Lilian M: A esquizofrenia da alma feminina no Cinema da Boca
Veriana Ribeiro
Os primeiros minutos de Lilian M: Relatório Confidencial (1975), de Carlos Reichenbach, começam com o plano de um gravador sendo ligado. Uma voz masculina pergunta: “Qual o seu nome?”. No contraplano do mesmo gravador, uma voz feminina responde: “Célia Olga”. O entrevistador então explica: “Seu nome no filme”. A atriz (ou seria agora a personagem?) diz: “Lilian”. Novamente a identidade é questionada pelo homem. “Seu nome verdadeiro no filme”. “Maria”, responde a mulher. Durante toda a cena, o gravador é filmado em duas posições diferente, uma para a voz masculina e outra para a voz feminina.
A cena é de um primor simbólico e cinematográfico incontestável (difícil não identificar uma referência a Godard, um dos nomes mais importantes da Nouvelle Vague). Através dessa brincadeira entre plano e contraplano, o objeto inanimado (gravador) ganha vida, sentimento, personalidade. O mesmo acontece com Maria. A personagem abandona uma vida passiva e sem desejos próprios, nem ao menos sexuais, deixando para trás o marido lavrador e os dois filhos pequenos, para seguir um vendedor charlatão até a cidade grande. No trajeto, acaba sofrendo um acidente. Morre o amante, morre Maria. Ali nasce Lilian – mesmo que ainda demore algumas cenas para ela encontrar o novo nome.
Na cidade grande, o filme muda de estilo e de gênero a cada personagem masculino que entra na vida da personagem. Lilian é comédia, melodrama, suspense policial, romance, crítica política. Assim, vai adquirindo não apenas um novo nome, mas uma nova personalidade. Precisando sempre de um homem para defini-la, a personagem – que tinha tudo para ser uma representação do movimento feminista – se vê presa à época em que o filme está inserido. Em 1975, Lilian é subversiva, é ousada, é empoderada. Em 2016, ela continua sendo tudo isso, mas fica mais fácil perceber o machismo na forma como a personagem é abordada. Por que sua narrativa precisa estar vinculada a homens? É como se ela não pudesse ter uma história forte sem um amante. Um exemplo dessa misoginia é o masoquismo que a personagem enfrenta durante a narrativa, sem nenhum motivo aparente além de mostrar a mente perturbadora de um dos seus amantes.
Mesmo assim, é difícil não querer desvendar Lilian, essa mulher de conflitos. Mãe, mas puta. Delicada, porém bruta. Decidida e perdida ao mesmo tempo. Querendo ou não, Lilian é a representação de todas as mulheres. Olga consegue apresentar uma interpretação primorosa, com uma personagem angustiada, forte e, ao mesmo tempo, delicada.
No entanto, o filme peca em não apresentar personagens coadjuvantes que cheguem à altura da protagonista. Tratam-se de tipos: o caixeiro viajante, o vendedor charlatão, o investigador incompetente, o comunista romântico, o alemão sádico. Além disso, a passagem do tempo tornou evidente pequenos defeitos do filme. Como a dublagem, que dá um ar cômico – e amador – a todas as cenas. Alguns personagens também parecem fora de época. Se antes a verborragia do vendedor de terras ou do caixeiro viajante faziam sucesso nas comédias, agora os personagens parecem ter saído de uma esquete antiga de Zorra Total.
Mesmo assim, é impossível não se impressionar – e se encantar – com Lilian. Reichenbach parece não ter certeza se voltará a filmar, então experimenta tudo, brinca, faz vários filmes em um só. Talvez seja esse um dos principais trunfos do longa. Quando o filme está prestes a nos perder (ou nos cansar), subverte, muda o tom, se transforma em outra coisa, e temos que redescobri-lo. Amá-lo ou odiá-lo cabe ao gosto pessoal de cada um. É um filme esquizofrênico, que, apesar da personagem principal, parece mudar a cada meia hora. Em um momento, estamos sofrendo com o drama de Lilian e Fausto, um personagem angustiado e depressivo; no outro, acompanhamos uma investigação feita por um detetive incompetente que mistura comédia com a influência dos filmes de gângster. Em determinado momento, ocorre uma história de amor da personagem principal com um fugitivo político, sendo que minutos antes somos levados às risadas diante da relação de Lilian com um vendedor estelionatário.
Após suas aventuras, Lilian volta em busca de seu marido e a vida no campo. Um retorno ao início, para tentar encontrar sua essência, ao mesmo tempo em que mostra a mudança da personagem. Lá está ela, moderna, naquele ambiente rústico e antiquado. Ela não pertence mais àquele lugar, mas é ali que procura a si mesma. Ela pode, então, reescrever sua história. Fazer um sexo apaixonado com o marido, abraçar os filhos, reformular suas próprias lembranças daquele casebre, ter voz no espaço em que sempre foi submissa.
Ao retornar ao antigo lar, o jogo entre comédia e tragédia, que ocorre durante todo o filme, fica ainda mais evidente. É cômico vê-la neste ambiente, com o marido e os dois filhos. Ela não encaixa ali. Mas também é trágico. Não é à toa que, após uma única noite de amor, Lilian precise partir ao raiar do sol, fugindo novamente em uma cena delicada e cheia de significados. A verdade é que ela não pertence a lugar nenhum.