma permanência das tradições e uma homenagem a elas por meio de uma obra íntima que explora o ritmo enigmático de um vilarejo impossível. Além disso, durante toda a obra, imagens de uma mesma estátua – metade de um corpo que sai do concreto com as mãos (envolvidas por correntes quebradas) apontadas para o céu – são exploradas por diferentes ângulos, retornando no dia e na noite, com chuva e sol. Para além da celebração da liberdade, o filme quebra a cantoria melancólica e carinhosa com um momento potente: um homem abate um boi com um machado. A imagem é cortada abruptamente e choca pela dureza de seu significado. O diretor suspende o ritmo anterior do filme, evidenciando que aquela realidade não é só parte de um musical: há brutalidade numa vida que resiste para sobreviver – mesmo se, nesse processo, há cores vibrantes, tradições diversificadas e inúmeras possibilidades de existência conjunta.
Competitiva Minas
A Competitiva Minas reuniu narrativas simples, desde documentários tradicionais até investigações linguísticas peculiares. Com retratos de personagens inusitadas, representações de relacionamentos improváveis, percursos urbanos e corpos simbolizando emancipação, os programas da Competitiva compuseram diferentes experiências fílmicas. As sessões agregaram um apanhado de diferentes questões que perpassam o cinema mineiro contemporâneo, envolvendo tanto experimentações estéticas quanto resistências individuais que tocam o coletivo.
O ganhador da Competitiva Minas foi Impermeável Pavio Curto (2018), de Higor Gomes. Trata-se de um filme de olhares sutis e composições controladas para garantir a presença central de sua protagonista (Jaqueline), a qual conduz o ritmo das cenas com muita naturalidade. Nesse sentido, o filme está menos preocupado em elaborar uma ficção complexa do que em explorar a relação dessa personagem com a câmera, de forma quase contemplativa. Quieta e sutil, a obra reflete a apatia da vida numa região periférica do interior. A narrativa foca a personalidade desconhecida da menina, sobre a qual temos apenas alguns indícios. É especialmente interessante como o filme constrói a imagem de Jaqueline por meio das fofocas a seu respeito, que indicam um temperamento incontrolado e imprudente. Entretanto, acompanhando a perspectiva da protagonista, percebemos sua rebeldia mais como um espelhamento de percepções alheias, capaz de revelar o ambiente que a circunda, e menos como uma característica insuperável de sua personalidade. A fotografia desbotada e os enquadramentos sóbrios dão a ver a melancolia que a acompanha. Por fim, o filme acaba num respiro, uma decisão de fuga que, finalmente, indica uma saída. É nesse momento, talvez, que o filme perde um pouco, justamente porque não experimenta mais com a linguagem de forma a expressar esse desejo de escape – a ponto da personagem abandonar a tia para seguir a estrada de bicicleta sem rumo ou destino.
Competitiva Brasil
Na Competitiva Brasil, o político que perpassa a esfera pública e atinge o pessoal ficou mais evidente, expressado de diferentes formas. Os programas abrangeram, sobretudo, expressões individuais diante do contexto socioeconômico e cultural do Brasil, abordando como os sujeitos (e cineastas) são afetados e reagem a condicionamentos. Nesse amplo espectro, houve espaço para descoberta de desejos escondidos, de niilismos absurdos e do corpo como entidade de resistência.
Estamos Todos Aqui (2017), de Chico Santos e Rafael Mellim, foi premiado com a Menção Honrosa da competitiva. Utilizando-se de uma linguagem corriqueira e direta, o filme trata do “corre” da favela, da necessidade cruel de “se virar” para sobreviver, sem qualquer auxílio. A obra parte de uma premissa interessante, ficcionalizando uma realidade muito comum no Brasil – a questão do despejo em comunidades. Os diretores fazem questão de evidenciar a construção cinematográfica daquela história, muito embora seja baseada em pessoas reais e seus problemas de moradia, alimentação, educação, etc. A protagonista da obra, nesse contexto de marginalização, sofre o dobro, devido à marcação de seu corpo travestido passível de inúmeras injúrias – físicas e morais. No entanto, se a princípio estratégias formais (especialmente jump-cuts) funcionam bem para englobar a realidade instável da moradora principal (Rosa Luz), depois de um tempo, perdem sua potência e arriscam tornar o filme justamente aquilo que ele não deseja ser: uma construção superficial e estereotipada da favela e dos sujeitos “subalternos”. Rosa Luz torna-se, de fato, apenas uma representação do “corre”, ao invés de uma personagem dotada de subjetividade. As soluções narrativas para tratar da situação do despejo, evidenciadas por meio de letterings descrevendo ações e da sugestão de intervenções pelas mulheres entrevistadas, rapidamente limitam a potência daquele corpo que luta e escancaram que a única saída possível seria uma solução ficcional. Por fim, a oscilação entre entrevistas e a história ficcional não é desenvolvida, deixando a estrutura fílmica pouco coesa, mais como um esboço de um filme de resistência.
NoirBLUE, (2017) de Ana Pi, vencedor da Competitiva Brasil e do Júri Popular, é um filme que recusa definições certeiras. Há elementos do videoclipe e da vídeo-dança, de documentários e ficções. A diretora, que também ocupa o lugar da performance, narração, produção e edição, parte de uma experiência pessoal – sua jornada pela África e redescoberta de sua negritude – a fim de elaborar um cinema pulsante que dá a ver uma subjetividade intensa. NoirBLUE é, essencialmente, um filme de montagem, que conduz o ritmo das cenas por meio da voz calorosa de sua criadora, esboçando sonhos, desejos, encontros e possíveis futuros. Nisso, ela tanto elabora um outro olhar, singular e descolonizado, quanto escancara ausências, especialmente evidenciadas nos fundos pretos vazios de imagem, atravessados por ecos que gritam as invisibilidades negras ao longo da história e do cinema. O tempo do filme abre espaço para profunda apreensão: não há pressa ou necessidade de insistência – Ana Pi conta, quase como um sonho ou um segredo há muito guardado, sua viagem de procura. Os resultados são tão belos quanto enigmáticos. É assim, brincando com o passado, presente e futuro, aliados à experiência de escrita de si, que NoirBLUE forma um complexo de imagens que fluem, se dissolvendo e sobrepondo, resultando numa composição extremamente íntima e potente em sua poética cinematográfica.