Arábia (2017), de Affonso Uchoa e João Dumans

Arabia-MHD

Cristiano, um narrador

João Campos

“Filme de trecho”, disse João Dumans sobre Arábia (2017). Com efeito, a experiência do caminhar e do narrar envolve o filme de tal maneira que o gesto de rememoração do personagem, inscrito na representação de um trecho curto de sua vida, contagia a mise-en-scène por completo. É nessa incompletude ontológica do rememorar e nas valas da história dos vitoriosos que encontramos as potências desse épico contemporâneo da classe trabalhadora, inelutavelmente fragmentário, incontestavelmente poético.

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Um jovem encontra o diário de um trabalhador que sofreu um acidente em serviço numa antiga fábrica de alumínio de Ouro Preto. Esse trabalhador é Cristiano, interpretado por Aristides de Sousa, e Arábia é a história de sua vida e morte, representada de forma poética e fragmentada. A literatura está presente no filme tanto na narração em voz over quanto no gesto de leitura que conecta André (Murilo Caliari) às passagens literárias produzidas por Cristiano, cujas palavras refletem uma memória dissidente, atenta tanto às desgraças quanto às alegrias.

“Máquina de contra-história”, esse foi o termo usado por Affonso Uchoa para explorar as potencialidades do Cinema. Creio que ele não falava exatamente de seus filmes, mas do que acredita que o cinema pode no mundo atual. Contudo, não há dúvidas de que, se a história oficial ou conservadora é escrita pelos vitoriosos, tanto Arábia quanto A vizinhança do tigre (2014) alimentam uma nova máquina de contra-história. Refiro-me a certo cinema[1] que, mesmo quando é sutil (como no caso dos filmes de Uchoa e Dumans), produz histórias e compõe mise-en-scènes capazes de desafiar os discursos oficiais e os olhares estrangeiros (Cidade de Deus (2002), por exemplo), que ainda silenciam narrativas marginalizadas– elaboradas por trabalhadores e trabalhadoras, pobres, indígenas etc.

Chegamos num ponto crucial. Se a produção da história é composta não só por historiadores profissionais, mas também por “artesãos das mais diferentes estirpes”, como “políticos, estudantes, escritores de ficção, cineastas ou membros participantes do público em geral”[2], considero plenamente viável dizer que Arábiase insere no processo de sedimentação de uma História (e uma Literatura, e um Cinema) dos marginalizados – o Outro da antropologia e do cinema. Ao inscrever Cristiano enquanto narrador de sua vida, de seus pesares, amores, festas e delírios, sem reduzi-lo ao horror e sem celebrá-lo enquanto exótico, Affonso e João compuseram um filme e um conto. Com crueza e sem rodeios, a narração de Cristiano mostra uma pessoa vigorosa que ruma sem destino e sem apego, tentando sobreviver à deriva, entre empregos e sob a influência (sempre sussurrada) de Ana, o amor de sua vida.

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Segundo Walter Benjamin[3], o narrador tradicional retira da experiência (Erfahrung) a matéria-prima de suas histórias. O saber origina-se, portanto, do ponto-de-vista daqueles que se afundam no tempo e se perdem no espaço – o sábio e o viajante. Cristiano, um andarilho que extrai sua arte de suas errâncias por um pequeno trecho de Minas Gerais (sempre em busca de trabalho), se assemelha, portanto, a esse tipo de narrador benjaminiano. A força-motriz do filme é a reminiscência, que nunca é completa, pois sempre nos apropriamos do nosso passado como se estivéssemos dando braçadas no esquecimento. A forma fragmentária do rememorar reflete a forma do filme, de modo que sua mise-en-scène configura o que apresenta enquanto vestígio. O tempo de 10 anos transcorre em fragmentos do lembrar. A história de opressão de um trabalhador brasileiro nos é sussurrada até alcançar um lampejo surdo, mas brilhante.

No final de Arábia, a surdez acomete Cristiano, que então pára de escutar a sinfonia das máquinas e desloca seu olhar para seus companheiros de trabalho. O som desaparece, e só ouvimos a voz do protagonista, que antevê um caminho inevitável. Durante o filme inteiro acompanhamos a formação de uma consciência de classe que, agora, na surdez, quer gritar. Em sonho, o jovem trabalhador quer chamar seus colegas, quer parar a fábrica, a luta é necessária, ele está vivo. A única chama que nutre é o ódio contra o inimigo: essa possibilidade está em sua voz. As luzes se apagam.

Os fragmentos mnemônicos de Arábia se convertem num sonho de luta, numa prolepse narrativa que mira outra história, outro cinema. A obra se choca violentamente – apesar de toda sensibilidade sutil de suas operações estéticas – contra a história oficial (retilínea e rumo ao progresso), que silencia qualquer produção narrativa da classe trabalhadora:todo lampejo é ignorado. Se for possível reinventar a potência do rememorar em favor de uma História materialista revolucionária, como queria Walter Benjamin, considero que o cinema, enquanto uma força ingovernável, capaz de destruir os alicerces dos silenciamentos vigentes, tem um papel a desempenhar. Nesse sentido, Arábia, um filme de trecho, que enlaça a memória pessoal e a história social numa ficção de errâncias, possibilitando ao espectador uma viagem plástica e não menos destrutiva aos confins do lembrar e contar, representa um grande passo.

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[1]Dentre esses filmes, podemos mencionar a obra de Adirley Queirós, principalmente A Cidade É Uma Só?Branco Sai Preto Fica e Era Uma Vez Brasília; Baronesa, de Juliana Antunes; Estado-itinerante, de Ana Carolina Soares; Tentei, de Laís Melo; Café com Canela, A Falta que Me Faz, de Marília Rocha, entre outros filmes recentes que produzem deslocamentos do lugar olhado das coisas.

[2]TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciando o passado: poder e a produção da história. Curitiba: huya, 2016. Pp. 57.

[3]“O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Obras escolhidas I: Magia e técnica – arte e política. São Paulo: Brasiliense.