Rogue One – Uma História Star Wars (2016), de Gareth Edwards

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O paradoxo galáctico de um filme superficial e profundo

Douglas König de Oliveira

Se ao ouvir expressões como “o Diário dos Whills”, “a Força dos outros”, “Cristais Kyber” e “Tantive IV”, seu coração não bater mais forte; se, ao ver numa tela de cinema o que foi sonhado nos anos 70 pelo desenhista Ralph McQuarrie como um castelo em meio à lava vulcânica, habitado por uma mistura de samurai e máquina que se transformou na mais popular personificação do mal da cultura ocidental, você não perder o fôlego; se não se habituou à cronologia fragmentada e não-uniforme, aos capítulos, hiatos e saltos temporais, à miríade de tipos humanos, robôs, naves e alienígenas que habitam uma galáxia distante; se você não dá a mínima para o caminho que esse material terá após ser adquirido pela maior empresa de mídia do mundo, e sair das mãos de seu criador e mais absoluto fã; se nada disso lhe interessa ou cativa, Rogue One – Uma História Star Wars (2016) não passará de um filme de missão em equipe como muitos outros, e é até dispensável de ser visto. Prefira um antigo Herzog ou um novo Villeneuve.

Mas se em algum momento você foi capturado pela imaginação cristalizada de George Walton Lucas Jr. em seus filmes, dirigidos ou apenas produzidos por ele; interessou-se pelas etapas de construção de uma mitologia contemporânea baseada em diversas outras precedentes, além de contos de fadas e enredos de literatura fantástica; se observou atento a mistura de cinema abstrato de Walter Ruttmann, da montagem dinâmica de Dziga Vertov, da monumentalidade de Leni Riefenstahl, do movimento dos filmes de Akira Kurosawa, da fantasia de produções seriais como Flash Gordon e Buck Rogers; se identificou a ambição epopéica de J.R.R. Tolkien e o discurso libertário de Carlos Castañeda; se acompanhou cada abertura de uma nova janela para esse universo em conflito estelar, Rogue One é tudo e ainda mais do que você podia esperar.

O filme de Gareth Edwards tem a rara função de dialogar com o fio condutor inicial do conjunto de filmes de Star Wars, e ainda potencializar seu impacto. O enredo amplia um pequeno fragmento do letreiro de abertura do filme de 1977, que cita um grupo da Aliança Rebelde que captura os planos de uma arma de enorme poder destrutivo do Império Galático. Um conjunto de personagens se encontra durante o primeiro terço do filme e segue até a realização da missão, com seus frutos, circunstâncias e consequências. Nenhum personagem é carregado exageradamente de particularidades, servindo mais como veículo de tensões ideológicas, mas sem aprofundar no panorama político em que vivem. Os paralelos com demandas contemporâneas do nosso mundo real, como a questão do terrorismo e o poder sem limites e opressor do Império, servem como clave temática para orientar o drama do filme. O passado dos personagens não é mostrado, exceto o de Jyn Erso no prólogo do filme, sendo citado em breves diálogos que expõe características que auxiliam na caracterização de cada personagem. Não existe uma dimensão espiritual explícita, como é habitual, com exceção do lutador de artes marciais cego Chirrut, que se orienta pelos desígnios da Força e é praticamente um guerreiro Jedi, apenas prescindindo do típico sabre de luz. Com esse elenco caracterizado de forma sutil, o que se destacam são as cenas de ação e as referências aos elementos característicos dos filmes de Star Wars, alguns bastante conhecidos, outros amparados por uma pesquisa quase arqueológica.

Rogue One: A Star Wars Story (Donnie Yen) Ph: Film Frame ©Lucasfilm LFL

As atuações mais destacadas são de fora do grupo principal, com o veterano Forest Whitaker como o rebelde extremista Saw Guerrera, e Mads Mikkelsen no papel de Galen Erso, engenheiro projetista da Estrela da Morte e pai da protagonista Jyn Erso, interpretada por Felicity Jones. Os integrantes da equipe intitulada Rogue One possuem características complementares, como a resignação moralmente ambígua de Cassian Andor (Diego Luna), a parceria fiel, mas nem sempre consonante, do pragmático Baze (Jiang Wen) com o espiritual Chirrut (Donnie Yen), e o engajamento do piloto desertor do Império em busca de redenção Bodhi Rook (Riz Ahmed). A filiação tanto ao Império quanto à resistência da protagonista, através das duas figuras paternas de Galen Erso e Saw Gerrera, ambos mortos durante a sua jornada, fundamenta sua independência e alienação em relação a qualquer bandeira. Mas a rebeldia e inadequação de Jyn Erso parecem ter ficado para trás na montagem final do filme, diferente do que era demonstrado nos materiais promocionais. Com o roteiro tentando estabelecer uma ligação emocional mais uniforme do público com a personagem principal, e evitando o risco de sua rejeição ao expor características ambíguas e controversas em excesso, o papel de Jyn é o menos complexo do grupo, sendo veículo para as ideias que viabilizarão a missão. Completa a equipe o androide K-2SO, animado por captura de movimento do ator Alan Tudyk, e muito eficiente tanto nas cenas de ação quanto nos discretos alívios cômicos.

O principal antagonista, o oficial diretor Orson Krennic (Ben Mendelsohn), apesar de bem construído, demonstrando com clareza sua ambição de galgar lugares na hierarquia militar do Império, é eclipsado pela presença do grande vilão do episódio IV, Grand Moff Tarkin, interpretado por um miraculosamente ressurgido Peter Cushing, através de uma tecnologia de ponta para a recriação de atores de forma digital. Também a cena dividida com o icônico Darth Vader demonstra que, para além de uma vilania pura, Krennic pretende se colocar em posição privilegiada dentro de seu ambiente corporativo. Estando subordinado, inexoravelmente, a outros personagens de forte presença, como Tarkin, Vader e o próprio Imperador, com quem solicita uma audiência que lhe garanta a manutenção do status de coordenador dos trabalhos na nova arma do Império, a figura do diretor Krennic empalidece em comparação com esses personagens já consagrados dos filmes anteriores. O viés de alguém que faz a coisa errada com intenções “certas”, ao menos adequadas dentro de uma dinâmica interna, é recorrente e importante para estabelecer a ambiguidade característica de outros personagens da série, e funciona neste também. No caso de Krennic, a aura de vilão cede a um aspecto de funcionário-padrão, imerso na burocracia e na luta por mais poder, sem medir as consequências do que e de quem envolve neste processo.

A trilha sonora, que num filme de Star Wars é quase sempre intermitente, foi composta por Michael Giacchino (em substituição ao compositor original do projeto, Alexandre Desplat), e é bastante reverente ao estilo de John Williams, o autor da trilha de todos os filmes da série até então. Ora lírica, ora frenética ou sombria, também percussiva nos momentos de grandes cenas de ação, dispensa a tradicional fanfarra na abertura por um tema heroico em tons maiores, que aparece em outros pontos chave do enredo, e cita muito pouco os temas musicais já conhecidos. A harmonia entre a cena e a música atinge a eficiência da dupla Lucas-Williams nos melhores momentos, como nas arrojadas trilhas orquestrais de Episódio IV: Uma Nova Esperança (1977) e Episódio I: A Ameaça Fantasma (1999), algumas das melhores partituras de Williams. O mesmo não ocorreu em O Despertar da Força (2015),por exemplo, com a música tendo dificuldade de se acoplar a algumas cenas, principalmente as de batalhas. No tour de force da Batalha de Scarif, em Rogue One, a relação entre cena e trilha é tão orgânica que a distinção desaparece e o que se tem é um aporte de material sensorial brutal, comparável ao que foi obtido no urgente Mad Max: Estrada da Fúria (2015). Outro aspecto sonoro interessante é a escolha vocabular, que em Star Wars é algo original e muito importante, e foi acertada neste filme. Ao contrário de nomes simplificados e inexpressivos como Rey, Finn, Snoke ou Kylo Ren, os personagens são batizados com nomes geralmente compostos, exóticos e galantes, assim como as cidades e planetas. Algo que demonstra também uma intenção de se aproximar da criatividade intensa de George Lucas e não divergir ou apenas decalcar seus expedientes consagrados.

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O fator marcante de Rogue One, e seu maior acerto, é confiar que ao escavar o terreno das ideias de George Lucas, encontrará elementos suficientes para se integrar harmonicamente ao universo dos outros filmes. Este universo imaginário é tão amplo temporalmente e espacialmente que um período entre dois filmes pode abrigar outro enredo, ou mesmo uma série inteira (como nas animações derivadas Clone Wars e Rebels), que se une organicamente ao fio condutor principal. São utilizadas concepções que muitas vezes constavam apenas de versões anteriores do roteiro original do Episódio IV: Uma Nova Esperança (1977), como os guardiões de Whills (espécies de narradores da historia original, depois descartados), os Cristais Kyber (artefatos que se ligam ao poder da Força, também eliminados em versões do roteiro), a expressão “A Força dos outros” (depois simplificada para apenas “A Força”, por sugestão de um incrédulo Brian De Palma), entre tantos outros motivos visuais recorrentes, como as naves, figurinos, cenários, personagens (com destaque para dois presentes na polêmica série de filmes prelúdios iniciados em 1999, os senadores Bail Organa e Mon Mothma, lideres da resistência rebelde, interpretados pelos mesmos atores originais). A estrutura segue até se aproximar da sequencia inicial do filme de 1977, com um trecho no qual o personagem de Darth Vader retorna (sem sacrilégios) em todo o seu esplendor macabro, de forma bastante crua e violenta.

A diferença substancial desta nova aventura de Star Wars para o primeiro gesto da Disney utilizando este material é o respeito e a reverência. O Despertar da Força (2015), dirigido por J.J. Abrams, desconstrói todo o legado do enredo encerrado em 1983 com O Retono de Jedi. Mostra um cenário frustrante, onde o maligno Império não sucumbiu definitivamente, apenas trocou de nome; o acovardado Luke Skywalker se exilou após um trauma ainda pouco esclarecido, os personagens Han Solo e Princesa Leia pouco modificaram sua forma de viver, além de outros personagens clássicos (Chewbacca, os droids R2-D2 e C-3PO) terem sido subutilizados na trama. Na intenção de lançar os novos protagonistas e ainda apostar numa nostalgia que agradasse aos fãs de longa data, o roteiro fez uma amarração de situações e cenários dos filmes anteriores, negando uma condição de futuro para a trama, já que se passa 30 anos após os eventos de O Retorno de Jedi (1983). Com uma direção pouco arrojada e criativa, tentando fugir do peso da prodigiosa imaginação de George Lucas, o filme de J. J. Abrams foi praticante uma reconstrução travestida do episódio de 1977. Muito pelo contrário, em Rogue One o que temos é uma encarnação vigorosa e diversa, mais aparentada aos filmes de guerra que às fábulas (lembrando que as cenas de batalha espaciais dos filmes originais são calçadas em diversos filmes de guerra que apresentavam combates aéreos), que mesmo se situando no passado, mostra uma nova possibilidade para o conjunto de elementos de Star Wars.

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Ao final, descontada a comoção inicial pela competência na utilização do fator imagético (que sempre foi um aspecto importante destes filmes, com Lucas chegando a relacioná-los à época muda do cinema) e a utilização funcional e até reparadora dos elementos de tratamentos anteriores dos filmes originais (como na interessante solução para a falha na estrutura da Estrela da Morte, que era considerada uma fragilidade de roteiro), o filme se caracteriza pela simplicidade no enredo. Os heróis consagrados da série viriam no filme cronologicamente posterior, e seria uma temeridade querer rivalizar utilizando tipos que ultrapassassem a vocação de ligação da narrativa, fato que foi tratado com respeito pelo diretor.Também se destaca a competência no uso dos recursos técnicos para materializar cenas de movimento e ação. Algo bastante próximo do espírito dos filmes originais, que trouxeram um ar de novidade e jovialidade ao cinema norte-americano da época, com inúmeras consequências positivas e negativas. Rogue One é mais eficiente em retomar concepções anteriores de Star Wars até mesmo que os filmes prelúdios de Lucas, e não torna a retomada destes elementos hoje marcantes na nossa cultura uma operação que vise apenas o lucro, ou uma espécie de museologia para agradar consumidores nostálgicos. Gareth Edwards reaviva o interesse genuíno na maneira que Lucas construiu sua obra. E neste filme em especial, o conhecimento deste legado é necessário para avaliar a envergadura de sua pretensão, e o sucesso em perpetuar o fascínio que só cresce nestes 40 anos, desde o primeiro letreiro trazendo notícias de uma galáxia muito, muito distante.