Relato de um corpo fora do lugar
João Campos
Ingrid (2016), de Maick Hannder, é um filme universitário, mas apenas no sentido estrito de ter sido produzido no contexto da faculdade, como um trabalho de quinto período do curso de Cinema e Audiovisual do Centro Universitário UNA. Contudo, o que vemos na tela é um trabalho de maturidade, respeito pela pessoa filmada e experimentação imagética e sonora.
O filme parte de uma entrevista com a personagem Ingrid, uma transexual que relata, de maneira breve e vibrante, sua conflituosa relação com as determinações que seu corpo masculino impunha à sua identidade, desde a infância até sua realização enquanto mulher transformada. Considerando isto, acompanhamos, simultaneamente, o processo de transição da personagem e um belíssimo trabalho de fotografia intimista, voltado para partes do corpo transgressor de Ingrid. A potência do texto do filme, veiculada pela voz da protagonista, se mistura às imagens que guiam uma exploração das curvas dela, o que nos lembra uma vertente cinematográfica que podemos chamar, aqui, de cinema da sensação, tendo como o maior expoente, ao menos em Minas Gerais, Cao Guimarães.
O respeito e o tato com que a câmera de Maick Hannder percorre o corpo de Ingrid pressupõe uma maturidade incomum em filmes de jovens realizadores. A fotografia do filme consegue trazer para a mise-en-scène a beleza e plasticidade desse corpo, dessa existência, dessa resistência e, sobretudo, dessa insistência em ser o que se sente ser. Este não é apenas mais um filme sobre relações de gênero, sexualidade e transexualidade. É uma busca por uma estética, uma caligrafia, um toque autoral.
Em tom de perscrutação, ou de interpretação, os planos nos guiam pelos traços de Ingrid rumo ao seu corpo inteiro, ápice em que, no texto, a personagem afirma sua existência enquanto mulher, relatando seu sentimento de realização pelo implante de seios. Esse documentário, voltado para o corpo, o texto e a plasticidade das curvas e dos deslizamentos da vida de Ingrid, pode ser um exemplo do que Adirley Queirós disse na 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes: um documentário autoral, com um apego ou proposta estética que foge do didatismo tão presente nas obras de jovens realizadores.
Considero importante salientar, também, alguns pontos fracos do filme – para tanto, deixo claro que este julgamento parte de uma perspectiva bastante pessoal acerca do cinema documentário. Dois elementos me incomodaram: a trilha sonora e a escolha pelo preto e branco. Essas opções estéticas, ao meu ver, acabaram por tentar dramatizar o que já era vívido e potente em seu estado bruto. Apenas o texto e o belíssimo trabalho de fotografia que estrutura o filme seriam, na minha opinião, um grande caminho para Ingrid. Problema recorrente, presente em vários filmes exibidos no festival, a trilha e o preto e branco tentam elevar o que já está elevado, maquiando uma realidade repleta de beleza, plasticidade e vibração. Não obstante, estamos diante de um filme único em seu contexto, o que alimenta nossa vontade de seguir buscando os próximos trabalhos desse jovem cineasta.