A Noite do Desejo (1973), de Fauzi Mansur

A noite do desejo 1

O gozo que não vem 

Roberto Cotta

Proibido exagero de afeto
e carinho neste estabelecimento

AMBIENTE FAMILIAR

(Aviso pregado na parede do Bar Mineirinho II)

Há um procedimento repetido à exaustão em A Noite do Desejo (1973), de Fauzi Mansur. Sempre que atitudes mais contundentes são desferidas pelos protagonistas, a montagem as opera de forma castradora, interrompendo o êxito dessas ações. É como se uma fagulha de brasa fervente fosse lançada sobre suas faces, só pra lembrar-lhes que o fracasso segue via de mão única. A reiteração desse recurso é o mecanismo arterial que bombeia o filme. É através dele, inclusive, que podemos acessar as insuficiências desses personagens ao tentarem desfrutar os prazeres desse mundo interditado que habitam. A cada nova solução imaginada, o júbilo é logo freado. O deleite dos prazeres noturnos no centro paulistano, planejado com esmero virginal, transforma-se aos poucos numa interminável tormenta.

Tal premissa, entretanto, não é servida de bandeja para sustentar qualquer fabulação moral que o valha. Pela contramão, o modo como se articula, na verdade, nos revela a coerência de uma condição angustiante, recheada de sonhos suprimidos, expectativas cessadas e retornos mutilados. Desse modo, as espacialidades da mais imponente metrópole brasileira convocam seus dilemas. Os motéis, bordéis, boates e cabarés evidenciam uma estrutura desordenada entre a diversão e o trabalho, o prazer e a resiliência. Em contrapartida, as vidas que brotam dali não são suficientemente capazes de equilibrar essas diferenças, até mesmo porque aquilo que de fato consolida a crueza das ruas surge justamente de dois fatores de instabilidade: o tom desalinhado que emana de suas vivências e o modo inesperado como elas mesmas constroem seus sentidos e estabelecem suas próprias regras.

De um lado, temos prostitutas, cafetões, atendentes, comerciantes e empresários ansiosos por receber pelo trabalho que fazem. Do outro, voyeurs alucinados, clientes desesperados e transeuntes insones que experimentam um momento de lazer para fugir do azedume de suas rotinas. Cada um deles apresenta a sinceridade de seus apetites e, obviamente, todas essas aspirações se constituem através das mais divergentes perspectivas. Feito em pleno coração sepulcral do golpe militar, o filme compreende que não existem anseios populares que não possam ser reprimidos pela ordem.

A montagem, portanto, oferece um painel de estratégias que dialogam com essa condição política cerceadora, que corrói tanto aqueles que desfrutam do prazer quanto os que o utilizam como forma de sobrevivência. Além do mais, sobreviver ileso nesse universo dos prazeres remunerados é realmente para poucos. E mesmo quem parece caminhar por ali sem tropeços, ora ou outra têm suas espertezas esmagadas pela franqueza das ruas e pela crueldade – esta, sim, irrefreável – da vida adulta.

A noite do desejo 2

Com a versão original censurada pelo regime, Mansur e o montador Inácio Araújo tiveram que fazer modificações para o lançamento do filme. Dentre as alterações, surgiram duas novas tramas que foram intercaladas à narrativa principal. Numa delas, a polícia persegue um assaltante de joias que invadira uma mansão. Na outra, um moço vindo do interior procura a ex-noiva grávida no centro de São Paulo. A forma desproporcional como esses enredos são entrecortados propõe os travamentos que orientam a construção estrutural do filme, ao mesmo tempo em que nos coloca em estado de suspensão e nos concede a angústia necessária para mergulharmos de cabeça nas vivências desses personagens. Entretanto, as resoluções de cada uma dessas histórias são postergadas e empurradas para o final, quando um clímax monumental explode, cruzando as três tramas e provocando o mais jactante gozo coletivo no espectador.

Toninho (Ney Latorraca) e Giba (Roberto Bolant), os protagonistas do filme, são dois jovens proletários desvairados por sexo que partem para a esbórnia noturna na capital paulista. Saindo do seu habitat de origem (fábrica, ônibus lotado, periferia), o descompasso fica óbvio. Num bordel cafona, eles se interessam por uma prostituta grávida, interpretada por Selma Egrei. Em devaneio, fantasiam seu corpo esguio a bailar, com o olhar fetichista vizinho a qualquer filme feito na Boca. Não demora muito para que um corte específico apunhale seus sonhos. Eles finalmente percebem a gravidez da moça e a rejeitam, fugindo do cabaré como dois adolescentes amedrontados pela crueza cálida da noite. O desejo então se reprime, ou melhor, a imagem verdadeira do mundo se mostra e coíbe as vontades sonhadas.

A mesma toada pavimentará o restante da sina aventureira dos rapazes, mostrando que não adianta sonharem acordados, pois a grana é escassa e a distância entre a orgia imaginada e a realidade vivida não pode ser percorrida a pé. Dessa forma, o filme segue seu curso cruel, trazendo personagens incapazes de lidar com suas próprias impotências. E todos eles (marginalizados, abobalhados, deslocados) não conseguem entender que o desfrute do prazer não pode ser obtido de maneira plena nesse lugar acabrunhado.

O que vemos a partir daí é um desvelar de situações que não se concretizam, capitaneadas por um vai-e-vem de infortúnios que assolam essa experiência atroz dos protagonistas, assim como gangrenam quaisquer possibilidades de triunfo para quem os acompanha. Não adianta espernear nem chutar o balde. “Noite é assim mesmo”, diz um deles ao amigo cansado, que pretende esquentar suas nádegas no sofá da primeira boate de quinta categoria que encontra. Mas a vida noturna na Boca não é propensa a afagar bundas-moles. Aos parcimoniosos, a única saída talvez seja reconhecer a vulnerabilidade de seus atos, o que Toninho e Giba nunca fazem.

A noite do desejo 3

Desde o começo, a ideia de impedimento toma conta do filme. Um homem interrompe as encoxadas de Giba numa moça no ônibus, a mãe de Iracema evita os amassos entre sua filha e Toninho na varada de casa, o breu da noite embaça a mira do caseiro que tenta atirar em um assaltante. No entanto, é a partir do momento em que os protagonistas avistam Marcela (Marlene França) que a impossibilidade de sucesso torna-se definitiva. Com seu olhar lânguido, ela desestabiliza o ambiente, expurga a presença de todas as outras prostitutas ao redor e atrai as atenções dos dois mancebos para o resto da noitada. Aos trabalhadores e trabalhadoras da noite, a expectativa do lucro farto é sempre bem-vinda.

À espera de Ivete (Betina Vianny), sua colega de trabalho, Marcela consegue ao mesmo tempo capturar os interesses de Giba e fazer com que Toninho aguarde ansioso pela formação dos pares. Enquanto isso, Fonseca (Francisco Curcio), um figurão dono de boate, tenta convencer Giba a levar os amigos para uma festinha particular em seu luxuoso apartamento. O rapaz se ofende com o convite e agride violentamente o empresário no banheiro, que acaba com o rosto prostrado dentro de um mictório. Contudo, ele não desiste de tentar saciar seus desejos e continua perseguindo o rapaz por onde quer que ele vá.

Dentre todos os freios pisados pelo filme, a sugestão de uma homossexualidade enrustida de Giba é um dos mais fundamentais. Em todas as situações em que o envolvimento homoerótico é quase levado a cabo, as resoluções são destroçadas e o personagem é puxado pelo colarinho da blusa de volta ao armário. A amizade entre ele e Toninho diversas vezes suscita essa possibilidade, quase chegando à evidência no momento em que Giba finalmente convida Fonseca para o quarto, provocando a ira do amigo e mais uma súbita irrupção de violência contra o empresário. Resta a Giba a clausura de uma vestimenta fantasiosa de macho suburbano que precisa deflorar prostitutas para comprovar ao amigo sua masculinidade.

Outra lápide de realidade que o filme rabisca é a ideia de que, em tempos nefastos, os mais talentosos dribles na moralidade deveriam ser feitos com a mais categórica ironia. Por exemplo, quando precisa convencer a mãe a emprestar-lhe um dinheiro para cair na farra, Toninho diz a ela que pretende comprar um presente para sua namorada Iracema. Por motivos óbvios, é claro que o presente nunca existirá. No mesmo dia, o pega-pega com a moça na varanda é acompanhado pelos gritos irritantes da mãe dela, bem como são reprimidos pelas palavras da própria jovem, reforçando que eles não podem transar antes do casamento. Ironicamente, isso acaba sendo mais um combustível moral para Toninho tentar aproveitar ao máximo a visita orgiástica às bocadas do centro. E, na volta derrotada para casa, ele e Giba percebem que não têm nenhum tostão para pagarem a condução. De modo zombeteiro, é justamente Iracema quem aparece e salva a pátria dos dois, doando ao namorado uma quantia para resolver a parada. Como se nada tivesse acontecido, a despedida do casal dá a entender que se encontrarão de novo à noite, provavelmente na mesma varanda de sempre.

Chapiscado por tons de fascínio pela ironização da libido masculina, A Noite do Desejo traduz o sentimento mais essencial presente nos filmes da Boca, ou seja, a busca pela liberdade sem freios, pela representação do prazer sem qualquer tipo de culpa ou limite. Contudo, para que essa essência fosse trazida à tona, os caminhos traçados seguiram uma linha tênue entre o gozo e sua possibilidade de repressão. Ao final, entendemos que a estrutura do filme é quase semelhante ao ato sexual tão vislumbrado pelos protagonistas, com direito à busca pelo encaixe perfeito entre os parceiros, à fricção de seus corpos, às juras falsas de eu te amo, aos gemidos catárticos no apogeu da transa e, até mesmo, à monotonia e ao cansaço na ressaca do pós-sexo. Mais do que tudo, no cinema brasileiro dos anos 70, o gozo sempre foi o melhor antídoto para estraçalhar a repressão.