Los Silencios (2018), de Beatriz Seigner

Na terra de mortos-vivos, as fronteiras são feitas de manchas neon

Thomas Whyte Lopes

 

Pois não se pode escusar

A passada deste rio,

Nem a morte se estorvar

Que é outro braço de mar

Sem remédio nem desvio;

E o batel dos danados

(Gil Vicente, O Auto da Barca do Purgatório)

A cena que inaugura o Los Silencios (2018) mostra uma canoa sendo conduzida silenciosamente por um homem. Descobrimos, mais tarde, que o canoeiro, tão indistinto quanto o escuro que abraça a embarcação, é uma espécie de Caronte, e o rio caudaloso, um tipo de Estige dos trópicos, a ponte entre mundos. Enquanto singramos pela correnteza sedosa do mais poderoso curso d’água do mundo, somos apresentados a um dos muitos silêncios que dão nome ao filme. Mas o escuro, em sua mudez assustadora, não é ausência, e os sons dos remos n’água, em consonância com o barulho da mata, criam uma imagem viva de um universo rico, que está ali para além do foco de luz. As forças que regem o cosmos, cujo centro temporário coincide com o meio da tela, têm origens fora do quadro. Como na “Tempestade no mar da Galileia” de Rembrandt, as ações que tencionam a narrativa estão fora da moldura, à espreita, e, como no esquema chiaroscuro barroco, atuam enquanto elemento dinâmico que insufla vida ao plano lento, quase estático. A ausência de falas que nos permite aguçar os ouvidos, adianta que o silêncio do filme será ativo, barulhento e, qual voz difusa, não articulada que é, adquire um valor positivo, mesmo em face do “nada e do “lugar nenhum”.

O destino dessa jornada, que se revela também uma fuga, é a cidade de Letícia, na região de tríplice fronteira entre Peru, Colômbia e Brasil. A família colombiana, formada pela mãe Amparo (Marleyda Souto) e os dois filhos, Núria (Maria Paula Tabares Peña) e Fábio (Adolfo Savinvino), tentam escapar dos conflitos armados que vitimaram o patriarca da família. Um parêntese para um esclarecimento conveniente: descobrimos ao longo do filme que a menina que conhecemos nessa cena inicial nos é apresentada já em sua forma desencarnada, e sua vó, que espera na margem, é a única capaz de perceber sua presença espectral.

A guerrilha colombiana tem nome, presença, mas não tem rosto. Assim como na saga dos Buendia, de García Marquez, a história do mundo também é a história da guerra, mesmo quando não conseguimos divisar exatamente as dimensões dessa “genealogia do conflito”. Às lendas ancestrais misturam-se novas tradições forjadas nos conflitos de uma história recente.  A ilha que serve de cenário ao filme de Beatriz dá sentido e força ao mito amazônico da Boiúna, cobra negra do rio, mãe d’água, que se transforma em galera-fantasma e ave bravia. Ela é a manifestação alegórica da própria morte em sua forma mais fantástica, que se camufla na mata e tem as mesmas cores dos uniformes militares. Os conflitos, são colocados à margem da estrutura narrativa. Eles estão por toda parte, mas não se revelam em sua forma material. A violência oculta, crônica e quase folclórica, anuncia sua presença apenas pelo medo e pelo ouvir dizer.

Tem-se visto enormes serpentes, esverdeadas ou pardas, nadando como se fossem troncos flutuantes, e, segundo dizem, crianças e adultos já foram arrebatados, quando acaso elas saem em terra” Relato tomado por Carl Friedrich Philipp Von Martius, no Amazonas, em 1819.

A narrativa do filme se forma ao redor de um jogo de vida e morte, em que as descobertas entre o que é véu e o que é mortalha acontecem aos poucos e de forma bem encadeada. Núria está morta, seu pai também. A ausência dos cadáveres, sepultados nas entranhas silenciosas da mata, permite o retorno dos corpos em estado de quase naturalidade. A avó, anciã e sensível às presenças do outro mundo, é quem, em um primeiro momento, nos passa a perna. Ao receber a família, é ela quem nos lembra da presença “real” de Núria. O jogo vai se desfazendo, as amarrações entre planos astrais se afrouxam, e o filme passa a deixar atrás de si um rastro de evidências, que permite sua compreensão total apenas a partir de uma leitura retroativa. A abuela, como a matriarca Úrsula, é dona dos nós e guarda consigo as chaves do mundo dos mortos, dos mistérios escatológicos dos Uitotos, dos Ticunas e dos Nukaks. Ela é testemunha do tempo, e não há história que se desenrole à revelia de seu grande olhar de coruja.

A montagem não obedece a uma rigidez imposta pelo roteiro, que possui poucos pontos de ancoragem narrativa. Alguns momentos mais significativos se formam a partir de seu potencial simbólico imagético. Cenas mais elaboradas que reinterpretam ritos funerais, assembleias fantasmagóricas, são carregadas de uma força que contrasta com o restante do filme, destinado em sua maior parte a definir as condições materiais dos habitantes de Letícia. Essas imagens se formam a partir do entrelaçamento das projeções do sonho, de um mundo fantasmático e da materialidade do território, mapeado a partir de sons, quadros estendidos e tempos mortos. Mas, ao contrário dos filmes de Apichatpong Weerasethakul e Naomi Kawase, e de uma clara filiação a esse tipo de cinema, parece haver um distanciamento entre duas espécies de mundo, e a representação da espiritualidade imanente da terra acaba interrompida pela dureza de alguns planos. Diferentemente do que se convencionou chamar de cinema de fluxo, o filme brasileiro não provoca sensações através de travellings e movimentos delicados, como ocorre, por exemplo, na obra de Hou Hsiao-Hsien. A porosidade do quadro que se abre ao não-visto do fora de campo se dá, geralmente, através da dilatação do plano estático. Dentro dessa tradição de um cinema do fenômeno, o tempo de Los Silencios se alinha ao transcorrer natural e pouco visível das cheias. As palafitas que, aos poucos, evidenciam o passar das estações a partir do nível da água dos rios, servem como cenário para o vagaroso ir e vir das pessoas que se deslocam entre ruas esburacadas e pinguelas precárias.

Los Silencios também se refere às condições de quem mora à margem. A fronteira é, em grande parte das vezes, o lugar esquecido, distante dos centros de poder. Letícia, El paso-Juarez, Caxemira e Ciudad del Este são territórios operados por uma mesma lógica invertida, são pele. Sua importância se dá menos em função de sua vitalidade e mais da capacidade de reter os problemas com que os grandes centros não são capazes de lidar.  Os limites são formados a partir de uma combinação entre conflito e esquecimento. Das periferias dos grandes centros urbanos aos rincões mais afastados do país, a margem, como no filme de Ozualdo Candeias, é mais do que um lugar geográfico. Letícia, lugar dos proscritos, é a heterotopia do esquecimento e memória, o limite capaz de revelar contrastes e apresentar tradições de rituais escatológicos milenares embrulhados em pintura neon.