Julieta (2016), de Pedro Almodóvar

Julieta

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Odorico Leal

Na abertura de Julieta (2016), mais recente produção de Pedro Almodóvar, a protagonista homônima prepara as malas: está de partida para Portugal, seguindo a promessa de uma vida nova ao lado de Lorenzo, o amante maduro e diligente interpretado aqui por Darío Grandinetti, presente em Fale com Ela (2002). Julieta, que, no passado, atuara como professora de Literatura Grega, quer levar todos os livros na mudança: diz que a ideia de comprá-los de novo faz com que se sinta velha, talvez porque é sobretudo na juventude que os livros parecem objetos tão preciosos, tão duramente adquiridos – descartá-los é um sacrilégio. Esse pequeno detalhe na abertura do filme é uma observação sensível sobre o tipo de estratégia a que recorremos para preservar algo das nossas vidas que nos parece vital e que, ao mesmo tempo, parece fugir de nós o tempo todo.

O comentário sobre os livros é um detalhe, mas é também um traço importante que compõe a caracterização da protagonista: Julieta tem um passado irresolvido e, enquanto não der conta dele, não pode se entregar ao presente. Numa aula sobre a Odisseia, a protagonista explica o dilema de Odisseu diante das ofertas de Calipso: a deusa lhe oferece tudo, até mesmo a eternidade, cobiçada por todos os heróis gregos; basta que ele permaneça em sua ilha e esqueça o regresso à Ítaca. Na abertura do filme, Julieta enfrenta dilema parecido e, como Odisseu, nenhuma promessa pode satisfazê-la. O evento catalisador aqui é um encontro com Beatriz, uma amiga de infância da filha Antía. A amiga conta que avistara Antía em Madrid – estava acompanhada de três filhos. Diante da notícia, Julieta cancela a viagem. Logo ficamos sabendo que Julieta não vê a filha há mais de uma década. Com isso, não só abdica da mudança para Portugal, como regressa ainda mais para dentro do passado: às vésperas da viagem, rompe com Lorenzo, abandona o apartamento onde mora e aluga outro no mesmo prédio em que vivera com a Antía. Uma vez devidamente instalada no passado, decide narrá-lo, como uma forma de expurgá-lo, redigindo uma longa carta endereçada à filha perdida. A partir de então, o filme salta entre dois tempos e duas Julietas, interpretadas por Adriana Ugarte, na juventude, e Emma Suárez, no tempo presente.

Toda a narrativa do passado que se segue é contada da perspectiva da protagonista, que escreve a carta, de modo que o que vemos na tela é o que a protagonista recorda. Numa viagem de trem, a jovem Julieta conhece o pescador Xoan. O encontro é marcado por um mau agouro: um solitário se suicida, saltando do trem. Por tê-lo evitado pouco antes, Julieta sente-se culpada pela morte. Na mesma noite, numa cabine do trem, Julieta e Xoan fazem amor. O enlace tem ainda outro interdito de mau agouro: Xoan é casado; sua esposa vive em estado de coma, há seis anos. Mais adiante, a esposa de Xoan morre, e o pescador se casa com a jovem professora de Literatura Grega.

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O mar – “Πόντος”, mar aberto, caminho do mar – é uma constante em suas vidas. Concebem uma filha, Antía. Esse parece ser o único período de plenitude na vida de Julieta: os primeiros anos com Xoan e a filha, no pequeno e idílico vilarejo de pescadores. A filha nutre uma adoração profunda pelo pai; sob sua influência, ama o mar e a pesca. Rondam esse núcleo familiar duas figuras ambíguas, que funcionam ora como elementos de cooperação, ora como antagonistas: Ava, uma artesã isolada, velha amiga e ocasional amante de Xoan, e Marian, que cuida da casa, interpretada por Rossy de Palma, presença recorrente nos filmes de Almodóvar, que, aqui, serve tanto como alívio cômico da história, bem como instigadora do desastre: é ela quem conta à Julieta sobre antigos encontros amorosos de Xoan e Ava. Depois de uma discussão acalorada, Xoan sai para pescar no mar aberto e é engolido por uma tempestade. O encontro, que se iniciara sob o auguro da morte do suicida no trem e da esposa em coma, encerra-se na morte prematura de Xoan.

Chegamos, assim, ao foco temático do novo filme de Almodóvar, que se apresenta como um estudo sobre a força aprisionadora da culpa, mas que também, seguindo o sopro grego que o atravessa, é um comentário sobre a impotência humana diante dos acasos trágicos. Psicologicamente, os modernos dispensam o acaso, internalizando o trágico como culpa – é o que faz, aqui, a professora de Literatura Grega.

Depois da morte de Xoan, Julieta muda-se para Madrid com Antía. Diante da longa e profunda depressão da mãe, e inspirada pela amizade com Beatriz, Antía é quem se encarrega de pôr a vida em movimento. Nessa dinâmica, Julieta desenvolve uma dependência doentia. Os anos se passam e, aos dezoito anos, a filha viaja para um retiro espiritual e nunca regressa. Julieta não tem notícia alguma, anos a fio, até o encontro mencionado com Beatriz, no começo da película.

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O filme desenvolve duas narrativas de investigação: Julieta em busca da verdade de sua história com a filha e, bem mais incidentalmente, Lorenzo em busca da verdade de Julieta. As celebradas cores de Almodóvar retornam, agora inseridas numa atmosfera de mistério, numa espécie de síntese possível entre a sensualidade colorida da estética do cineasta espanhol e a aura sombria do filme noir. O mistério sobre o paradeiro de Antía prende – ou elude – o espectador, e as cenas de Julieta devastada vagando por Madrid – especialmente a sequência na quadra de basquete onde a filha brincava na adolescência – são comoventes pela interpretação de Emma Suarez. Contudo, algo no filme não convence. O único personagem de relevo é a própria Julieta – os demais são meros tipos, rascunhos de gente, que, no caso de Xoan, o pescador idílico, beiram a simples conveniência. Há, de fato, uma contradição nas propostas de representação do filme: o presente absolutamente realista contrasta demais com o passado esquemático e caricato, que funciona como mero pretexto. O próprio motivo da morte de Xoan numa tempestade após uma discussão conjugal é tão clichê e banal que não fornece material espiritual suficiente para a composição do drama interior da protagonista.

A princípio, essa centralidade de Julieta poderia ser o ponto de partida para um mergulho doloroso na psicologia da culpa; isso demandaria, contudo, uma investigação muito mais densa, coisa de que Almodóvar se exime. Paradoxalmente, o filme é uma experiência leve, que insinua e promete mais do que, de fato, entrega. Não por acaso, encerra-se antes do encontro entre Julieta e Antía, sequência inexistente que demandaria uma força dramática que o filme não comporta. Nada disso é estranho à obra de Almodóvar e, de certa forma, segue na mesma linha de A Pele que Habito (2011), outro filme sem grandes consequências. Naquele caso, contudo, a trama original e intrigante lhe justificava o interesse. Julieta (2015), contudo, parece desde já destinado a ser referido como obra menor do cineasta espanhol.