Marco Túlio Ulhôa
A análise da obra do cineasta francês Philippe Grandrieux, frente à teoria interpretativa do cinema de terror como um gênero que, desde o século XVIII, passou a ser conceitualmente definido em meio aos paradigmas do romance moderno, representa um exercício investigativo capaz de conectar os desdobramentos do estilo no cinema contemporâneo a um delicado exame das figurações que garantiram à sua tradição as especificidades de um regime estético baseado no poder pictórico e simbólico das imagens que, da literatura ao cinema, produziram o seu imaginário artístico. Portanto, seria impossível traçar quaisquer perspectivas analíticas sobre o cinema de Grandrieux sem remeter às origens do terror gótico como gênero literário tardio que, em meio à arte e aos princípios racionais de um mundo iluminista, produziu um inveterado retorno à função do pathos existente na arte medieval. Esquivando-se, por sua vez, da unicidade das leituras exegéticas e das pedagogias próprias à cultura cristã, o terror moderno produziu novas imagens e formas de escrita capazes de se desdobrarem em perspectivas muitas vezes ambíguas, cujas deduções metafísicas e fenomenológicas de seus processos de significação garantiram ao gênero tanto uma guinada ao mundo romântico da crença e da fantasia, quanto ao realismo e às interpretações promovidas pela teoria cognitiva e pelo campo da psicologia evolutiva. Por sua vez, a obra de Philippe Grandrieux representa um extenso tecido conectivo entre as diferentes inscrições do terror como um gênero artístico sujeito aos domínios de uma vasta tradição crítica, de modo que seus filmes realizam as possibilidades elementares do cinema de terror através de um processo em que os efeitos do estilo na sua linguagem cinematográfica nos restam apenas como leituras residuais, porém não menos potentes, diante de produções que estão além de um gênero específico.
Entre o medo e a violência, a patologia e a barbárie, Philippe Grandrieux projetou em sua obra um espaço de síntese dos termos que, historicamente, garantiram ao cinema de terror as vocações da tradição crítica e das predefinições estilísticas. Em A Vida Nova (2002), Grandrieux propõe novas possibilidades ao cinema de terror, ao mesmo tempo em que realiza uma obra livre das estruturas narrativas que, normalmente, constituem a identidade do gênero. Para isso, o diretor desenvolve estratégias que atravessam o modelo discursivo de seus filmes, como portas que garantem a entrada do espectador em um ambiente paralelo, nos domínios de uma realidade construída, onde o espaço-tempo e as ações adquirem regras próprias, fazendo com que a sua obra se subordine ao gesto visceral que caracteriza o seu próprio método cinematográfico. Contornando a produção de um enredo descritivo, de uma história retratada em sua totalidade, ou de uma ordenação dos fatos narrativos, Grandrieux parece realizar, na mesma medida em que subverte, a tarefa ontológica que as cinematografias que constituem as bases da sua formação revelaram como a busca de uma essência imagética da linguagem cinematográfica. Tomando a manipulação das imagens como o eixo de um modelo de discurso fílmico esvaziado da função da palavra, Grandrieux realiza uma escrita puramente visual que transforma A Nova Vida em um espaço de diálogo entre os efeitos estéticos que marcaram as diferentes tendências do cinema de vanguarda da década de 1920 e os elementos que mais tarde resultariam na videoarte e no cinema experimental. Em A Vida Nova também estão inscritas as ambivalências que a influência do expressionismo alemão, do realismo que na primeira metade do século XX orientou a ficção e o documentário francês, além da constante reverência ao cinema japonês, inscreveram na obra do diretor. No entanto, para além dos realces oníricos e metafísicos que marcam a estrutura mítica e simbólica de boa parte destas filmografias – em especial o cinema clássico japonês – o livre exercício de Grandrieux, em resposta ao cinema de gênero, projeta o filme A Vida Nova em um espaço de debate em torno das bases da estrutura psiconarrativa do gênero do terror, em que o gesto terrificante que garante à etimologia do termo a sua dedução metafórica e material, representa o verdadeiro intuito por trás da obra do cineasta. Pois, em A Vida Nova, Grandrieux transforma o horror e os seus efeitos estéticos em uma ampla discussão acerca da própria materialidade do cinema, acompanhada pela forma como a dimensão política de sua obra declina nos termos de uma perspectiva biopolítica.
A sequência inicial de A Vida Nova nos revela a imagem de um corpo coletivo de pessoas que, entre a penumbra e os movimentos acelerados da câmera, figuram como espectros perante a mirada arrebatadora de algo indescritível, da natureza insólita daquilo que não tem tradução e memória. Com uma imagem paradigmática, Grandrieux nos insere no obscuro universo de A Vida Nova, onde os limites entre o delírio, o erotismo, a violência e as tramas de suas respectivas estruturas psicológicas, se confundem com a convulsão social e com os signos da barbárie. As cenas que sucedem a introdução do filme revelam corpos nus sendo manuseados como objetos, sugerindo os ultrajes da escravidão humana e a projeção do horror inscrito em nossa própria miséria histórica. Certamente, Grandrieux toma a história moderna da Europa como reflexo da ruína sob a qual se assenta a civilização ocidental. Nesse sentido, a narrativa de A Vida Nova não projeta mais do que indícios onde a escravidão sexual, a corrupção e o crime organizado compõem o solo sob o qual o enredo se desenvolve, em meio a sequências dotadas de autonomia poética frente à totalidade da obra. A dialética interna do filme de Philippe Grandrieux produz movimentos em que os sentimentos de temor e assombro se traduzem em códigos que vão da transparência das imagens, em suas violentas manifestações como registros das formas brancas do terror psicossocial, até a produção de imagens fantasmáticas, expressivamente marcadas pelos excessos das manipulações realizadas por Grandrieux. A síntese encontrada pelo cineasta se traduz em uma visão patológica e negativa da realidade, onde a fronteira entre o humano e o inumano dinamiza a experiência encarnada tanto nos gestos do seu processo de filmagem quanto na representação dos personagens como sujeitos animalizados pelo sexo e pelo desejo. A inconstância e a imprecisão sobre aquilo que se olha é parte da não-objetividade da narrativa de Grandrieux, na qual os desfoques e os recortes são a inscrição de um filme que progride através de espasmos, de fluxos que são interrompidos por cortes violentos, nos mantendo na exasperada iminência de retomar o fio narrativo de outra sequência em aberto. Eis a fragilidade apontada pelo próprio Grandrieux a respeito do sistema narrativo construído em A Vida Nova. Postura que se realiza como corpo proeminente de um método tão convulsivo quanto aquilo que o próprio filme se dispõe a mostrar.
Produzindo uma obscura e complexa interpretação cinematográfica dos caracteres do biopoder que reduzem a vida humana à sobrevivência biológica, Philippe Grandrieux introduz os silogismos das pulsões, das patologias, da animalidade e do erotismo no cerne de seu debate conceitual sobre os limites sádicos e imorais da razão humana. Declinando no lugar comum de uma perspectiva autodestrutiva, as especulações de Grandrieux não mostram mais do que apontamentos, muitas vezes perdidos e confusos, quando se tratam de interpretar a vida nua a que o homem foi reduzido, ao ser privado de todas as formas de linguagem na experiência dos campos de concentração. Entretanto, o valor do testemunho como algo que está contido naquilo que lhe falta é o eixo sob o qual o cinema de Philippe Grandrieux exerce uma potente apreciação dos efeitos materiais e imateriais do cinema, sem reduzi-lo, no entanto, aos contornos da tradição metafísica que permitiu tanto às diferentes matrizes do gênero do terror quanto à própria teoria cinematográfica, projetarem-se como reduções da demasiada humanidade do mundo poético sobre o mundo sensível. Por fim, mesmo que a obra de Philippe Grandrieux não se restrinja àquilo que podemos chamar de cinema de terror, a forma como a sua linguagem se organiza entre a transparência das formas ontologizadas da barbárie humana e a profundidade sombria do pathos imagético, nos mostra que a verdadeira sensação capaz de nos aterrorizar é aquela que redunda do nosso único e exclusivo papel de autores das forças que se mantêm em jogo na dialética do bem contra o mal.