Do mar ao caos
Thomas Lopes Whyte
Terceiro longa de Rodrigo Aragão, Mar Negro (2013) reafirma a posição do diretor como um dos principais nomes do cinema brasileiro de horror da atualidade.
Natural de Guarapari, cidade litorânea do estado do Espírito Santo, Rodrigo Aragão busca ali mesmo, no “quintal” de casa, paisagens que permitam contar suas fábulas e, em alguma medida, representar os costumes de populações locais. Ao mesmo tempo em que busca inserir questões relacionadas ao meio ambiente e à forma como a exploração predatória vem alterando a dinâmica de comunidades que dependem desses biomas,o diretor apresenta seu terror repleto de violência em cenários tropicais, com muita comida repugnante e personagens de um imaginário tipicamente tupiniquim.
Se, entre as várias funções acumuladas por Rodrigo, ele já conseguia desempenhar com maestria o papel de maquiador desde seus primeiros curtas, foi preciso mais tempo para que ele amadurecesse como diretor e autor. Em seus dois longas anteriores, Mangue Negro (2008) e A Noite do chupacabras, (2011), as saídas encontradas para o desenvolvimento de suas fábulas são bastante esquemáticas e muito presas ainda a certas convenções do gênero.
Já em Mar Negro, que conta com um argumento bastante simples, Rodrigo demonstra um bom controle da ação e um texto bem trabalhado. O filme possui uma estrutura redonda e se divide em atos bem definidos, mantendo sua coerência sem recorrer a flashbacks ou diálogos didáticos para justificar escolhas da narrativa. Assim como nos filmes anteriores, a gênese dos problemas que desencadeiam os eventos reside sempre no aparecimento de um elemento estranho, que ameaça o meio de vida de uma comunidade. O pescador Peruá, personagem vivido pelo experiente Markus Konká, atua como a personificação do passado, e é somente a partir de sua morte e da destruição simbólica de um vínculo com tempos remotos que o frágil equilíbrio se rompe, dando início aos desdobramentos que culminam com a morte dos habitantes do vilarejo.
De uma forma geral, Mar Negro se destaca por exibir personagens bem construídos e explora com mais riqueza traços de suas personalidades e aparência, mesmo que de vez em quando ainda caia em algumas armadilhas e clichês. Albino, personagem principal da trama, talvez seja o melhor e um dos mais ricos personagens de Rodrigo Aragão. Dono de um passado misterioso, um esquizóide, interpretado por Walderrama dos Santos, é uma versão mais complexa do protagonista vivido pelo ator em Mangue Negro. É também o responsável pela costura entre o mundo corpóreo dos mortos-vivos e o universo etéreo do ocultismo, que aqui coexistem de forma bem acertada. Esses dois campos temáticos se entrelaçam ao longo de toda a duração do filme e permitem ao diretor explorar elementos de duas das mais prolíficas vertentes estéticas do cinema de horror: o cinema trash e o terror paranormal. Se de um lado o filme é sombrio e prefere trabalhar com sugestões, do outro ele é sangue, vísceras e violência. Com muitos anos de experiência na área, vemos aqui um maquiador em sua melhor forma e um diretor criativo em busca de uma iconografia própria.
Partindo de um raciocínio que tem o efeito como gerador de causa, o filme é repleto de cenas memoráveis que abusam de tiradas cômicas e insólitas. Em um momento de pura inspiração, ao som de um coro macabro, o corpo sem vida de Indianara, interpretada pela atriz Kika Oliveira, é mergulhado em um barril de banha, como um pedaço de carne em conserva de lata. Uma sequência assustadora, que joga com a ideia de imortalidade pela preservação do corpo.Uma espécie de criogenia lowcost que vai muito além de qualquer solução óbvia. Alguns outros momentos de destaque ficam por conta da aparição do próprio Belzebu,do acesso de fúria de madame Úrsula com sua metralhadora e da primeira e única baleia zumbi de toda a história do cinema.
O filme possui uma série de problemas, principalmente em função do orçamento apertado, tão comum em filmes de gênero nacionais. Uma das principais falhas é a falta de condução nos planos secundários que conectam os planos das sequencias de ação ao corpo narrativo principal do enredo. Esse espaço intermediário parece ficar à deriva, e a sensação que se tem é que longos trechos das sequencias foram preenchidos com planos gerais de apoio pouco significativos. Isso se torna claro principalmente no desenvolvimento das cenas passadas no bordel de madame Úrsula, interpretada por Cristian Verardi. Seja por falta de recursos para trabalho de arte, ou por uma escolha ruim de locação (que contrasta com o excelente bar de seu Otto e a casa de Peruá), as sequências aqui são menos expressivas e à medida em que a câmera se afasta dos rostos em direção aos planos gerais, a qualidade do material cai, dando a impressão, em certos momentos, de que a carnificina não passa de uma festa kitsch mal sucedida.
Dito isso, Mar Negro é também atravessado por vários outros subtextos, e pode ser compreendido, assim como outros bons filmes de horror, de uma forma mais rica, que vai muito além do simples gore, do Kitsch e da matança desenfreada. Uma das características mais formidáveis dos filmes com mortos-vivos é a capacidade que possuem de servir como mote para a discussão de uma infinidade de temas. Quando captam o espírito do espaço social em que estão inseridos, as obras passam a estabelecer um diálogo múltiplo com o espectador, que vai além das tripas, mutilações e sangue. Desde antes dos geniais zumbis anticapitalistas em O despertar dos mortos (1980) de George Romero, e dos zumbis alienígenas e anticomunistas de Vampiros de almas (1956) de Don Siegel, o subgênero tem sido utilizado para comentar, muitas vezes de forma eficaz, diversas questões relacionadas não somente ao campo específico da psicologia do medo, como também questões sociopolíticas. Mar Negro, sem cometer a empáfia de alçar voos maiores que as asas, assume esse papel e mantém a discussão ambiental sempre patente, sem, no entanto, perder de vista o compromisso com a diversão.
Finalmente, é importante compreender que para se fazer filmes com baixo orçamento, é preciso ser inventivo e saber tirar leite de pedra. E nisso Rodrigo Aragão tem sido muito competente, ao conseguir criar seu próprio universo dentro do cenário audiovisual brasileiro. Trabalhando à margem de um sistema que não incentiva os filmes de horror, o realizador vem conquistando espaço ao circular cada vez mais pelos festivais e salas do país, impulsionado pela crescente popularização do tema, que conta atualmente com uma grande quantidade de produções internacionais. A continuar como tem feito, é possível esperar um ótimo quarto longa-metragem de uma equipe tarimbada de atores e técnicos cada vez mais entrosados.
Mar Negro não poderia ter sido mais oportuno e até um pouco profético ao falar, mesmo que tangencialmente, da degradação do litoral capixaba. Um tiro certeiro, no contexto de um país que sofre as consequências do pior crime ambiental de sua história. Não seria difícil imaginar um quarto longa ambientado na foz do Rio Doce, com mortos ressurgindo do interior da lama contaminada de minério. E quem sabe então, pelo menos no campo da ficção, poderíamos vislumbrar uma revanche contra um sistema mais desumano que os próprios zumbis comedores de cérebro.