Pornochanchada Brasileira: a Sobrevivência É (Sempre) um Impulso Criativo

Ensaio - adolfo

 

Adolfo Gomes

Como um grupo de técnicos desempregados e outros profissionais das mais variadas áreas fizeram do cinema o seu ganha-pão por quase duas décadas 

Cinema dá dinheiro no Brasil? Pode perguntar qualquer pai diante da inclinação “audiovisual” do filho. Pelo menos, era assim antigamente. Num país resiliente como o nosso, que pula de crise em crise, com breves momentos de euforia, é legítimo se preocupar com a viabilidade econômica de um “chamado vocacional”, ainda mais quando ele se direciona para a “esfera artística”.

Se falamos do passado – e recuando até um dos surtos desenvolvimentistas, entre tantos que já vivemos – lá pelo começo dos anos 1950, até parecia um campo promissor…O cinema. Na esteira do processo de industrialização brasileiro, começavam a surgir os primeiros estúdios cinematográficos por aqui, da Cinédia à Vera Cruz, passando pela Maristela.

Muita gente acreditou nessa utopia e uma década depois estavam todos desempregados. O cinema brasileiro continuava a existir, mas sob outro modelo: o “ideológico-revolucionário”, segundo o qual era quase uma heresia pensar em dinheiro. Tudo era arte e transformação do mundo. Não cabe nessa constatação nenhum juízo de valor. É apenas um dado concreto, evidência da irreversível marginalização de um significativo corpo técnico criado e formado para operar num regime industrial e assalariado.

Por isso, antes de qualquer especulação estética e comportamental, é forçoso reconhecer que o impulso criativo também é uma questão de sobrevivência. No caso do que viria a se configurar como a “Pornochanchada brasileira”, esse gesto darwinista nos parece essencial. Tratava-se, sobretudo, da oportunidade de um ganha-pão, seja na Rua do Triunfo ou em Madureira. A esse grupo de excluídos pela nova (e “edificante”) ordem cinematográfica da época (final da década de 60), somavam-se jovens contestadores (Person, Reichenbach, Jairo Ferreira) das emergentes escolas de cinema que despontavam, sobretudo, em São Paulo  – e cuja resposta à pergunta paterna do início do texto era mais do que eloquente (“no money!”).

Independente dos rótulos, dos gêneros a que se filiariam nas prateleiras da historiografia convencional, o movimento da pornochanchada não tinha nenhuma ideologia prévia ou pretensão de originalidade. Olhavam, como um bom comerciante, para o que estava vendendo, o que o público consumia naqueles tempos, e montavam sua “barraquinha” dramatúrgica, recheando de imagens capturadas do cotidiano possível, mesmo se os cenários recriavam outras eras – a exemplo da “sequência” do clássico de Tinto Brass, A Filha de Calígula (1981), de Ody Fraga.

O interessante é que esse mimetismo deslavado acabou por plasmar uma identidade franca, às vezes incômoda, do que nós somos e do nosso modus operandi. Um diálogo aberto e popular que comportava o machismo, a boçalidade e o preconceito no mesmo plano que a diversidade sexual, a tolerância e até o feminismo. Cio, Uma Verdadeira História de Amor (1976), de Fauzi Mansur, é um amálgama precioso desse paradoxo ambulante. No filme, o balzaquiano Francisco Di Franco se apaixona por um jovem engraxate, desgarrado na cena urbana paulistana. Depois de muito lutar contra o desejo homossexual, a figura viril do galã maduro se rende aos encantos do garoto para, na hora decisiva de consumar o “tabu”, descobrir que o que havia lá, sob a capa protetora do sexo masculino, era uma garota assustada com o mundo ameaçador à sua volta –  a “cultura do estupro” não é uma aquisição recente ao bestiário nacional.

Esse desfecho em forma de palíndromo, que troca o mote satírico da comédia de costumes a la Lubitsch e Wilder (Não Quero Ser Um Homem (1918) e Quanto mais quente melhor (1959)) pelo cariz lírico, realçando, no aparente conservadorismo do “engano”, a liberdade dos sentimentos, é tão ambíguo quanto moralista. Afinal, a despeito do assédio das  mulheres ao personagem de Di Franco, ele se apaixona, de fato, é por outro homem – se é mulher e com isso se concilia com padrão heterossexual hegemônico, é coisa da sociedade e não do indivíduo (o espectador certamente vai até o final do filme em sintonia com os sentimentos do protagonista).

Sempre no fio da navalha, a fase áurea das pornochanchadas, de meados da década de 1970 ao comecinho dos anos 80, tinha tal “liberdade vigiada”. Cínica, transgressora… Até certo ponto – para não desagradar os exibidores, também responsáveis por parte considerável do financiamento das produções. As inflexões mercantis, no entanto, não impediam a manifestação das pulsões mais recônditas, com impressionante lucidez crítica. Um grupo de donas-de-casa endinheiradas revolve alugar um ponto de prostituição por uma semana, para satisfazer seus próprios desejos em O Sexo Nosso de Cada Dia (1981), também do genial Fraga. Mas, após sete dias de intenso prazer com os mais variados tipos e preferências sexuais, encerram esse interstício hedonista na delegacia, após uma batida policial. Era a anti-alegoria, num período em que a frontalidade das abordagens havia praticamente sido descartada sob a desculpa onisciente da censura.

É habitual ao caráter brasileiro transferir para um elemento externo ou coletivo a condução das escolhas pessoais, conferindo sempre ao ambiente, ao outro, as razões (e justificativas) da nossa flexibilidade ética (“se todos burlam, por que não burlar também isso ou aquilo”, é um dos nossos mantras ancestrais). No cinema, não é diferente. Assim, por muitos anos, o que mais desagradava à “intelligentsia” cinematográfica nacional era como a turma da Boca do Lixo e afins se virava sem o mecenato oficial da então Embrafilme. Naturalmente, tal “empreendedorismo” causava desconforto por fragilizar o discurso da “tutela cultural”. O modelo da “nota promissória” contrastava com a política de alcova do financiamento público.

E neste aspecto convém não ser demasiado romântico: era uma questão de exclusão, não de opção… Com acesso às verbas estatais, qualquer “herói” da pornochanchada virava casaca. A diferença é que não havia subterfúgios e, de certa maneira, sequer escrúpulos para criar as condições necessárias para se manter o trabalho… Essa franqueza era a força, “o código de honra” entre a maioria dos produtores, atores e realizadores que militavam nas bordas do sistema da época. Abriu caminho para o que fosse necessário: o sexo explícito e a zoofilia, traduzindo, bem a seu modo transparente, essa passagem do mundo rural para a opressão urbana, o desejo velado, algo hipócrita, diante da exposição libertária do “fuk fuk à brasileira”.

Mesmo no período de decadência das pornochanchadas, a primeira metade da década de 1980, era indisfarçável que aquele mundo sujo, precário, infame e divertido, ora ridículo e cafona, dizia mais respeito à nossa realidade e hábitos do que o mais belo e engajado filme do “Cinema Novo” conseguiria flagrar. Era preciso os dois lados desse processo de apropriação e transfiguração do real, como também é lícito desconfiar que, se todos tivessem acesso igualitário às benesses oficiais, não teríamos as pornochanchadas, nem a invenção macunaímica das suas imagens, ou o mau gosto tão necessário à distensão dos sentidos e dos paradigmas estéticos. Não um pelo outro, mas os dois. O que, evidentemente, não temos agora.