Águas Tempestuosas (1941), de Jean Grémillon

Entre dois mundos

Flávio C. von Sperling

É do céu que chegamos em Águas Tempestuosas (1941). No primeiro plano, aéreo, somos atraídos, feito mariposas, a uma luz acesa. É lá onde é celebrado um casamento de um marinheiro, pouco antes da tempestade interromper a cerimônia e chamar toda a tripulação do Ciclone de volta ao mar. O grupo, masculino, operando sob estrito código de conduta, isolado de algum mundo, sob a égide de um líder paternal (para o bem ou para o mal), lembra-nos um típico grupo hawksiano. No entanto, diferentemente das trupes de Grant (O Paraíso Infernal (1939)) ou de Wayne (Rio Vermelho (1948) ou Hatari! (1962), por exemplo), a de Gabin vive o isolamento mais como sina que como missão. São homens do mar, por natureza e destino. Desarticulados em terra, vivem sempre no iminente rompimento entre os dois mundos. Ciumento, o mar parece reger as vidas daqueles que lhe pertencem. O vento e a chuva, secretários do mar, são o raccord entre os dois mundos. Caprichosos e temidos pelas mulheres em terra, abrem e fecham portas e janelas ao seu bel prazer.

O fatalismo é velho conhecido de quem já passeou pelo cinema francês da década de 1930 (Remorques é projeto de 1939, mas teve sua feitura interrompida pela deflagração da Segunda Guerra e pela posterior invasão dos nazistas à França). Aqui, no entanto, ele se apresenta de uma maneira especialmente irônica, quase cruel. Toda sugestão de escolha é ilusória. Laurent (Jean Gabin) crê ter em suas mãos a escolha entre Yvonne (Madeleine Renaud) ou Catherine (Michèle Morgan), a mulher que veio do mar, entre a aposentadoria ou a vida a bordo do Ciclone. Yvonne crê que o marido em terra mitigaria sua enfermidade, não percebendo que sua morte é sacrifício incontornável para que o destino (aquele traçado por “essa mão desconhecida e vaga”, como escreve Vicente de Carvalho, o poeta do mar) se cumpra. No entanto as portas que se abrem, oferecendo-se como possibilidades, logo se fecham para que as peças sigam seu curso. A própria câmera de Grémillon pelo que enquadra e, sobretudo, deixa de enquadrar, por vezes parece sugerir outros caminhos, para logo mostrar-nos que não, não há escape. Nos seus recorrentes travellings para trás, a câmera parece rebocar as personagens para um rumo por ela já conhecido, caminhos já desenhados para as personagens, como se zelasse pelo cumprimento do destino. Catherine, corporificação poética do mar, mais nereida que sereia, é a única figura que parece saber de sua função, a de um certo desmantelamento de relações, necessários para que as personagens, peões de um jogo marcado, cumpram, por sua vez, suas próprias funções.

O terreno aqui é o tecido das Moiras, permeável e atravessado por fantasmas, mas de trama inquebrantável. A matéria-prima de Remorques é a linha, o fio, a corda. Laurent pertence ao mar, Yvonne tem que morrer – ligação que se rompe como a corda que decepa os dedos de Poubennec (Marcel Duhamel), o recém-casado, em alto mar. Yvonne se espanta quando ouve que o amputado voltará ao mar. O que mais ele poderia fazer? Ficar em terra? “Tricotar?”, pergunta Laurent a sua Penélope avariada. Ele também é do oceano, feito os marujos de Caymmi que vivem e morrem no, pelo e para o mar. A estes homens, restam a elegia, a amarração mútua – a unidade que os faz suportar sua sina (“Pessoas infelizes se reconhecem facilmente. Seria triste se não fosse assim”, observa o fiel tripulante do Ciclone), e o movimento em direção ao fim. Em Grémillon, só há poesia no movimento. A mortificação é poética, pois é processo contínuo ao qual seus personagens estão condenados, já a morte é estanque. Não nos interessa pois não faz mais parte do fluxo. Grémillon nos poupa da morte de Yvonne, num corte nos tira do quarto e nos leva àqueles que remanescem. Na banda sonora, ouvimos o urro do Ciclone, no porto, chorando a mofina de seu capitão. A cinesia na diegese, dentro ou fora de quadro, também é contínua em Grémillon: corpos e elementos sempre em motilidade. Mireille Latil-Le Dantec observa que Grémillon “renuncia a perfeição do momento a fim de descobrí-la no movimento” e acrescenta que, como Murnau, Rohmer e Bresson (eu juntaria Hawks à lista), Grémillon está entre os diretores mais traídos pelo frame, pelo quadro congelado. Como é possível dar conta, mesmo que minimamente, do que é o plano das sombras das nuvens que correm sobre a areia da praia (uma espécie de plano-síntese do filme) pinçando apenas um de seus fotogramas?

Libertado pela morte de Yvonne, pelo fio rompido, Laurent pode, então, sem epifania, fazer a roda da fortuna se mover novamente, retornar às suas atribuições para a consumação de seu destino. Na sequência que é o paroxismo da elegia de Grémillon, acompanhado dos fantasmas da tempestade, ao som de cânticos lúgubres, ele segue de volta à sua trupe e à sua embarcação. Nos despedimos de Laurent em um plano que imediatamente nos remete à Garbo de Mamoulian ao final de Queen Christina (1933) – outra fita de sacrifícios. E la nave va