O último dia de um condenado qualquer
João Campos
“Condenado à morte! Ora, por que não? Os homens, lembro-me de ter lido em não sei que livro, no qual apenas isso de bom, os homens estão todos condenados à morte com sursis indefinidos. O que tanto teria mudado na minha situação, então?”.
(Victor Hugo, “O Último Dia de um Condenado”)
I
Uma obra paradigmática, um filme-manifesto. O Enforcamento (1968), primeiro projeto inteiramente planejado e realizado pela ATG (Art Theatre Guild)[1], nos confronta com sua potência poética e política. No filme, Nagisa Oshima vai de encontro à delicada realidade da pena de morte, através de formas ousadas e, sobretudo, provocativas. Nesse texto, proponho uma leitura livre de tal obra complexa e incômoda, bela pela asfixia que nos proporciona.
Para dar início à reflexão, voltemos nossa atenção para outra obra canônica, mas da literatura: “O Último Dia de um Condenado”, de Victor Hugo. Neste livro, o autor explora as curvas da sensibilidade de um condenado à morte até seus últimos instantes de vida. Experiência estética e política que marcou a história da literatura mundial, exercendo grande influência em diversos autores posteriores, entre eles Dostoiévski, essa obra pode nos servir de base para interpretar o filme de Oshima. Ao deslocar nossa atenção para a intimidade do condenado, abstendo-se de todo e qualquer julgamento moral e jurídico, Victor Hugo e Oshima nos apresentam, cada qual à sua maneira, o invisível ou invisibilizado: a pessoa por trás do criminoso, sua intangibilidade, isto é, sua sensibilidade.
O trabalho literário de Victor Hugo representa, com efeito, uma cisão formal e temática. Devemos lê-la, simultaneamente, com uma grande obra de arte e um eficaz tratado abolicionista. No prefácio de 1832, escrito pelo autor, encontramos o seguinte trecho sobre o livro:
Ele declara, portanto, e repete, e insiste, em nome de todos os acusados possíveis, inocentes ou culpados, diante de todas as cortes, todas as audiências, todos os júris, todas as justiças. Este livro é dirigido a qualquer um que julgue. E para que a defesa fosse tão ampla quanto a causa, ele teve – e é por isso que “O último dia de um condenado” foi assim escrito – de extrair de todas as partes de sua matéria o contingente, o acidental, o particular, o especial, o relativo, o modificável, o episódico, a anedota, o acontecido, o nome próprio, e se limitar (se é que isso é se limitar) a defender a causa de um condenado qualquer, executado num dia qualquer, por um crime qualquer. Será feliz se – sem outra ferramenta além de seu pensamento – conseguiu perscrutar o suficiente para fazer sangrar o coração sob aes tríplex do magistrado! Feliz, se conseguiu tornar lamentáveis os que se acreditam justos! Feliz, se à força de escavar o juiz, pôde algumas vezes encontrar um homem![2]
É exatamente isso que Oshima realiza com O Enforcamento: ao escavar o juiz, a lei, o processo, ele encontra o homem. Na mise-en-scène, o filme transforma o que se considera justo em lamentável e, devo acrescentar, ridículo.
II
O Enforcamento começa com uma espécie de survey, demonstrando que a maioria da população japonesa (71%) é contra a abolição da pena de morte e, logo após, provoca o espectador com a pergunta: “mas vocês, 71% que se opõem à abolição, já viram uma câmara de execução?”. Depois de uma incursão etnográfica na câmara de execução, para mostrar aos 71% com uma precisão matemática o espaço físico do coração das trevas, o filme mergulha nos interstícios entre o onírico e a realidade documentária.
Após sobreviver à sua execução, R, um criminoso coreano acusado de estuprar e assassinar duas garotas, sofre de amnésia, talvez pelo choque do enforcamento, talvez por outra razão. O que se sabe é que esse acidente dá início a um evento inédito: sem ter consciência de seus antigos delitos, R não pode ser executado novamente, pois precisa assumir sua culpa e confessar seu crime para que o processo da execução recomece. Sob a égide da lei e do protocolo, os carrascos levam os condenados ao cadafalso. A banalização do mal também se encontra em tais situações, em que se mata para seguir a lei. Porém, a lei não dá conta da contingência inesperada. Para resolver o problema, os carrascos buscam injetar memórias em R através da encenação. Se a lei não consegue enquadrar o deslizamento, a performance, sem dúvidas, o fará.
O que se segue é um grande teatro da contingência, onde a realidade estanque da lei e do protocolo entra em curto-circuito com a poética, o imaginário e o episódico. A possibilidade do inesperado ou impossível nos solicita um exercício interpretativo. Somos levados a esticar o real, abrir caminho para o desejo e, sobretudo, o delírio. Aqui começa um confronto entre o sonho e a vigília.
III
Podemos dividir o teatro supracitado em três camadas, sendo que na passagem de uma a outra, o espaço cênico vai se misturando com a realidade crua. Ao mesmo tempo em que Oshima mergulha no onírico, os delírios tomam forma de real. No primeiro terço da obra, os carrascos reencenam os delitos e o histórico de R dentro da câmara de execução, buscando inculcar a culpa no condenado para que esse confesse seus delitos e, assim, possa ser executado. Tal processo atravessa todo o filme, levando-nos a pensar a obra como uma versão realística e intensificada da peça desenvolvida dentro dela. Em outras palavras, essa performance coletiva toma forma de real na medida em que o imaginário é assumido enquanto real. Assim, R vai entrando no jogo teatral, buscando compreender quem de fato é, enquanto seus assassinos passam pelo mesmo processo, mas com a finalidade de cumprir o protocolo, isto é, matar.
No segundo terço, o número de personagens na trama de Mnemosine aumenta, papéis são distribuídos aos carcereiros, ao padre e R entra no jogo. Aqui, a câmara de execução também sofre uma transformação. Os espaços da performance e do público (no caso, o promotor de justiça, abaixo da bandeira do Japão) são destacados, jornais são colados nas paredes, indicando que algo distinto ocorre ali. Nosso enredo se alastra para a história familiar de R e um drama surge: o suplício do estrangeiro, mais especificamente, dos coreanos em solo japonês.
Enfim, o palco se torna a rua. Nessa etapa, todos se encontram imersos no intrigante universo imaginário criado pelos carrascos de R. O delírio toma, para os espectadores, forma de real. O cotidiano urbano se combina com o experimento iniciado no cadafalso. Nessa espécie de ritual, o retorno à câmara sinaliza uma mudança gradual entre estados. R assume ser R, mas nega sua culpa. Como nos ritos de passagem, uma renovação é germinada no âmago do personagem, uma travessia ocorreu. R se torna um foco de resistência, metáfora histórica do martírio estrangeiro. O grito do condenado ressoa: “eu não sou culpado”. Ao nos depararmos com o vazio na forca que executa R, encaramos a opacidade da pena de morte.
IV
Creio não ser necessário insistir que O Enforcamento é um filme político. A política dessa obra está no deslocamento que Oshima provoca ao dar a ver os deslizamentos e incongruências de um sistema legitimado, porém, injusto. Ao focar nossa atenção no episódico, na intimidade de um “condenado qualquer”, Oshima realiza um filme com uma potência próxima do livro de Victor Hugo.
Num movimento que buscava a radicalização temática e estilística, Nagisa Oshima propõe, com O Enforcamento, um filme, um tratado, uma rebelião, um rito de passagem. Como costuma ocorrer nas experiências performáticas, ao termos contato com o filme, algo de nós muda. Esse desconforto é essencial para o cinema que, antes de mais nada, deve nos deslocar de nós mesmos. Como escreveu o personagem de Victor Hugo, “os homens estão todos condenados à morte com sursis indefinidos”. Todos estamos condenados à morte, mas não ao assassinato.
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Notas:
[1]Grupo formado por artistas independentes que buscavam renovar o cinema japonês através da experimentação estética, à margem dos grandes estúdios.
[2]“Prefácio de 1832”. In: HUGO, Victor. O último dia de um condenado. Estação Liberdade, 2010.