Ulisses (1982)

O ensaio à luz da cinescrita

Maurício Vassali

Agnès Varda atravessou uma trajetória artística de plena subversão. É considerada uma das precursoras da Nouvelle Vague em sua estreia no cinema com o filme La Pointe Courte (1955), sendo ela cineasta mulher em um espaço restritamente masculino. Mais tarde passa a desenvolver projetos de tom mais pessoal, documentários onde exerce fortemente sua criação autoral, marca de trabalhos recentes como Os Catadores e Eu (2000) e As Praias de Agnès (2008).

É com uma fotografia feita por ela mesma no ano de 1954 que abre seu curta-metragem Ulisses (1982). Nela, à beira-mar, há uma cabra morta, um menino sentado e um homem de costas, ambos nus. A partir daí a cineasta belga introduz o espectador em um processo de escavação: décadas após captar tal registro fotográfico, ela decide buscar as impressões daqueles que compõem sua foto, seus familiares, o espaço da praia que fotografou, o contexto histórico da França naquele período, reflexões sobre a imagem e a memória para, enfim, revelar sua paisagem interior através de suas próprias indagações enquanto ser autoral. É um documentário onde o questionamento se sobrepõe às respostas. Ao invés de se encaminhar para uma conclusão, o curta se abre mais e mais na medida em que as reflexões por ele suscitadas são lançadas. Este é um dos vários trabalhos em que a cineasta explora altamente sua “escrita” cinematográfica, tanto que se credita como cinescritora da obra. 

Essa ideia do cineasta enquanto escritor é sublinhada no final da década de 40 com o conceito de câmera-stylo difundido por Alexandre Astruc (2012). Em seu texto, o autor defende o cinema como um espaço onde é possível desenvolver pensamentos e expressar ideias a partir de outros formatos que não aquele resumido ao espetáculo, ao teatro filmado, adaptações e montagem lógica das imagens. É a visão do cinema como uma verdadeira linguagem, onde seria possível desenvolver ideias e expressá-las de maneira flexível, como é a linguagem escrita. Astruc observava tais características em um cinema geralmente ignorado pela crítica na época. É curioso que na década seguinte é afirmado com maior veemência o cinema de autor a partir da Nouvelle Vague e também que ocorra a estreia de Agnès Varda em carreira cinematográfica.

Ao tomar o próprio Ulisses como elemento ilustrativo, é possível observar como Varda vai do trivial ao filosófico de maneira fluida e orgânica em sua investigação. Se em dado momento retoma o cenário político da França de 1954, em outro registra a fotografia da cabra morta sendo mastigada por uma cabra qualquer. A este momento simbólico, a cineasta se refere como “imanginaire”, algo como a deglutição da imaginação, o processar da memória (YAKHNI, 2011, p. 88-89). É exatamente nessas escolhas que o curta elucida o conceito de “câmera-caneta” (ASTRUC, 2012), em que o cinema aos poucos se afasta da “tirania do visual, da imagem pela imagem, da narrativa imediata, do concreto” já que “nenhum domínio deve lhe ser interdito”, sendo do seu interesse debruçar-se sobre “a meditação mais despojada, um ponto de vista sobre a produção humana, a psicologia, a metafísica, as ideias, as paixões”. Para Astruc, “a expressão do pensamento é o problema fundamental do cinema”. Varda recorre à narração, à fotografia de sua autoria, às imagens de arquivo, às entrevistas, às percepções alheias sobre seu trabalho e às construções simbólicas para expressar seu pensamento, dentro de uma linguagem visual que a permite comunicar-se. Ela própria com seu trabalho, com seus entrevistados, com o espectador. 

Todo pensamento, como todo sentimento, é uma relação entre um ser humano e um outro ser humano ou certos objetos que fazem parte do seu universo. É explicitando essas relações, desenhando as tangentes, que o cinema pode ser verdadeiramente o lugar de expressão de um pensamento. (ASTRUC, 2012)

Essa escrita fragmentada que a cineasta usa para exprimir seu pensamento não é exclusividade do curta em foco neste trabalho, é uma assinatura que marca vários dos seus filmes. A forma ensaística de fazer audiovisual trata de uma relação bastante estreita entre cinema e pensamento, que revela um ponto de vista, a “subjetividade pensante do ensaísta que traz para um primeiro plano sua voz reconhecível, uma expressão pessoal de sua escritura” (TEIXEIRA, 2015, p.17). Em Ulisses, Varda não se propõe apenas a descobrir o paradeiro das figuras presentes em sua fotografia quase 30 anos após o registro. O curta é sobre a imagem e o que ela evoca. Se logo de início ela apresenta a foto em si, em seguida ela mostra ao espectador a forma como ela via a imagem no momento do registro. Pelo visor da câmera, a imagem está invertida e cortada pelas linhas de enquadramento. É uma afirmação do ponto de vista com alto grau de subjetividade, humano, onde a mobilidade do pensamento invade a narrativa e permanece até o final. 

Há uma metodologia na abordagem empregada por Varda em seu trabalho. Não se trata, contudo, de um corte concreto e acadêmico. Ela opta por outros recursos no intuito de afirmar seu pensamento. O primeiro entrevistado por ela, por exemplo, é o homem nu presente em sua fotografia. Passados os 28 anos desde o registro, é possível saber que se trata de um egípcio que agora trabalha como diretor de arte na revista Elle. A diretora coloca o entrevistado nu diante da câmera. Com o corpo já envelhecido, não parece se importar com a própria nudez, como não parecia na fotografia de 1954. Para entrevistá-lo, Agnès lhe entrega a imagem impressa e algumas pedras da praia onde ele outrora havia posado. O entrevistado tenta lembrar do momento do registro, da criança, da cabra, da praia. Mas vai além. A cineasta provoca o entrevistado apresentando outras imagens dele próprio naquela época. Está decidida a explorar a memória e consegue. Em determinado momento, o homem afirma lembrar das roupas que vestia, do suéter, dos sapatos, da camisa. Se perde, entretanto, ao tentar recordar de si mesmo. Não consegue, não quer (Cf. YAKHNI, 2011, 82-84). 

Em Ulisses, o emprego de metodologias como a descrita no parágrafo anterior são recorrentes. O intuito da cineasta não parece ser o de buscar respostas, mas sim de causar reflexões, questionamentos como o do egípcio que se revela incapaz de recordar seu eu passado. Agnès pergunta a si mesma em sua narração o que queria ao fazer aquele registro. Não responde. Prefere sair em busca da criança presente na fotografia. O Ulisses, agora adulto, que dá nome ao seu filme.

Essa quebra do conceito de método enquanto algo tradicional faz parte do que se convém chamar de ensaio. Em seu texto basilar “O ensaio como forma”, Theodor Adorno (2003) se debruça sobre a literatura, origem do método ensaístico. Para o filósofo, é necessário que se trabalhe com o transitório de maneira a aprofundar o pensamento do autor sem cair na armadilha da dedutibilidade definitiva. Desta forma, o ensaio “não apenas negligencia a certeza indubitável, como também renuncia ao ideal dessa certeza” (ADORNO, 2003, p.30). Em Ulisses, a cineasta constantemente recusa o definitivo, a conclusão de um pensamento. Pelo contrário, ela faz provocações, muitas destas são advindas de intervenções propostas por ela mesma. Há o egípcio, Ulisses e sua mãe, a cabra, as crianças que observam sua fotografia, há também ela mesma. Seu ensaio conecta “livremente pelo pensamento o que se encontra em objetos de sua livre escolha” e “não insiste caprichosamente em alcançar algo para além das mediações” (Ibidem, p.27).

Ao não se entregar à dureza em seu formato, o curta se apresenta em fragmentos. É como se reunisse blocos aparentemente independentes entre si, desconexos, quando na verdade tratam de diferentes abordagens para o mesmo objeto em questão. Se em um momento fala-se da doença de Ulisses durante a infância, em outro há menção à obra de Picasso. Varda conta ao espectador a quem ela exibiu sua fotografia: Salvador Dalí, sua vizinha Mimi, o sal. Logo após revela não ser uma das 60 mil pessoas que possuíam televisão na França em 1954 e, por isso, não foi uma das espectadoras de Totó e Fabrizi em Polícias e ladrões (Guardie e ladri, Mario Bonicelli e Steno, 1951). Ao invés disso, fez a fotografia sobre a qual agora se debruça. É algo que Adorno (2003) define como uma suspensão do conflito, uma descontinuidade que é altamente essencial. Há uma estrutura que leva a crer um infinito de possibilidades e, ao mesmo tempo, estar prestes a ser interrompida. Sua unidade é pautada pela busca “através dessas fraturas, e não ao aplainar a realidade fraturada” (Ibidem, p.35).

Escreve ensaisticamente quem tenta capturar seu objeto por via experimental, quem descobre ou inventa seu objeto no ato mesmo de escrever, dar forma, comunicar, quem interroga, apalpa, prova, ilumina e aponta tudo o que pode se dar a ver sob as condições manuais e intelectuais do autor. O ensaio busca apreender um objeto abstrato ou concreto, literário ou não literário, tal como ele se dá nas condições criadas pela escrita. (BENSE, 2014)

Em seu texto sobre a “câmera-caneta”, Astruc (2012) se refere ao ensaio (no caso, escrito) como uma forma de expressar o pensamento ou obsessão do autor. Essa particular forma de expressão da subjetividade autoral tem tido uma atividade cada vez mais intensa no cinema nas últimas décadas. O que antes se mostrava como potencial, agora se converte “em uma prática cada vez mais recorrente do audiovisual contemporâneo” (TEIXEIRA, 2015, p.17).

Em Ulisses, Agnès Varda cinescreve com sua câmera-caneta um pensamento repleto de subjetividade, uma reflexão não dedutível, um discurso inconcluso. Revela ainda sua paisagem interior (algo que fará de maneira quase literal em 2008 com seu As Praias de Agnès). A heterogeneidade é sua marca e seu tempo é cinescrito a partir do descontínuo. 

REFERÊNCIAS:

ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: ADORNO, Theodor. Notas de literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003.

ASTRUC, Alexandre. Nascimento de uma nova vanguarda: a caméra-stylo. L’écran français, n.144, 1948. Tradução de Matheus Peixoto. Foco Revista de Cinema, n.4, 2012. Disponível em <https://goo.gl/1JKfuy> acesso em 12/jul/2022.

BENSE, Max. O ensaio e sua prosa. Merkur, n.3, 1947. Tradução de Samuel Titan Jr. Revista Serrote, n. 16, 2014. Disponível em < https://goo.gl/cLSrHw> acesso em 12/jul/2022.

TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. O ensaio no cinema: Formação de um quarto domínio das imagens na cultura audiovisual contemporânea. São Paulo: Hucitec editora, 2015.

YAKHNI, Sarah. Cinensaios de Varda – o documentário como escrita para além de si. Tese (Doutorado em Multimeios) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 221 p., 2011.

FILMES CITADOS

CATADORES e eu, Os (Les glaneurs et la glaneuse). Agnès Varda. França. 2000. 35 mm.

POINTE Courte, La. Agnès Varda. França. 1955. 35 mm.

POLÍCIAS e Ladrões (Guardie e ladri). Mario Monicelli, Steno. Itália. 1951. 35 mm.

PRAIAS de Agnès, As (Les plages d’Agnès) Agnès Varda. França. 2008. 35 mm.

ULISSES (Ulysse). Agnès Varda. França. 1982. 35 mm.