Construindo Pontes (2017), de Heloisa Passos

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Forjando pontes

João Campos

Construindo Pontes (2017), estreia de Heloisa Passos enquanto diretora de cinema, parte de “um desejo de conversa e escuta”. As palavras da diretora, ditas durante o debate que sucedeu seu longa-metragem em Brasília, são reveladoras, uma vez que o filme se constrói a partir da tensão entre ela e seu pai, oriunda de um processo de confronto que, na montagem, é costurado a um discurso periclitante – e ingênuo – a respeito dos problemas políticos do país – de ontem e hoje. A necessidade de esboçar um “discurso político” a qualquer custo (seja no filme, no debate sobre o filme ou na fala da diretora que antecedeu a sessão) ilustra algo problemático: a culpa de classe de uma cineasta pretensamente de esquerda.

O filme é completamente esvaziado de política, mas tem a ambição exibicionista de encampar questões que conectam, por tensão mecânica, o micro e o macro, a esfera particular e o mundo que a transcende. Essa tentativa se dá através da utilização de imagens de arquivo da época da ditadura militar, da evocação constante dos contrastes entre a posição política do pai e da filha e de procedimentos visuais frustrados, pedantes, que refletem grande descaso em relação à história.

O argumento do filme surgiu quando a diretora foi presenteada com filmagens em 8mm das Sete Quedas, complexo de cachoeiras destruída durante a ditadura militar em função da construção da Usina de Itaipu. Partindo de tais imagens, a obra constrói conexões mirabolantes entre passado e presente, mais precisamente, entre golpes – 1964 e 2016. Contudo, as questões políticas integram-na como ganchos entre as conversas de pai e filha que, mesmo no confronto, nada revelam.

O pai: engenheiro renomado que coordenou diversas obras importantes durante o período da ditadura. A filha: uma cineasta de esquerda que cresceu na ditadura militar, mas como “menina rica”, e agora quer falar de política e afeto. O fascismo silencioso desse homem calculista, que a tudo planeja, é evidenciado por seus discursos, mas também pelos da filha: “Ele fala revolução. Eu falo ditadura. Ele bebe cerveja, eu bebo uísque. Ele diz impeachment, eu golpe. Ele é craque em pingue-pongue, eu também”. Esses trechos em primeira pessoa tentam poetizar um filme que não existe, contribuindo para o equívoco da diretora em falar da história dos outros a partir da sala da casa de seus pais – possivelmente o delírio de uma “menina rica”. Tal pretensão poética estrutura o filme, resultando num desastre. A evocação de Jean Rouch (“Building Bridges”) é devastadora, uma vez que a única ponte que aqui existe é a Curitiba-Brasília. Falar por falar, fazer filme por fazer. Nada se distancia tanto da proposta rouchiana.

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As duas câmeras instaladas cuidadosamente na casa dos pais de Heloísa revelam apenas debates óbvios que escutamos em qualquer grupo de whatsapp ou facebook. Frases como “os militares fizeram o que bem entenderam” ou “eles torturaram as pessoas” poderiam ter saído da boca de uma adolescente de 15 anos, mas, no filme, fazem parte do discurso da protagonista, sequiosa por dividir seus clichês em tempos nos quais todas e todos (principalmente os oportunistas) creem na importância de se posicionar politicamente – mesmo quando não possuem posição alguma!

As deambulações das personagens dão movimento ao filme, que se perde na política, mas se encontra na possibilidade de estabelecimento de uma conexão entre eles. Uma obra em processo, que tenta encarar o real, mas acaba controlando-o. A voz over é empregada sempre que o confronto entre Álvaro e Heloísa não é suficiente para manter a narrativa – ou, o que parece mais coerente, quando o discurso do primeiro não está de acordo com as expectativas da diretora para o filme. Não há escuta – o mote do filme –, mas um constante atropelamento das contingências e ambiguidades do real. Heloísa Passos compõe um simulacro de si mesma e sua culpa de classe perante um país em colapso – apocalipse que não a afeta, mas cuja história, ainda assim, a realizadora revolucionária almeja contar.

Termino com uma questão: ao controlar excessivamente a mise-en-scène, com estratégias narrativas pedantes e chicherizadas, Heloísa Passos não estaria forjando pontes? Nessa obra desastrosa, as conexões entre micro e macro, afeto e política, pai e filha sinalizam apenas a violência de uma cineasta que quer moldar o real ao seu bel prazer – e nada mais.