Morada burguesa
João Campos
O longa de Julia Murat parece defender – em fogo brando – a ideia (leia-se: equívoco) de que fazer filmes não tem a ver com política. Falar de afeto é também falar de política (e se perder numa busca), como os filmes de Agnes Varda, Chantal Akerman e Marília Rocha evidenciam. Através de gestos formais que refletem as curvas do sentir e pensar, as obras dessas cineastas levantam questões, a um só tempo, estéticas e políticas. Nada parecido ocorre em Pendular (2017), obra que parece querer, tímida e ingenuamente, ensejar semelhante gesto, mas acaba por afundar no terreno do filme enquanto mercadoria.
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Pendular é um drama em quatro atos, cuja forma se assemelha às novas novelas da Globo: enredo burguês, narrativa enclausurada numa estética planificada e classicista, controle de mise-en-scène comum a filmes industriais. Uma obra completamente insulada em sua proposta: contar a história de conflito e afeto entre dois personagens, evitando qualquer descontrole da forma e toda ousadia destrutiva – cara a Maurice Pialat, por exemplo, que realizou filmes de afeto esplendorosamente caóticos, apocalipses conjugais que encontravam uma forma disruptiva e demolidora.
Em termos de mise-en-scène, Julia Murat tenta deixar elementos importantes no extracampo, valorizando a construção de uma ambiência soturna e asfixiante. O mais interessante é o som, o que vem de fora e ressoa dentro, a montagem incessante de uma obra perdida, e os ensaios coreográficos de Alice. A fábrica abandonada em que vivem os dois amantes sugere que eles estão ocupando o lugar, o que nos lembra dos conflitos por moradia que assolam o mundo atual. Porém, a diretora utiliza a fábrica de outra maneira: como fetiche da forma. O cenário fantasmático do filme carece de qualquer complexidade de composição, seguindo os moldes de um cinema comercial que se pensa enquanto arte: quanta ingenuidade!
Desse modo, a fábrica abandonada se apresenta apenas como atelier hipster de dois personagens patéticos, cujos conflitos afetivos são completamente eufemizados poroperações estéticas inócuas. O roteiro também não diz nada que já não tenhamos vistoem filmes da Globo.
O mundo não chega à fábrica que, desabitada pelos trabalhadores, parece expulsar a destruição – isto é, a política. Impera, claramente, uma lógica de privatização – de possível ocupação, a fábrica se converte em estúdio. Os planos fixos no ambiente doméstico – pois a fábrica “ocupada” se converte em morada burguesa –, nos lembram os filmes de Ozu; mas como não há nenhum confronto ou relação (mesmo narrativa, ficcional) com o real, a conexão é relegada à cosmética. Outra ressonância desse cineasta são as paisagens internas que Julia Murat insere aqui e acolá, uma cópia contemporânea dos famosos planos de natureza morta do mestre japonês.
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O último plano reflete uma violência complexa. Ao insular seu filme no ambiente convertido da fábrica, com suas curvas, ruídos, cabos de aço e destroços, Julia Murat compõe uma “obra de arte” contemporânea completamente desconectada de qualquer discussão atual. O exterior da fábrica, que surge no último plano como uma vitrine de sonhos de artistas burgueses, violenta todas e todos aqueles que, nas ruas, nas ocupações, nas fábricas e, atualmente, NO CINEMA, lutam, resistem e insistem em outros mundos possíveis. Fazer cinema é luta de classes, os tempos são de ódio.