Ody Fraga e seu proto-palácio dos desejos e do comércio
Adolfo Gomes
Sexo e transgressão ou a política como prática de alcova parecem associações quase incontornáveis em sociedades de formação puritana e elasticidade ética como a nossa. Por isso, o fato de transpor para um bordel de luxo os embates seculares da luta de classes – ainda que sob qualquer regime – não é, exatamente, o que mais impressiona, ainda hoje, em Palácio de Vênus (1980), de Ody Fraga. É de outra natureza a sua força inventiva: menos tópica e comportamental do que se poderia supor para um exemplar da comédia de costumes brasileira. A imprecação que esse filme lança para nós e o nosso tempo, a contemporaneidade, diz respeito a mais uma esquizofrenia típica do cinema nacional: a dificuldade de superar o viés naturalista, de aceitar o artifício como um elemento formal.
Se olharmos para a produção atual do País, é sintomática a transferência, na maioria dos casos, para os personagens – e, por consequência, para a dramaturgia em si (o roteiro, não a encenação, evidentemente) – quaisquer possibilidades de estranhamento, de formalismo que problematize essa hegemonia do naturalismo.
Nas imagens que emergem dos filmes brasileiros recentes, via de regra, não temos nenhum embate entre esses regimes de apropriação do real. Para ilustrar melhor tal perspectiva, tomemos como exemplo a sequência de abertura de Palácio de Vênus. Acompanhamos, em desfile, a apresentação das mulheres que habitam o filme (o proto-palácio dos desejos e do comércio) em poses estilizadas, entre a natureza e a mansão, com mãos impressas sobre os seus rostos, não como um índice operístico e barroco (Werner Schroeter em O Rei das Rosas (1986), é uma lembrança), mas referenciando a estética televisiva e da moda dos anos 1980, alguma coisa a meio caminho de Clodovil e Clóvis Bornay, que se traduzia no então consagrado “physique du rôle” das bailarinas do “Fantástico”.
De quem são aquelas mãos? Antes de qualquer coisa, vamos considerá-las como puro artifício, apenas o “gesto de sofisticação” que o produtor M. Augusto de Cervantes gostava de imprimir em seus trabalhos e que o público da época também apreciava. Ele sabia disso, era respeitável, de qualidade…
Ainda mais porque, após esse breve tributo ao “bom-gosto”, aquelas mulheres seriam reinseridas no real com uma transparência, familiaridade e lubricidade implacáveis. Por outro lado, devemos reconhecer que o princípio mercantil da organização do cenário, dos planos, transcende sua intenção epidérmica de emular códigos de sucesso para resultar, em seguida, numa ruptura posterior, mesmo que inconsciente.
Todos os tipos – dos políticos aos atávicos coronéis, passando pela cafetina e pelas “operárias” – partem da mesma forma, dos estereótipos, dos clichês imanentes dos papéis sociais, para uma quase desdramatização. No fim das contas, esses personagens ganham volume próprio, são “gente como a gente” em situações prosaicas, diante de necessidades comuns, afetos, reivindicações, desigualdades e injustiças, mas também graça, ironia e pureza.
Palácio de Vênus, portanto, instaura já na sua imagem inicial, na introdução àquele mundo, a máscara das coisas e anseios que não são os nossos, que não pertencem ao nosso modo de agir. De certa forma, um imaginário imposto por uma indústria cultural e por seus instrumentos de mediação – afinal, ninguém se posta atrás de uma árvore, no pomar de um sítio, exibindo no rosto as pinturas de uma bailarina do “Fantástico” sem requisitar uma câmera, um olhar – e isso, pensando bem, é um bocado insólito, não?
Mas se o filme de Ody Fraga nada tem de extravagante e estranho, para além da abertura “posada”, é porque ele completa o movimento esboçado ali, aprofundando, a partir da dissonância, do artificial e, através da imagem principalmente, uma espécie de supranaturalismo, a instância da arte, da invenção da realidade que, ao contrário, de boa parte dos filmes contemporâneos, é, aqui, algo endógeno ao modelo de produção – o caráter instintivo, precário de uma empreitada independente e marginal – em contraposição aos paradigmas consagrados, comerciais e artísticos, do cinema autoral com financiamento público.
Então, se cabe uma resposta: aquelas mãos sobrepostas nos rostos das atrizes bem que poderiam ser os vestígios de uma forma de representação da vida, da natureza, do sexo e da liberdade que Fraga soube subverter da maneira mais simples e inexorável: através das imagens, sempre a imagem.