O Homem nas Trevas (2016), de Fede Alvarez

Jane Levy stars in Screen Gems' horror-thriller DON'T BREATHE.

Entre sombras

Gabriel Leal 

Em O Homem nas Trevas (2016), o diretor uruguaio Fede Alvarez quis se afastar de elementos sobrenaturais, aproximando-se mais do suspense do que do terror. Porém, o diálogo com esse último gênero é predominante. Pode-se dizer que ao invés de seguir uma das convenções mais tradicionais do terror, que pode ser resumida como violação das leis da natureza que conhecemos (seja a partir de monstros ou ameaças sobrenaturais), o filme viola as leis morais como a conhecemos, abrindo um caminho para a exploração de aspectos sombrios do homem. De todo modo, o filme é, em geral, fiel às convenções do cinema clássico de Hollywood, mas o domínio das convenções permite quebras, como a de reverter a lógica do subgênero Home Invasion, tornando os invasores em vítimas.

Em uma introdução direta e sucinta, O Homem nas Trevas apresenta três jovens assaltantes de casas em Detroit: Money (Daniel Zovatto) é o valentão/mandão do grupo; Alex (Dylan Minnette) é o “cabeça”, o que tem acesso aos códigos de segurança (e as chaves) e entende das leis; já Rocky (Jane Levy) é a musa sedutora do grupo e quer o dinheiro dos assaltos para fugir do seu ambiente familiar nefasto. Apesar dos três personagens serem apresentados de modo equilibrado, Alex tende a balança para ser o protagonista/herói, pois é ele quem, nos termos de Joseph Campbell, recebe “o chamado da aventura” e, em seguida, faz “a recusa do chamado”. Obviamente, após a recusa, Alex acaba por aceitar a proposta de assaltar a casa de um Homem Cego (Stephen Lang), pois não resiste aos encantos de Rocky e, com tudo isso, indica que a jornada será pela busca de ter seu amor correspondido.

Ainda na primeira parte, junto com a apresentação dos personagens e do conflito, há várias inserções de informações que mais tarde serão retomadas (técnica básica e muito usada em roteiros, conhecida também como plantar e recompensar). Isso ocorre de diversas maneiras, desde a promessa de Rocky para Diddy que elas irão para a Califórnia, até um pequeno caco de vidro que faz com que o Homem Cego perceba a janela por onde Rocky entrou e então a obstrua com pedaços de madeira. Essa técnica, baseada na repetição de elementos em uma espiral, é importante para criar uma sensação de progressão dramática, mas pode também ser usada de modo mais sutil e relacionada apenas com o subtexto da trama. Por exemplo, o porta-malas, que no início faz parte do cenário de uma história traumática de Rocky, se torna ao final uma armadilha para prender o rottweiler insano. Nesse caso, o porta-malas se torna um motif que pode representar o arco de mudança de Rocky de uma menina indefesa diante da violência do mundo para uma mulher forte que responde a essa violência.

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Mais à frente, quando eles entram na casa do Homem Cego, são plantados objetos a partir de uma narração onisciente, ou seja, a câmera mostra informações que só nós espectadores temos. De fato, essa narração é apenas pontualmente onisciente e no restante do filme se limita à perspectiva dos três jovens. Porém, quando eles entram na casa a câmera enfatiza (dando mais atenção do que os próprios personagens parecem dar) alguns objetos como: um martelo, um caco de vidro, as botas, a fechadura no porão e até um certo local no closet, etc. Essa narração se mostra plenamente onisciente ao passar por debaixo da cama e mostrar uma arma escondida. Todos esses objetos terão alguma função dramática ao longo do filme e o espectador atento sabe disso, mas ainda não sabe como. Esses elementos são bem pensados e brincam com as expectativas do público, criando tensão bem ao modo Hitchcockiano. O caco de vidro, por exemplo, é lembrado, imediatamente, quando, ao entrarem, os jovens tiram os calçados, pois cria-se uma fantasia antecipatória no espectador: “alguém vai cortar o pé naquele caco de vidro do corredor”. Porém, o caco de vidro terá outra função, como já foi citado, e as botas servirão para o Homem Cego descobrir que há mais pessoas do que ele supunha na casa.

A narração, que enfatiza certos elementos do cenário, criando suspense, também é utilizada para criar estranhamento e mistério. O retrato da filha do Homem Cego, virado de cabeça para baixo, cumpre essa função, pois, a princípio, passa despercebido. Porém, no final, ao ser quebrado com um tiro equivocado do antagonista, reitera certo motif desse objeto com o Homem Cego, assim como o porta-malas e Rocky. O motif pode representar a relação invertida e mal resolvida do vilão com a morte da filha e, que ao final, não consegue ser mantida e se quebra.

Com exceção de tais momentos oniscientes da narração, a história se atém ao ponto de vista dos protagonistas e em nenhuma situação toma o ponto de vista exclusivo do antagonista. Esse ponto, além de permitir uma maior identificação com os jovens, cria situações de surpresa, pois as ações que o vilão comete longe dos demais personagens principais são omitidas e mostradas de modo inesperado.

Diante do desencadeamento dos eventos, há uma cronologia bastante linear que colabora com a imersão na trama, mas há uma única exceção que é a cena de abertura em um flashfoward,mostrando o Homem Cego arrastando Rocky pelos cabelos. Essa cena, por ser a de abertura, não provoca uma quebra abrupta da cronologia dos eventos, o que é um dos maiores problemas na inserção desse recurso, tanto no uso do flashfoward como do flashback. Assim, o uso desse recurso no filme, além de não atrapalhar, fisga o interesse da audiência e prepara o clima de terror. Para tal efeito, o filme o faz de modo bastante cinematográfico: começa com um plano aberto, que mostra um bairro abandonado, e vai se aproximando do geral para o particular (assim como Hitchcock faz na abertura de Psicose (1960), indo da vista panorâmica da cidade de Phoenix até se aproximar e entrar pela janela de sua personagem icônica). Essa imersão imagética acompanha uma imersão sonora, através da utilização de alguns sons diegéticos da cidade e da natureza, ambos em um volume baixo, sendo sobrepostos por uma trilha musical de terror que vai aumentando de volume.

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Em relação à dimensão espacial e temporal do universo narrativo, percebe-se que elas são bastante condensadas e, assim, colaboram para a vivência no “aqui e agora” da trama, facilitando também a imersão e gerando ainda mais tensão. Todo o tempo em que a história se passa deve ser de uma ou duas semanas e todo o espaço é a cidade de Detroit, sendo a cena final no aeroporto. Porém, a maior parte do filme (por volta de dois terços) se passa dentro da casa do Homem Cego e dura da madrugada até o amanhecer. Essa escolha, nada ao acaso, intensifica o arco dramático e, por vezes, até o acompanha, como, por exemplo, na maior virada dramática, a morte de Alex, que ocorre justo quando o sol está nascendo e quando os protagonistas estão prestes a sair da casa.

No que tange a essa virada, em que o suposto protagonista morre, tem-se uma exímia preparação e, por isso, é surpreendente. No começo, são inseridas falsas pistas, já citadas, levando a crer que a narrativa é sobre Alex e sua busca por ter seu amor correspondido, quando, de fato, é sobre Rocky e sua luta por liberdade e independência. Esse tipo de mudança é mais do que geralmente se espera em filmes do gênero e, guardadas as proporções, lembra a mudança de protagonismo ocorrida em Psicose (Fede Alvarez parece ter uma relação de aprendiz com o mestre do suspense).

Obviamente um cinéfilo, Alvarez não bebe só da fonte de Hitchcock. Após a derrota do Homem Cego, Alvarez se utiliza de um plano centralizado e em contra-plongèe de Rocky. Essa imagem, somada ao movimento de câmera de aproximação, gera um efeito catártico, mostrando o triunfo e a superioridade de sua protagonista, elemento que marca o estilo de Tarantino.  Porém, o que por vezes em Tarantino é maneirismo, em Alvarez é um recurso discreto e marca mais uma função na trama do que uma linguagem própria. Além disso, em filmes como À prova de Morte e Kill Bil Vol.1 e Vol.2, Tarantino coloca a personagem feminina em uma jornada de poder e superação em relação à figura masculina, algo que também pode ser identificado aqui em O Homem nas Trevas.

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Em suma, o filme, ao comprimir tantos elementos com coerência narrativa, torna a história mais verossimilhante e, assim, torna o vilão mais humano, compreensível, sendo também mais aterrorizante. Dito isso, a partir daqui irei me permitir sair de uma análise “centrípeta” do filme e propor uma análise “centrífuga”, fazendo associações mais amplas e filosóficas. Diante da injustiça de não ter a mulher culpada pela morte da sua filha presa, o Homem Cego precisa agir para encontrar certo ideal perdido. Desse modo, pode-se interligar-se o agir acima da lei e da moral com a filosofia de Nietzsche, em especial com o conceito do übermensch ou além-do-homem.

Essa associação ganha assertividade com as poucas falas do Homem Cego: “Deus? Não há Deus… É uma piada. É uma piada ruim”; “Não há nada que um homem não possa fazer quando ele aceita que não há Deus”. Essas falas reverberam as falas da anunciação de Zaratrusta de Nietzsche quanto à morte de Deus, situação que justifica a vinda do além-do-homem. Para Nietzsche, o conceito de übermensch é moldado como contraponto ao conceito do último-homem da filosofia pragmática inglesa, que seria: o homem do presente, ao dominar a técnica e a ciência, acredita também dominar a felicidade. Assim podemos relacionar o Homem Cego ao além-do-homem e os jovens, em especial Alex e Money, ao último-homem.

“A terra se tornou pequena então, e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo pequeno. Sua estirpe é indestrutível, como a pulga; o último homem é o que mais tempo vive. “Nós inventamos a felicidade” – dizem os últimos homens, e piscam os olhos. Abandonaram as regiões onde é duro viver, pois a gente precisa de calor.” (Za/ZA, Prólogo, § 5)

Esse trecho de “Assim falou Zaratustra” elucida bem a característica do último-homem, que, como os personagens jovens, querem sair de Detroit, onde é difícil viver, e ir para a Califórnia, onde há calor. Em contrapartida, o além-do-homem é um ideal concreto, que se realiza a partir de uma espécie de atitude para com a realidade, visando a superação pessoal como consequência de um esforço para ir além daquilo que lhe é dado no presente. Assim, o Homem Cego pode ser visto como alguém que, ao menos, se coloca mais próximo desse caminho de esforço e superação de si e de suas condições.

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É claro que essa aproximação conceitual funciona somente enquanto especulação, mas é interessante pensar nesses termos, pois permite entender o porquê desse tipo de personagem gerar cada vez mais admiração no público. Um exemplo disso é o personagem Hannibal de Silêncio dos Inocentes. Apesar das diferenças, é também um homem extremamente capaz intelectualmente e mantém argumentos sofisticados que explicam suas motivações e atos. Nesse sentido, os dois se colocam para além da moral, se aproximando do além-do-homem, abominando e desprezando o último-homem (sentimento que Nietzsche deixava claro em seus escritos). Interessante também pensar que, nos dois casos, há uma protagonista feminina que confronta esses personagens. Aliás, o Homem nas Trevas e O Silêncio dos Inocentes têm outras características que os interligam. Em primeiro lugar, a questão fronteiriça entre o terror e o suspense; em segundo lugar, nos dois filmes temos uma situação de um homem problemático (para dizer o mínimo) sequestrar uma mulher e a colocar em seu porão. Inclusive, nos dois filmes são utilizados o efeito da visão noturna na cenas nos subsolos.

Por fim, talvez sejam esses alguns dos fatores que fizeram O Homem nas Trevas se destacar, tanto em termos de crítica quanto de público. Assim, o filme nos deixa com um final aberto (próprio de franquias de terror) que, independente de uma continuação, nos mostra ser possível fazer filmes que dialoguem com o gênero, mas que vão além, ao utilizar, de modo clássico e eficiente, recursos cinematográficos em função da narrativa, sem deixar de manter um olhar atento para questões do nosso tempo.