
O mundo é dois, e ele não se divide
Thomas Lopes Whyte
Ao falar sobre a motivação por trás do curta A saída dos operários da fábrica (1995), Harun Farocki relata a necessidade de evidenciar o caráter cindido existente na obra seminal dos irmãos Lumière. O portão que dá acesso ao pátio externo é o exato limite que separa a linha de produção e o chão de fábrica. É como se, por trás desse umbral, houvesse apenas um limbo de memórias eclipsadas pela expressividade de imagens de uma vida mais rica em possibilidades “lá fora”. O trabalho, em sua forma-cinema, é quase sempre oculto, e sua ausência em cena ao longo da história machuca, porque se em alguma medida a tela é o espelho do real, precisamos admitir que o trabalho do lado cá é também um grande vazio, uma atividade que encurta vidas.
Marcela Borela e Henrique Borela fazem justamente o contrário e montam o esqueleto de seu filme, a partir de uma dualidade, que tem no trabalho-festa sua principal força motriz. Filmado em Pirenópolis, interior de Goiás, durante o período da tradicional festa do divino, o longa relata a vida de quatro trabalhadores jovens de uma pedreira. E retratar a vida aqui é principalmente ceder espaço à sua parte mais oca, o trabalho alienante. Marcos, Marciley, Vinicius e Capivara dividem entre si uma rotina de labuta precária, sem garantias, sem segurança e sem nenhuma satisfação pessoal.
A pedreira, mais do que um lugar para estabelecer referências de roteiro, e/ou ancorar aspectos de construção dos personagens, é ela mesma uma das protagonistas. Mãos, pés, máquinas e pedras se misturam para dar forma ao cenário desolador composto por um conjunto emaranhado de vidas em suspensão, que são preenchidas por um borrão interminável de horas indistinguíveis. As explosões que revolvem a rocha bruta são também um lembrete de que a montanha, sepulcro de homens vivos, possui um estômago barulhento e faminto.
Nas cenas que envolvem o trabalho não há, mesmo nos planos detalhe, um momento em que os quadros filmados isolem os operários da aridez ao redor. A profundidade de campo ampliada pela fotografia, que define tudo a todo momento, nos dá sempre a dimensão concreta da estreiteza daquele buraco encalacrado na montanha. O barracão de descanso é ele mesmo um prolongamento precário do mesmo material rochoso do entorno, e assemelha-se à boca de um Golem prestes a mastigar os quatro corpos inertes e constantemente cobertos de pó.
Os personagens, cada qual a seu modo, parecem se equilibrar na beira de um abismo. A revolta latente, e comum a todos os quatro, transfigura-se em medo que os petrifica.
Com o término de um contrato que nunca existiu, Marcos, o trabalhador mais antigo, é quem tem as bases de sua vida solapadas com maior violência. Sem o estofo insosso das horas passadas a fio no martelar da rocha, o que resta é muito pouco. A consciência desencadeada pela situação de desemprego escancara não só a preocupação pragmática com o futuro incerto, mas também abre um perigoso abismo em direção ao seu próprio passado. Visto agora a partir da perspectiva de uma “liberdade” compulsória, o personagem constata que atrás de si só lhe resta o vazio, e diz: “Trabalhei lá por 13 anos, tudo perdido…”.
Se por um lado, o ritmo desse território de semi-vida é o monótono talhar das lajes, por outro, o ruído polifônico da festa do divino, é a única e derradeira possibilidade de emancipação. Ao recusar o controle da prefeitura, que sugere um cadastro dos mascarados que tomam as ruas de Pirenópolis durante a folia, os quatro personagens rechaçam a colonização final de seus corpos. A máscara, que permite ao operário ser rei, bobo, duque, filantropo ou ladrão, é o artificio mágico-simbólico que opera o vai-e-vem da narrativa dos Borela. Os corpos, desmecanizados pelo anonimato, singram pelas ruas do prazer e do desperdício, fora da lógica que submete suas ações a um punhado de trocas mercantis.
Fotografados dessa vez, sob uma luz de aspecto impreciso e movimentos de câmera mais vacilantes, os quatro colegas passam por uma mudança de representação que vai do sublime ao épico. Tomados agora como sujeitos e centro propagadores de ação, é ao redor do mesmo Marcos que a potência da festa também revela sua face mais extrema, a do sexo.
O ponto de ruptura, quando finalmente os dois universos criados pelos diretores passam a integrar um único e poderoso fluxo, acontece quando Vinicius,em um acesso de fúria, sai em disparada para um acerto de contas. É como se a fina membrana entre esses dois territórios, que compartimentaliza a existência, se rompesse. E não parece coincidência que justamente o corpo negro do protagonista, atravessado pela violência histórica e ancestral, seja o único capaz de dar início ao mergulho final e vertiginoso que antecede o momento da morte. E, assim como o beijo de Marcos, a investida final de Vinicius é feita às claras, sem máscara.