Quem é Daniel Blake?
Thomas Lopes Whyte
Com um roteiro simples e abordagem formalmente tradicional, Ken Loach conduz Eu, Daniel Blake (2016). Seu protagonista é um senhor viúvo, morador da cidade inglesa de Newcastle, e sofre de uma condição cardíaca que o impede de continuar trabalhando como carpinteiro. Suas características definidoras parecem representar a vontade do diretor Ken Loach de criar o tipo mais ordinário possível de personagem, uma figura simbólica de todos nós, mais ou menos como o fizera King Vidor, décadas antes, em A Turba (1928), com seu John Sims. O fato é que nenhuma dessas características/atribuições, de forma isolada, é imprescindível para o desenrolar da narrativa. Daniel Blake poderia se chamar Nelson, ser motorista de ônibus e morar em Betim. Mesmo assim, o conjunto desses fatores faz de Blake um Herói genérico ideal – pelo menos no imaginário do público acostumado a filmes de circuito mais restrito.
Um dos traços incômodos de Blake é a intransigência, refletida na forma radical como se opõe às coisas. Em texto que discorre sobre as relações entre teatro e cinema, André Bazin escreve sobre a influência do Vaudeville nas comédias do início do século XX e desenvolve a ideia que chama de “fenomenologia da obstinação”, um mecanismo cômico, de natureza linear, através do qual se pode levar às últimas consequências o mais elementar dos problemas por meio de uma sucessão de gags cada vez mais radicais. A insistente repetição das ações acaba por dissolver o objetivo inicial e as motivações se rarefazem, até o momento em que o personagem entra em uma espécie de transe irracional, responsável pela atrofia da ação. No filme de Loach, cujo desfecho não é exatamente elementar, o desenvolvimento tende a replicar a lógica esquematizada por Bazin. Daniel Blake é um personagem duro (no sentido do fazer), não permite concessões, parece desgovernado e disposto a se chocar frontalmente contra o muro erguido pela burocracia.
Em Lola (2009) do cineasta filipino Brillante Mendoza, a protagonista idosa (Lola é o termo Filipino para avó) enfrenta problemas semelhantes aos de Blake. No entanto, as situações de conflito se revelam quase sempre de forma mais sutil. Não há uma pressão externa para que o espectador tome partido, está tudo na tela, ao alcance dos olhos. O caminhar vagaroso e vacilante em uma rua degradada pela falta de manutenção pode ter muito mais a dizer sobre as relações corrosivas entre instituições e pessoas, que o descaso sofrido em uma repartição pública. E também não é preciso que Lola seja orgulhosa ou imbuída de um apurado senso de dever para que o público possa se apiedar de sua situação. Por outro lado, o esforço de Loach em tornar o espectador cúmplice de Daniel Blake é tão grande que, para isso, ele transforma sua morte em um martírio, convertendo-o antes em santo.
Em crítica recente, Marcelo Miranda aponta o posicionamento do também crítico Adriano Garrett, que compara Daniel Blake ao britânico médio, pertencente a uma classe empobrecida e corresponsável pelo Brexit. Se Blake pertence a essa categoria, ele se insere nela de maneira incompleta e as semelhanças se dão apenas enquanto efígie e a partir das características superficiais do personagem. Os seus maneirismos, a dificuldade legítima de lidar com a tecnologia e o senso de humor do ator Dave Johns, certamente, contribuem para a criação de um vínculo imediato com o espectador, que vê na imagem de Blake um reflexo de si mesmo. Mas, apesar de assemelhar-se aos integrantes de um grupo, que nos Estados Unidos e Canadá é conhecido como W.A.S.P [1], Blake está muito impregnado da visão do próprio Loach, que, por sua vez, não permite o surgimento de questões outras, diferentes daquelas pautadas por ele próprio. Na tela, o esforço em tornar o herói um modelo das aspirações pessoais do diretor, empurra o personagem para um estado de conciliação com valores que o separam da parcela de uma classe média conservadora e reacionária. Quase que por acaso (e aí se encontra a inconsistência), Daniel Blake parece partir de um patamar moral ideal, para que, então, na função de herói construído a partir de mecanismos superficiais e externos à narrativa, possa confrontar o Estado. Os atritos raciais, a xenofobia e o moralismo são sublimados em prol de uma coesão social ilusória.
Faço aqui uma digressão para escrever um pouco a respeito de um fenômeno que atualmente me parece relevante e está em evidência no campo do discurso do qual o filme de Loach faz parte. Com o atual cenário de crise global, me parece ter havido um crescimento na demarcação territorial dentro dos campos de disputa ideológica. Sob o risco da normalização da barbárie e esfacelamento das noções de direito, o tom denuncista continuará sempre pertinente e é preciso se opor, identificar e principalmente contestar os sistemas cada vez mais complexos de opressão. Mas, no afã de arregimentar adeptos, estabelecendo vínculos rápidos e nem sempre profundos com o público, alguns autores têm optado por esvaziar os textos e personagens de suas obras, privando-os, muitas vezes, de suas características transversais, ambiguidades e complexidades. Parece-me ainda notável ressaltar o quão preocupante é que uma parte significativa das obras dramáticas, gestadas nos setores mais progressistas, estejam se engajando em criar substratos tão frágeis para afirmar suas teses. Se por um lado é cada vez mais urgente dialogar, fazê-lo de forma atabalhoada pode surtir o efeito contrário.
Apesar disso, o filme, lançado em momento oportuno, consegue atingir seu objetivo primário de comover, o que talvez explique parcialmente seu sucesso de crítica. E convenhamos, não é difícil se deixar enredar pelo carisma de Daniel Blake e desenvolver compaixão pelo personagem. É quase como se as falhas da obra pudessem ser atribuídas apenas ao autor, que não resolve o descompasso entre ele e seu personagem. Se, ao começar o texto, a afirmação era a de que Daniel Blake representa um pouco de todos nós, a verdade é que ele falha também, justamente, por não ser a representação de ninguém.
_____________________________
Notas:
[1] W.A.S.P: termo popular nos Estados Unidos para designar o cristão (protestante), branco, de origem Anglo-saxônica . (White Anglo-Saxon Protestant).