A Separação no Abismo

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Claryssa Almeida

No curta metragem de Miguel Rio Branco Nada Levarei Quando Morrer Aqueles Que Mim Deve Cobrarei no Inferno (1985), o espectador é convocado para transitar pelas ruas e casas do Pelourinho no final da década de 1970. Essa convocação se revela inquietante.

O autor estrutura um discurso imagético eloquente sobre a sua experiência naquele contexto social. Para tanto, dispõe de imagens em movimento e estáticas para captar o cotidiano das pessoas que ali residem.

O discurso do filme foi construído, essencialmente, pela banda sonora. A narração, assim como o filme, exime-se de palavras. As músicas cuidadosamente selecionadas são responsáveis por conduzir o espectador nesse passeio cheio de paradoxos e complexidades. Em alguns momentos, a trilha se mostra tão direta e discursiva que chama os moradores do Pelourinho de Black Survivors. Num outro momento, a chegada da polícia é acompanhada de uma trilha imbuída de tensão, capaz de tornar palpável a sensação de que a presença do Estado se manifesta como um corpo estranho e devastador naquele sistema.

A paleta de cores, sempre flertando com o vermelho, e a criatividade dos enquadramentos gera um prazer imagético inebriado por uma sensação de culpa. Essa estetização da pobreza é um caminho complexo e capaz de envolver o espectador na dinâmica de exploração daqueles corpos negros e miseráveis. Esse é um risco assumido quando se tenta dar visibilidade para um contexto social muita vulnerável do qual não se faz parte. Por outro lado, não se pode desprezar a tentativa de se pintar um quadro no qual as margens se tornam o foco. E, talvez, a visibilidade só pudesse ser alcançada, nesse projeto, com a escolha de belas cores e composições contrastantes com o objeto.

O filme inicia circundando o local e ensaiando uma entrada. A aproximação é lenta. Primeiro, somos conduzidos via janelas e portas. Depois de um adentramento por um corredor mais estreito, descortina-se o cotidiano mais trivial: os bares, batuques, jogos, trabalhos variados. Nesse momento, é possível ter contato com a vibração de vida que preenche o lugar. Finalmente, começa a ocupação dos espaços interiores, onde faíscas de vibração dão lugar a uma resistência através da ausência. Os rostos vazios, produzindo movimentos maquinais, contemplam a câmara numa avidez por serem observados. A exibição à câmera gera um lampejo de esperança nesses olhos abismais. E o autor vai participando cada vez mais daquele contexto, mas sem nunca se despir de uma estranha condição de antropólogo. O olhar da câmera, embora capte momentos de suposta intimidade, se coloca num lugar paradoxal de mais um consumidor daqueles corpos. A câmera parece pagar pelo serviço das prostitutas com o seu olhar privilegiado. Assim, levanta-se o questionamento: quando as vozes dessas pessoas são ocultadas e a sua dimensão corporal é exaltada, a câmera acaba por ser mais um dispositivo que marca e dilacera esses corpos.

No ápice do entranhamento desse estrangeiro são captadas as marcas e cicatrizes dos corpos que precisam, de alguma forma, ser mutilados para caber no real social.

Em dados momentos, há uma contraposição entre imagens de galos e pessoas brigando. Já em outros, notam-se cachorros deitados nas ruas contrapostos a pessoas na mesma posição. Por mais que nos compadeçamos com as dores do corpo, a animalização dilacerante que o filme provoca nos faz referir a eles sempre como “eles” ou “essas pessoas”. Tal separação, em toda a sua complexidade, nos conduz também ao afastamento e ao incômodo de quem, assim como o autor, não tem a experiência de viver em um lugar como o Pelourinho dos anos 70. E, talvez, uma aproximação se ensaie por essa via: a consciência da alteridade na contemplação mais brutal deste abismo.

No entanto, mais ao fim do filme, vemos vários corpos nus que já nem têm mais rosto. A separação entre voz e corpo perpetrada nos moradores do Pelourinho, ou de bios (vida politicamente qualificada) e zoé (existência biológica), é uma segmentação decisiva. Temos, nesse momento, a exibição da vida nua, ou seja, a visibilidade do aspecto biológico apartado de todo o seu potencial político. Aqui se inscreve o paradoxo mais atroz do filme: contemplamos a fratura que exibe apenas a vida biológica. Tal separação da matéria biológica dos viventes é o que coloca em trânsito a máquina biopolítica. E é exatamente a vida nua ali exibida que é capturável pelos sistemas políticos vigentes[1].

O filme contribui, assim, para reflexões profundas sobre a captura paradoxal que a arte pode perpetrar nos contextos sociais. As questões levantadas, os incômodos, os encontros repousam, antes de mais nada, na pele.

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[1]AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: Notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.