A harmonia da devastação
João Campos
Durante a sessão de O peixe (2017), filme de Jonathas de Andrade que integrou a mostra competitiva de curtas-metragens do 50º Festival de Brasília, me recordei de um comentário de Werner Herzog no documentário Burden of Dreams (1982), de Les Blank. Em plena Amazônia, durante a gravação de Fitzcarraldo (1982), o diretor atesta que a natureza é muito mais forte que nós, e não menos sombria. O que ele enxerga na selva é “fornicação e asfixia, enforcamento e luta por sobrevivência e crescimento. Apenas apodrecimento (…). Olhando ao nosso redor, há certa harmonia. É a harmonia da devastação e assassinato coletivo”. Curiosamente, ele diz tudo isso cheio de admiração pela selva, revelando um amor relutante, semelhante aos efeitos de uma sedução perigosa.
Uma percepção similar atravessa o filme de Andrade, ainda que este se passe num contexto completamente diferente. O documentário é um experimento, inventado a partir do – ou para o – encontro entre realizador e pescadores de Piaçabuçu, Alagoas. Ali, um rito de passagem foi instituído: o pescador captura o peixe e, num gesto erótico e violento, o abraça até sua morte. O cineasta busca instaurar, portanto, um sonho que pode dizer bastante sobre si mesmo, mas pouco sobre os pescadores. O interessante, contudo, está na proposição de um rito imaginado que, como veremos, nos faz entrever o umbral da morte agonizante. Há uma reconexão heterodoxa entre pescador e peixe que se processa pela intervenção do onírico no filme, de modo que a obra só pode ser vista enquanto documentário se pensarmos numa etnografia de um encontro. A experiência é intensificada pelo modo como a mise-en-scène é elaborada, levando-nos a perscrutar, simultaneamente, o afeto e as sombras inescapáveis, numa repetição composta por uma montagem simples e eficaz – assinada por Tita e Ricardo Pretti.
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A força do filme está na repetição do rito proposto (uma “tradição inventada”, como disse o realizador em entrevista), filmado a partir de um dispositivo que nos hipnotiza, nos seduz. (1) Num ponto do rio, a câmera mira as águas, adequando-se ao seu movimento pendular, até que (2) alcança um pescador, enquadrando-o à medida que se aproxima em zoom in. (3) Passamos para o momento da pesca. A montagem busca evidenciar, plástica e poeticamente, a pluralidade e beleza dos gestos, situações, movimentos, paisagens e sensações que envolvem a experiência do pescar. Corte. (4) O momento do abraço, que, a primeira vista, pode parecer inócuo, revela uma força subjacente: ele carrega a potência da ambiguidade, refletindo, a um só tempo, um gesto de amor e uma asfixia sombria. O ritual se converte numa experiência singular, um deslize ambíguo que se traduz em experiência aurática, ainda que aterradora. O filme fabula a partir do real, deslocando para o ecrã uma situação única, repleta de riqueza fenomenológica e imagética. Este é um documentário de reencontros: um reencontro sonhado – pelo realizador – entre caçador e caça, e outro reencontro, protagonizado pelo filme e o real, e conduzido pela ficção do rito. Nele encaramos o inelutável peso da “luta por sobrevivência” que Herzog menciona em seu monólogo sobre a selva, assim como a misteriosa silhueta da morte. (5) Em close up, o pescador olha para extracampo, evocação da lonjura ou distância que logo nos fere quando o olhar se vira para a câmera.
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O Peixe representa uma experiência sonhada, cuja ambiguidade libera forças destrutivas – ainda que ficcionais. A repetição das situações da pesca e da ficção ritualística remete às operações estéticas de Elephant (1989). Contudo, o exercício aqui é outro. Alan Clark busca dar forma, através de um dispositivo semelhante ao elaborado por Jonathas de Andrade, a um fato social (uma onda violência). Sua fabulação em retrospectiva tira dos vestígios de assassinatos as pistas para a composição de um filme de planos-sequência. Em O peixe, Andrade dá a ver o encontro entre uma elaboração própria e a prática real dos pescadores. A fabulação se dá na proposição, no projeto de uma experiência que nunca se deu, elaborada para o cinema. Entre sonho e real, conceito e etnografia, assistimos a um conjunto de vestígios, fragmentos em movimento dialético, e regressamos para a terra dos mortos. O corpo do peixe que se debate sinaliza a morte, chama a nossa atenção para a indicialidade do morrer, a semelhança entre convulsões (peixe e homem) e a convergência de tudo no fim.
Pode-se interpretar que os procedimentos composicionais de O peixe controlam e violentam a existência e ofício dos pescadores filmados, mas proponho uma perspectiva possivelmente mais de acordo com a tessitura da obra, isto é, um olhar que permita, para além dos descaminhos do filme, distinguir as potências latentes que ricocheteiam na tela. Tal olhar me leva a caracterizar O peixe enquanto obra que faz uma ponte, cujas operações estéticas possibilitam um encontro liminar, construído na força da proposição, na elaboração de uma situação sonhada (pelo realizador, que fique claro) e, sobretudo, pela montagem rigorosa de fragmentos, ambos, ficcionais e etnográficos.