Fragmentos Fluídos e Desconexos de uma Identidade
Veriana Ribeiro
Na antropologia, o processo de definição de uma identidade está relacionando com a noção de alteridade, ou seja, é necessário que exista o outro para podermos definir as características que nos tornam únicos. No filme Mãe Só Há Uma (2016) da diretora Anna Muylaert, que ficou famosa no ano passado após o sucesso de Que Horas Ela Volta? (2015), acompanhamos a jornada de Pierre (Naomi Nero) um adolescente que, através do seu conflito com os ‘estranhos’ à sua realidade, tenta descobrir quem é.
Com sua sexualidade fluida e gênero não binário, Pierre é um personagem que precisa existir. Ele se posiciona livremente entre os conceitos de homem e mulher, macho e fêmea, hétero e gay, figura que não costuma ter espaço nas produções cinematográficas, mas existe na vida real. Ele coloca em debate a questão da identidade de gênero e sexualidade desde a primeira cena, em que leva uma garota ao banheiro e durante o sexo descobrimos que usa uma calcinha.
A proposta de Muylaert é apresentar uma narração fragmentada da história de Pierre, que foi roubado quando bebê e criado por outra família até a adolescência. Inspirada pelo Caso Pedrinho, ocorrido em 1986, a diretora construiu sua narrativa – diluindo, entretanto, os momentos aparentemente mais importantes: o reencontro do filho perdido com os pais biológicos, os instantes de ternura entre irmãos, o sofrimento da mãe biológica, o conflito entre Pierre e a irmã com o fim da vida que conheciam. Um exemplo é o momento em que Pierre conhece a família biológica. Em uma história contada de forma tradicional, a narrativa se concentraria em mostrar a primeira vez que a mãe e o pai abraçariam o filho perdido, de preferência com uma trilha sonora emocionante, dando maior carga dramática ao momento. Em vez disso, segue Joca, o irmão mais novo, para fora do restaurante, se envolvendo em uma conversa que nada acrescenta para a trama. Quando ele retorna ao restaurante, o irmão já está lá, inserido ao núcleo familiar. Sem abraços, sem lágrimas. É uma cena que esconde mais do que mostra. Não temos aqui um filme sobre o reencontro de uma família: Muylaert prefere se concentrar em momentos banais.
Ao contar a história através de elipses, a narrativa tenta representar o turbilhão na vida de Pierre, mas acaba impossibilitando uma empatia maior com os personagens e suas histórias. Como entender a saudade de Pierre pela mãe Aracy (Daniela Nefussi, que também interpreta a mãe biológica, brincando assim com o título do filme), se ela nunca aparece de forma completa na história? Não entendemos muito bem as motivações da personagem para roubar as crianças. E logo Aracy desaparece, como se não tivesse importância, sua falta não é sentida.
Como compreender a frustração dos pais biológicos se apenas vemos adultos que se recusam a conhecer o filho pródigo? Uma das cenas mais emocionantes do filme é quando Matheus Nachtergaele faz um discurso exaltado sobre o medo de perder o filho, mas em todas as outras cenas fomos apresentados a um personagem que insistia em chamar o filho pelo nome de Felipe – mesmo ele não gostando – e que se recusa em entender seus desejos e anseios.
Até a relação entre os irmãos, que é colocada como uma esperança para aquela família disfuncional, não convence. Joca e Pierre trocam poucas palavras durante todo o filme e lidam um com o outro com indiferença até que, na última cena, compartilham um momento de ternura que não faz sentido. Perdemos a construção desse afeto entre as cenas que são escondidas pela diretora, os momentos não contados fazem falta para dar a carga emocional que a cena precisava.
No meio disso tudo, Pierre acaba transparecendo como um personagem apático, as pessoas e situações em sua volta não importam o suficiente para lhe tirar de sua zona de conforto. É apenas quando o protagonista sai desse papel, confrontando a família, os valores e a situação em que foi inserido, que o filme parece funcionar. Pena que isso só ocorra no final do filme, quando o jovem decide experimentar um vestido ao sair com os pais – que tentam controlar sua forma de se vestir, agir e se comportar. Essa é uma afronta que funciona na tela, tendo uma dose certa de humor e dramaticidade durante toda a cena.
Mãe Só Há Uma tinha potencial para contar uma grande história, mas não conseguiu. Ao mesmo tempo que tem um discurso político forte – aborda sexualidade, identidade de gênero, juventude, classes sociais – o filme falha em nos manter conectados com seus personagens. Tentando agradar a gregos e troianos, Muylaert se perde em uma história fragmentada, porém narrativa. Cheia de cenas simbólicas, mas sem nunca chegar ao cerne da questão. Assim, o longa-metragem enfrenta o mesmo problema que seu personagem principal: entre referências e signos confusos, ainda não descobriu sua identidade.