Existiu uma “Nouvelle Vague japonesa”?

18 existiuAdolfo Gomes

O que sabemos do modo de vida oriental? Da cultura, da arte e do cinema asiático? A despeito de personalidades raras como o norte-americano Donald Richie, radicado no Japão desde a Segunda Guerra, ou de pesquisadoras profícuas como a nipo-brasileira Lúcia Nagib, cuja vivência no país do sol nascente a autoriza escrever belos livros e ensaios, é raro quem se debruce sobre quaisquer dos temas em questão aqui, sem resvalar, em alguma medida, na especulação ou no orientalismo, a que se refere Edward Said, por exemplo. Uma boa prova disso é essa classificação, algo esquemática, de “Nouvelle Vague japonesa”, que vem atravessando, incólume, pelas últimas décadas para se instituir, no paradigma histórico, como capítulo da renovação da filmografia japonesa e do triunfo/imposição da modernidade do outro lado do (nosso) mundo.

Bem, se nos resta a especulação diante dessa quase intransponível barreira histórica e comportamental, cabe o risco da provocação: Afinal o que une cineastas como Seijun Suzuki, Nagisa Oshima, Yoshishige Yoshida, Ko Nakahira, Shohei Imamura, Yasuzo Masumura, Masahiro Shinoda e Hiroshi Teshigahara? A ancestralidade, mais do que as condições de produção ou temáticas dos seus filmes. Ainda que tenhamos os instantâneos do momento – o pós-guerra, sobretudo – o ambiente de contestação e a afirmação da figura do “jovem”, no contexto cinematográfico, como personagem complexo da fragmentação narrativa, a subjetividade embaralhando a placidez da narrativa clássica; apesar de tudo isso ser incontornável e sintomático, parece emergir ali, no calor daquela “revolução”, uma aspiração de liberdade que remonta a outras épocas, uma constante, tal e qual, para ficarmos no território conceitual que nos é permitido (re)conhecer, “eros e tânatos”.

Um instinto primitivo, inaugural, capaz de nos permitir algum refúgio da racionalidade científica, do conforto civilizatório, que, em última instância, já havia nos lançado em dois terríveis conflitos envolvendo Ocidente e Oriente em igual medida. O mundo industrial, para se afirmar definitivamente, exigia o sacrifício selvagem de duas Guerras. Portanto, não era de se surpreender que qualquer transgressão se “orientalizasse” para o princípio da nossa experiência com o sexo e o desejo. E é aí que o desafio se impõe: como ter uma noção clara, precisa, abalizada desse movimento na perspectiva (e à luz da cultura) de um oriental? Os arquétipos são outros, podem até ter a mesma função que os nossos (nos oferecer uma espécie de Golem dramatúrgico para atravessarmos as intempéries do esquecimento e da devastação temporal), mas, sem dúvida, se articulam, se comunicam com referências e matizes de outra ordem. Assim, podemos, no máximo, acompanhar o movimento e pela sua superfície (felizmente o cinema é uma arte dos exteriores) vislumbrar a pulsão ancestral que anima uma obra quase simbolista – no seu aparente paradoxo solar – como O Túmulo do Sol (1960), de Oshima.

Para usar da muleta canônica da cinefilia, o que diferencia esse “retrato da juventude” dos seus “primos” ocidentais – Os incompreendidos (1959) ou Juventude Transviada (1955) para ilustrar – é seu perene anacronismo. O travelling, tão decantado como ferramenta de atualização do real, de flagrante da imprevisibilidade da vida, em Oshima é quase sempre um movimento distanciado, corredor mecânico, não fluido, até a utopia secular da natureza. O que Oshima enquadra através dos seus travellings  é o mundo – não exatamente os jovens que integram as gangues niilistas de O Túmulo do Sol. Não os compreendemos melhor pela aproximação da câmera, mas, nos deslocamentos, pela escancarada insignificância, solidão e impotência que a presença deles no plano, diante de imutabilidade da paisagem, faz reverberar. O movimento para frente é ilusão de ótica – era o que estava implícito ali. A saída está no passado remoto, para além de ontem, no instinto pré-industrial – daí o díptico shogunato/militarismo aflorar, outra vez, entre os jovens japoneses naquela altura, como efeito colateral da rendição e do Tratado de Segurança de 1951. Pode soar conservador, esse passadismo, mas também é vanguarda se admitirmos que todos os embates políticos e filosóficos da época pareciam convergir para o passado imperial japonês.

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Em filmes como A Mulher Inseto (1963), Desejo Profano (1964) e Os Pornógrafos ou Uma introdução à Antropologia (1966), Shohei Imamura, mais do que um Japão Profundo ainda latente na modernidade, reforçava essa busca ancestral por uma representação do homem e da mulher antes da sua incorporação pelo mercado como objetos de consumo – e consumação. Os instintos básicos de sobrevivência e o caráter francamente animalesco no comportamento humano contrapunham-se ao modelo de sociedade, sofisticada e tecnológica, que se configurava após os anos de ocupação dos EUA.

Os dramas familiares e de época, as comédias juvenis,  os “yakuza movies” e até as sátiras – estamos falando dos gêneros cinematográficos sobre os quais se construíram a indústria de filmes nipônica – espelhavam o individualismo suicida dos pequenos “golpes de Estado” que pipocavam em todo o Japão. O monumental Eros + Massacre (1969), de Yoshida, recorria à biografia de um anarquista da década de 1920, Sakae Osugi, para amalgamar, como no pêndulo de Poe, o tempo da morte e da suspensão face o umbral da História em que todos viviam naquele período.

A Nouvelle Vague francesa, a ideia de um Cinema Novo, seja no Brasil, na Alemanha ou na então Tchecoslováquia, da maneira que a percebemos, pressupõe uma “patota”, um projeto coletivo, pelo menos, num primeiro momento, e certa sensibilidade comum – porventura um sonho de transformação. Num contexto visceralmente individualista como o do desiludido Japão do pós-guerra, é difícil encontrar alguma semelhança entre seus “pares” que não seja apenas formalista. Há talvez uma sequência que consiga sintetizar essa poética kamikaze: é de O Império dos Sentidos (1976), de Oshima. O protagonista (Tatsuya Fuji) se depara com uma parada militar, centenas de pessoas em movimento frenético, agitando bandeiras e acenando para os soldados de um lado da rua. Ele sozinho, indiferente a tudo aquilo, faz seu caminho na contramão para encontrar sua amante, gesto político fundamental, e, como bem sabemos pelo desfecho daquela história de amor, sua perdição.