Dentro de mim, há um filme que me filma
Thomas Lopes Whyte
Sem muito rigor, Ilha (2018) apoia-se em uma estrutura tríptica. Cada um dos três atos se relaciona com um momento distinto das relações entre Emerson e Henrique, formando uma clássica progressão narrativa baseada em trauma-descoberta-despedida. Emerson, que é também mais novo, toma para si o papel de reinventar o cinema. Apesar de abordar o próprio passado na história que se propõe a contar, seus impulsos criativos são sempre voltados ao futuro. A renovação do cinema é o horizonte, e sua submissão à caretice do comedimento está fora de cogitação. Henrique, por outro lado, é uma mistura de desencanto, cinismo e cansaço. É a imagem do que o cinema “se tornou”, o diretor experiente, com um passado brilhante e presente medíocre. Em certa medida, os dois, em suas singularidades, são versões de uma mesma pessoa. Os conflitos geracionais são diluídos pelo amor ao cinema, mesmo que no caso de Henrique essa retomada tenha que ser feita forçosamente.
O filme, logo no início, se filia a uma espécie de cinema de invenção. Os dois protagonistas estabelecem uma relação que possui o cinema como base. Essa autoimposição, no entanto, tem seus problemas. Ao mesmo tempo em que é aberta a possibilidade para um filme de múltiplas técnicas, que abraça, despudorado, vários tipos de enquadramentos e lentes, criam-se condições para um longa-metragem desequilibrado e, eventualmente, inclinado para afetação. Se tudo vale, a toda hora e momento, como definir os limites do gratuito a partir da perspectiva de uma obra que também é comprometida com a narrativa? Ao enredo complexo que prevê reencenações, flashbacks, e cenas de muito apuro técnico – como quando Emerson revela os abusos sofridos pelo pai –, se misturam momentos extremamente burocráticos. O jogo inventivo que conecta passado e presente desaparece quando Henrique lê uma carta deixada por seu companheiro. Nesse caso, o tradicional quadro em plongée acima do ombro sinaliza a submissão do cinema de invenção às necessidades narrativas. O cinema autoral, da criatividade a todo custo, também pode ser uma camisa de força. Poucas são as saídas do paradoxo da pós-modernidade, que reclama por um espaço de inventividade ao mesmo tempo em que se deixa seduzir e esmagar pela torrente de referências dos que vieram antes.
Do segundo terço do filme em diante, quando o trauma do encontro inicial dos personagens é substituído pela mansidão do cotidiano, Ary e Glenda parecem encontrar um cinema menos preocupado em olhar para si mesmo. O nervosismo das cenas iniciais, geralmente hipertrofiadas pela vontade de causar uma boa impressão inicial, cede lugar aos cuidados sutis que descortinam a história dos dois protagonistas. Os cineastas acertam os ponteiros sem, no entanto, perder o vigor. Depois dos desencontros, os personagens e o próprio filme se mostram mais vulneráveis. O cinema autorreferencial, muito preocupado com sua forma e o como, cede lugar ao o quê. O que mostrar? Na cena que talvez seja a mais bonita do longa, uma ideia simples – conversa franca em uma mesa de bar que termina com Henrique cantando “Clube da Esquina n º 2” – consegue captar a essência de uma experiência muito específica. É quase possível sentir o vento na nuca e o cheiro salgado do oceano enquanto os personagens bebem uma cerveja sobre o muro à beira-mar. Durante a canção, a câmera, que até então explorava o cenário, encontra um quadro forte e repousa, sem pressa, sobre o rosto de Henrique. Os olhos marejados, quase em plano detalhe, se espremem para filtrar o sol preguiçoso do fim da tarde.
Assim como Luna (2018), outro filme exibido no festival, Ilha obedece a uma lógica dos efeitos. As cenas se sucedem a partir de um sistema de ilustrações dos movimentos de roteiro. Os tempos do filme se misturam para gerar um intrincado mosaico narrativo da vida de Emerson. Nas cenas finais, por exemplo, o longa se transforma em uma espécie de documentário found footage. O passado é exibido a partir de sua reinterpretação no presente. Acostumados à versão adulta de Emerson, a infância se revela em suas tonalidades “reais”.
A ilha é cada um dos que pensam o cinema. Ela é Andrea Tonacci, Sganzerla, José Mojica, Ary Rosa, Glenda Nicácio e o Baiano Glauber. Mas é também uma condição de Emerson e Henrique, cujos corpos, apesar de se tocarem, permanecem isolados por uma aversão insistente ao afeto. A solidão do homem negro gay é ainda mais forte, e é preciso recorrer à mediação da câmera para encurtar o mar ao redor. A objetiva é a carta de amor, pois só ela permite que os dois personagens se encontrem sem que tenham que encarar um ao outro de frente. Pois olhar diretamente para o olho úmido de alguém também é encarar o reflexo e ter que lidar, no fundo, com a própria imagem.