Francofonia (2016), de Aleksandr Sokurov

 

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A arte contra os canhões

Douglas König de Oliveira

O renomado cineasta russo Aleksandr Sokurov toma como epicentro da meditação de seu mais recente filme, Francofonia (2016), o espaço do museu do Louvre, localizado em Paris. O ambiente documentado (mas também dramatizado em alguns trechos) é o da ocupação alemã da capital francesa durante a Segunda Grande Guerra, um de seus mais emblemáticos episódios. Dentre os incontáveis personagens (entre eles o próprio diretor, a Europa, e mesmo o mundo em guerra), destacam-se as trajetórias do francês Jacques Jaujard, diretor do Museu do Louvre, e do alemão Franz Wolff-Metternich, nomeado por Hitler co-diretor quando da invasão. A arriscada colaboração destes dois para preservação do acervo, burlando a vigilância dos nazistas e a busca pelas obras importantes enviadas a castelos espalhados por toda a França já em 1938, às vésperas da eclosão do conflito, é o fio condutor do filme.

Sokurov opta por uma grande diversidade de registros visuais, desde amplas tomadas panorâmicas do edifício do museu, filmagens e fotografias da época (inclusive o passeio de Hitler pela Paris declarada cidade aberta, ainda hoje impactante), além da dramatização dos episódios que envolvem o relacionamento de Jaujard e Wolff-Metternich, que reproduz o aspecto deteriorado e o tom sépia dos filmes documentais, e ainda, curiosamente, a banda óptica que registra e reproduz o som na película. Imagens de um navio enfrentando uma tempestade em alto-mar, carregado de obras de arte encaixotadas, parecem atualizar a aventura da exportação dos itens do museu, mas também sugerem os perigosa que a cultura está submetida se ficar vinculada às dinâmicas políticas, intensificadas em situações de guerra, ou de crise, como na Europa contemporânea.

Essa sucessão harmoniosa de materiais visuais tem um encadeamento bastante aberto, incluindo questionamentos do diretor/narrador sobre a vocação da arte e seus artífices, e aparições alegóricas dos personagens de Napoleão Bonaparte e de Marianne, figura que representa a República Francesa e seus valores de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Em meio a isso, várias obras do museu são mostradas, e nas pinturas com a câmera num movimento lânguido, tornando as figuras planas quase que tridimensionais. O registro também não evita a situação de quando a luz da filmagem reflete nos vernizes dos quadros, causando um interessante efeito de distanciamento e relevo. Mas no terço final o ritmo de criação diminui, como que para arrematar a ideia central do filme, até aquele momento pulverizada nas sequencias, mas de forma perfeitamente complementar, numa intenção mais ensaística que didática. O destino dos protagonistas é enfatizado de forma bastante clara ao final, assim como o valor de suas ações, movidos pela paixão à arte e acima das divergências políticas.

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A estrutura visual remete inicialmente a O Espelho (1975), de Andrei Tarkovski, principal referência de Sokurov e responsável por auxiliá-lo no início de carreira cinematográfica, num regime de financiamento estatal da antiga União Soviética afeito à censura de autores com uma expressão mais poética que popular em seu cinema. O que Tarkovski realiza, trazendo para seu filme todos os materiais que considerava integrarem seu corte existencial mais íntimo, desde filmagens documentais da época de sua juventude, até mesmo pessoas próximas de seu círculo pessoal (sua mãe, no caso) e também dramatizando episódios de sua infância, Sokurov realiza tendo como personagem principal o museu do Louvre, e não a sua persona. Sokurov age mais reportando os fatos e valores de seus temas, como foi também a característica de sua incursão pelo museu russo Hermitage em Arca Russa (2002), mesmo que em Francofonia esteja pessoalmente em muitos trechos e locuções. O diretor é guiado pela erudição mais do que pelas impressões pessoais, diferentemente do lirismo confessional de Tarkovski, assim como difere da produção mais atual de Godard (em que se assemelha esteticamente na crueza da imagem do navio à deriva na tela do computador de sua casa) por não explicitar uma visão política clara. Desta forma, seu discurso, ao final,parece perder a contundência e a complexidade ao propor uma síntese em que a arte (o bem) resiste e vence o poder (o mal). Recursos como os créditos completos logo no inicio do filme, o limbo de espectros e ruídos que o encerra, ou o tratamento envelhecido das dramatizações, figuram mais como dispositivos cosméticos do que itens que compõe uma concepção e a potencializam.

Apesar da grande beleza e encantamento cinemático das tomadas e composições, além da ótima interpretação do elenco, o filme, por se tratar de algo entre o documental e o ensaístico, carece da força de um autor que tenha algo a dizer além da crônica sutil dos fatos. O pomposo título de Francofonia, que é a manifestação da língua francesa por todo o mundo (veículo, portanto, de toda uma cultura), não faz jus ao recorte que Sokurov propõe, que ora é muito especifico dos fatos ocorridos na Segunda Guerra, ora uma meditação muito ampla em relação à arte, que caberia em qualquer tempo e lugar. Assim como em Arca Russa, podemos considerar Sokurov um ótimo guia turístico, remontando de forma hábil os acontecimentos históricos e os feitos artísticos hoje preservados nos museus. Porém, o discurso cinematográfico tem uma lógica em que os materiais visuais e sonoros trabalham para corroborar uma ideia, e apesar de isso parecer ter sido atingido em Francofonia com correção, a força do encadeamento de cenas iniciais prometia algo muito mais ousado e persuasivo. Não superou,apesar de momentos de intensa inspiração, o didatismo dos filmes institucionais.