Entrevista com José Luis Guerín

El cineasta José Luis Guerin presentó hoy en conferencia de prensa en Santander su última pelicula, "En construcción", galardonada con un premio Goya, y restó importancia a su ausencia durante la entrega de estos premios, añadiendo que quiso dar "la oportunidad de hablar a los que no tienen voz en este tipo de actos", en referencia al palestino que recogió el premio en su lugar

Leandro Afonso*

Em algum momento da década passada, em Salvador, o cartaz de um filme pouco conhecido provocou um fascínio que se transformou numa imagem teimosa. Uma imagem-memória que insistia em não ir embora, que não conseguia ser apagada, mesmo antes do contato com o longa, que só veio anos depois. Curiosamente, essa imagem-memória indelével, a base de alguns cânones do cinema, é também a base daquele filme, que motivou a defesa de uma dissertação de mestrado. O foco principal dessa dissertação, e, consequentemente, da conversa a seguir, é a mise-en-scène do filme Na Cidade de Sylvia (2007), de José Luis Guerín.

Há muito a ser discutido e analisado entre a sua estreia no longa-metragem, com Os Motivos de Berta (1984), e seu longa mais recente, A Academia das Musas (2015). Situado entre eles, Na Cidade de Sylvia (2007) talvez seja o filme mais maduro de Guerín. O filme tem, na sua narrativa, a mesma simplicidade daquele cartaz da imagem teimosa: a busca por uma memória. Essa busca vem com uma mise-en-scène que parece almejar uma certa idealização, uma espécie de mescla perfeita do controle e do acaso, do feérico e do documental, de Hitchcock e Bresson.

Nesta entrevista, algumas perguntas aparecem. O cineasta fala também, entre outras coisas, sobre seu período como professor, influências inusitadas, cineastas contemporâneos e a tirania da mise-en-scène.

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Você já disse que a primeira versão de Os Motivos de Berta tinha três horas. Trem de Sombras, Na Cidade de Sylvia e A Academia das Musas são três filmes bem diferentes entre si, mas também bem mais curtos, todos com no máximo uma hora e meia. Até que ponto ter a experiência de cortar um terço de um filme, influenciou em sua escrita, no pôr-em-cena ou no pôr-em-situação dos seus filmes seguintes?

Não penso, sinceramente, que o filme tivesse que ter essa duração. Em todas as montagens há uma mais longa, que você deve seguir esculpindo, um pouco como espectador, até ficar com o essencial. Sou preocupado com a concisão. Provavelmente o filme mais longo que fiz foi Em Construção, que dura duas horas e dez minutos. Cada filme dura o que deve. No entanto, por mais que eu seja um defensor da pluralidade de durações, pois já fiz filmes de quarenta minutos, duas horas e dez, uns poucos minutos, sempre tenho claro que é uma responsabilidade moral cada minuto que tiro do espectador. Talvez o único problema sério, filosófico, que tem o cinema, é que o tempo que tira do espectador é um tempo insubstituível. O espectador jamais vai recuperá-lo. Dez minutos, uma hora, duas horas, é um tempo que o espectador nunca mais voltará a ter. Sinto uma obrigação moral nesse sentido. O tempo deve ser essencial.

Na Cidade de Sylvia tem muitos planos abertos, nos quais vemos muitas pessoas, até dezenas. Às vezes vemos que são pessoas conhecidas e recorrentes do filme, mas às vezes não, parece que são transeuntes de Estrasburgo. Ter ou não ter a autorização de imagem de um lugar ou de uma pessoa é algo que influencia sua mise-en-scène final?

Não. Essa é uma preocupação que deve ter o produtor, não o cineasta. Às vezes as problemáticas legais do produtor são muito distintas das problemáticas morais do diretor. Há muitas coisas que são legais e eu sinto que são injustas, e muitas vezes acontece o contrário. Gosto da experiência de chegar numa cidade desconhecida e começar a caminhar por ela, a caminhar muito, até chegar num momento em que, normalmente, começo a reconhecer rostos. Certas presenças da rua se tornam familiares, no bairro, na cidade. Eu queria que certas presenças fossem reincidentes. Que você pudesse reconhecê-las, você já as viu antes. Um dia você volta a passar pela mesma rua e reconhece alguém que cruza, um vendedor de flores, um vendedor africano de bijuterias. De um lado está a circunstância, ir familiarizando-se, dia a dia, com uns rostos. Na Cidade de Sylvia é um filme dividido em três dias, onde muitos dos elementos e presenças que vemos, reaparecem nessas três jornadas. Aí trabalho com as variações sobre o mesmo tema e, também, sobre os mesmos lugares e as mesmas presenças. Por outro lado, outra questão distinta, nesse filme, é a necessidade de trabalhar nos espaços interiores. E nesse respeito é certo que não tenho o orçamento para fechar uma rua e dirigi-la inteiramente eu, então o que faço é servir-me de um certo fluxo de movimento cotidiano que está aí, e complementá-lo com umas certas presenças. São ciclistas, figurantes, que vão compensar o desenho geral, a coreografia geral desses planos. Digamos que seria uma técnica mista. De garantir movimento em uma série de planos, e orquestrar isso com o que vai me dar, acidentalmente, o movimento dessa rua com seus tranvias, seus transeuntes, suas bicicletas…

Guerin 4 - A cidade de Sylvia

Em Quatro Noites de um Sonhador (1971), de Bresson, temos uma adaptação de Dostoiévski, mas temos também um homem que é um pintor, que está em busca de uma mulher, num filme que se passa em quatro noites. Na Cidade de Sylvia nos mostra um homem que desenha, que está em busca de uma mulher, num filme que se passa em três noites. Por outro lado, em Umas Fotos na Cidade de Sylvia, você fotografa um homem que desenha mulheres. Até que ponto as duas coisas influenciaram no ofício, se assim podemos chamar, do protagonista de Na Cidade de Sylvia?

Eu só lembrava desse filme de Bresson muito vagamente. É o filme de Bresson que tenho mais distante e que não pude voltar a ver. Agora tenho uma cópia, que ainda não revi. Achava gracioso Na Cidade de Sylvia ter essa divisão por noites junto à lembrança de Quatro Noites de um Sonhador, mas além da coincidência com o título não tinha a presença desse filme de Bresson. Não é, dos filmes de Bresson, o que mais me impressionou quando vi em seu momento. A ideia surgiu da própria necessidade narrativa do filme. Ou seja, como se assimila essa parte documental, da observação da cidade, de passar pelo lugar da subjetividade a partir de seus traços, de seus desenhos. Está aí o sentimento de que se está gestando algo. Não sabemos o que é. Um quadro, um filme, um poema, uma busca. Não sabemos o que se está gestando exatamente através de seus desenhos.

Você já falou muito de cineastas “tiranos” e como muitas vezes são os que você mais gosta. Também costuma dizer que, para você, a grande questão do cineasta moderno é a gradação entre controle e acaso. No entanto, vendo Na Cidade de Sylvia várias vezes, me parece que você foi um “tirano” que dá a impressão de liberdade – talvez exatamente como muitos de seus heróis. Seria seu filme em que mais tem controle enquanto filma? Seria, em sua carreira, o momento em que foi mais “tirano”?

Eu penso que não tanto (risos). Não tinha tanto poder como você pode supor. Talvez seja um pouco mais tirânico em Trem de Sombras, nesse aspecto. Se eu tivesse mais meios, gostaria de exercer mais a tirania. Também gostaria de ter mais tempo para explorar o acaso, o desconhecido. O problema é que, para pactuar melhor com o desconhecido, necessita mais semanas de filmagem, e este filme tinha poucas, não sei se eram cinco ou seis, agora não me lembro. Gostaria de pensar mais a relação entre a percepção sonhadora desse homem com sua busca e a realidade objetiva mais documental desta cidade, com seus pequenos personagens populares. Um mesmo espaço é vivido com a perspectiva da cotidianidade, e com a perspectiva de sonhador do personagem. Para trabalhar mais esse lado documental, se está trabalhando com elementos vivos que não controla, é preciso mais tempo. Então estive um pouco limitado aí. Mas a ideia de orquestrar os planos, me servindo de uns tranvias que podem passar, de uns ciclistas, do acaso, creio que dá bastante a ideia de até onde chega meu controle e onde segue o puro acaso. Dou como exemplo o transcurso do diálogo no tranvia. Estavam previstas umas frases muito simples do diálogo. Mas essas frases tão simples do diálogo, de troca entre um moço e uma moça, foram se transformando no trajeto, onde eu ignorava, em cada momento, o que veremos ao fundo, como vai atuar a luz sobre os rostos dos personagens, quando vai parar o tranvia. Por outro lado, nas sequencias no café, que tomam um bom tempo do filme, eu controlava muito o espaço e as composições, mas não exatamente o que ia acontecer com os rostos que povoavam esses enquadramentos. Quer dizer, no lugar de dizer-lhes o que tinham que fazer, eu criava uma pequena situação, podia interferir um pouco no que ia acontecer, mas logo ia à câmera um pouco com a moral de um pescador que vai pescar. A ver o que vai acontecer, ver o que vai acontecer… Queria então buscar esse lado, essa tentativa de sempre me deixar surpreender pelas reações que ia capturar com esses rostos dispostos no café. Ou seja, havia uma parte relativa ao enquadramento, ao espaço, que efetivamente está muito elaborada por mim, mas logo o que há dentro desse enquadramento está muito na lógica da captura aleatória. Ia agregando em cada momento o aleatório.

Falando do café, me lembro da garçonete. Ela pode ganhar o prêmio de garçonete mais desastrada e mais azarada de Estrasburgo. São erros de pedido, xícaras derrubadas, mais de uma vez, mais de um dia. Desde o começo, pensou numa garçonete assim? Como pensava ou não pensava todos esses erros?

Sim, pensei. De um lado havia um pequeno acidente, cai uma xícara. Cada momento depois faz parte de uma rima. Esses pequenos acidentes que se produzem dão uma espécie de sinal de pontuação, um eco entre um dia e outro. Ela é a única garçonete em todo o café, é muito para ela. É algo que acontece também cotidianamente, com uma insensibilidade social manifesta. Mas gostaria que houvesse mal entendidos, que é um pouco o azar do amor também. O que vai fazer essa pessoa conhecer a outra? Que essa pessoa olhe para a outra? Às vezes são mal entendidos, são coisas acidentais, acasos. Pode ser um destino também, que se disfarça de azar, para que se estabeleça um olhar com o outro. Se não houvesse acontecido essas confusões, essas mudanças de uma mesa para outra, esse personagem não teria tido essa revelação, a mulher no final que ele confunde com Sylvie. A garçonete é também como uma assistente do palco, que limpa as mesas e as deixa limpas para que cheguem novos personagens. É uma pessoa que está relacionada a todas as mesas. Por um momento pensei que ela deveria confundir-se e trazer, a meu personagem, um suco do fruto do paixão,que estava nas antigas lendas medievais. A revelação se produz por causa de uma porção prévia, o fruto da paixão. Salvo engano, no Brasil é maracujá…

Sim. Maracujá.

Na França o chamam de fruit de la passion (fruto da paixão).

Em outros desses acasos, aí mais um “erro” da natureza que um “erro” dela, me parece que está o motor do filme. E esse ligado ao amor. Podemos dizer que o filme existe por causa de um cocô de pombo. É esse cocô de pombo que faz o sonhador mudar de lugar para ver uma outra mulher e, ao fundo dessa mulher, perceber Sylvia. Ou quem ele pensa ser Sylvia…

Exato.

Guerin 3 - A academia das musas

Eu me lembro de você já ter falado muito de Visconti por ter sido, junto com Zurlini, quem melhor filmou Claudia Cardinale. Mas Visconti me parece um exemplo interessante por estar ligado ao neorrealismo, Com Obsessão (1943), Terra Treme (1948) e Belíssima (1951), ao mesmo tempo em que fez filmes calculados ao milímetro, como O Leopardo (1963) e Morte em Veneza (1971), que são quase anti-neorrealistas. Em algum momento se vê fazendo filmes que sejam uma espécie de negação de um estilo anterior? Seria A Academia das Musas uma espécie consciente de antítese para Os Motivos de Berta? Ou, ainda que ligados pelas musas (Lotte, Annabel Lee, Beatrice, entre outras), seria a miseen-scène de A Academia das Musas uma possível antítese pessoal à de Na Cidade de Sylvia?

Não faço isso tão conscientemente. Se há tanta consciência, me parece um pouco infantil, pois vou fazer um filme apenas para ir de encontro a outro. Mas, de fato, gosto de explorar o novo, gosto de não encaixar-me em fórmulas. É algo muito instintivo para mim, fazer algo diferente. É algo que me preocupa porque os cineastas que miram sempre um encaixe, uma fórmula, com uma equipe, como John Ford, como Ozu… Sinto que isso não seria natural para mim, que não corresponderia a uma realidade. Talvez porque essa é a realidade dos cineastas dos estúdios, com uma equipe estável. Contudo, também há cineastas contemporâneos como Philippe Garrel ou Pedro Costa, que têm seu mundo muito localizado e o aprofundam. Neste sentido me sinto como um adolescente que está tateando terrenos para encontrar definitivamente o meu, onde me encaixar. Particularmente, nunca faria um filme como Visconti. Ele me interessa, mas sua mise-en-scène me cansa, me pesa muito, as lâmpadas, os figurinos, os cenários… Ao mesmo tempo, há elementos comuns, esse jogo de acidentes, que levam a um mal entendido, que levam a descobrir uma moça, a uma revelação. Isso está em A Academia das Musas, contado de uma forma muito distinta. Em A Academia das Musas, uma das mulheres conta a história de Apolo, enamorado dramaticamente da ninfa que se transforma em árvore, Dafne. Aí o arqueiro do amor se confunde nas flechas, criando este círculo de mal entendidos e infortúnios de amores infelizes. Agora espero fazer um filme controlando a luz, com cenários. Hoje estou contente porque me confirmaram que recebi uma ajuda para desenvolvimento de roteiro na França. Terei que trabalhar mais…

Voltará a ser um tirano.

Um pouco mais tirano (risos). Recordo, há mais de vinte anos, quando dava aulas e tinha uma maleta grande com filmes em VHS. Muitas fitas, porque às vezes necessitava só mostrar uma imagem, mas já me obrigava a levar isto. Havia uma seleção de 300 fragmentos de filmes, onde para mim estão todas as lições possíveis do cinema, contidas nessa seleção. Hoje tenho uma memória um pouco maior e tenho 700 filmes. É fantástico poder viajar e estar revisitando os filmes da história do cinema que são muito importantes para alguém. Para mim tem sido bonito eleger qual desses 700 filmes ver. Antes, era um momento muito dramático, mas no momento a questão é outra. Agora, tenho que acrescentar um e apagar outro. Isso te obriga a tomar partido pelas coisas. É interessante que as memórias tenham um limite assim.

Falando em memória, você sempre falou da influência de Chaplin, da paixão por Chaplin, por Dreyer, por Ford…

Não me atrevo a dizer a influência de Chaplin. Creio que é uma loucura. Ninguém que veja um filme meu vai pensar que está influenciado por Chaplin. A influência dele transcende o cineasta, é da pessoa. Talvez alguém que conheça muito, muito, muito bem Chaplin possa detectar alguma coisa. Sem dúvida ninguém vai avisar o espectador que um filme meu seja chapliniano. Mesmo sendo o cineasta que conheço melhor.

A questão para mim é que, além de Chaplin, Dreyer e Ford, já mencionou Bresson, Garrel e Rossellini. Há também Jonas Mekas, com quem fez um longa de cartas audiovisuais. Mas quando vejo Guest ou A Academia das Musas, vejo também um pouco de Cassavetes. Com menos intensidade emocional e mais intensidade contemplativa, se é que me entende. De que forma cineastas como ele, mais ligados a um cinema independente que às  vezes também é um cinema diário, reverberam na sua puesta en escena ou na sua puesta en situación?

Não tenho consciência direta. Eu me interesso muito pela forma de encenação de Cassavetes, mas o que mais me ocorre é a circunstância. Porque também há uma precariedade, um trabalho com os atores, as situações, há um paralelismo, não? Ainda que eu tenha vindo mais tarde que Cassavetes, pode se chegar a conclusões parecidas, a alguns métodos de trabalho que têm paralelismos, mas não creio que pensei especificamente em Cassavetes. Não sei. Do homem, sem dúvida, pode ser que haja uma influência. Na história do cinema, não sou o primeiro que faz improvisações com os atores, Cassavetes está aí, mas não tenho uma cena em particular dele em mente quando estou filmando meus personagens. Neste caso, mais que em Cassavetes, pensava de uma maneira muito abstrata no cinema direto dos anos 60. Sempre me perguntei porque os grandes documentários que me importam de verdade, da tradição do cinema direto, estão feitos em película e não em vídeo, se a ferramenta mais adequada para filmá-los é o vídeo. No entanto, os grandes títulos do cinema direto, os irmãos Maysles, (D.A.) Pennebaker, (Robert) Drew, os primeiros filmes de Van der Keuken, (Frederick) Wiseman, entre tantos outros, foram feitos em película. Eles tinham que filmar mudando de bobina, medindo a luz, a distância, fazendo claquetes para o som. Que há de qualidades de grandes narradores nesses cineastas que enfrentaram uma tecnologia difícil, adversa, hostil? E por que essa tensão narrativa, essa capacidade de captar o acontecer aí em frente, de captar o irrepetível, se perdeu agora que temos as ferramentas mais adequadas para fazê-lo? Tentei fazer Guest, entre outras coisas, me respondendo isto, me colocando à prova, nessa tradição. Como narrar com alguém direto, num momento irrepetível, como definir o espaço, como criar o diálogo que guarde as relações com os materiais que foram feitos antes? É o pensamento de estar montando no momento da filmagem e da interação com o presente. É essa tensão tão grande, essa concentração que te leva com o presente, de estar fazendo este filme que é irrepetível, é o relacionar-se com o outro que não conhece, no instante, no presente. Digamos que quis pensar essa tradição do cinema direto.

Guerin 2

Luc Mourlet criticava Hitchcock, Orson Welles e Eisenstein, entre outros, e saía em defesa de Preminger, de Mizoguchi, de Losey, de cineastas que, para ele, eram o documental e o feérico. A possessão perfeita de si mesmo e do mundo, da carne e do mundo. Mas Aumont diz que a história do cinema confirma que esta ideia de Mourlet só funciona como um discurso. Em geral, se costuma ir ou para a raiz Hitchcock, que vai do classicismo ao maneirismo, ou para a raiz Rossellini, ligado ao neorrealismo e à estética do fluxo. Que acha da ideia de mescla de Mourlet dentro do cinema contemporâneo? A mescla entre controle e azar que você defende seria exatamente o que Mourlet defendia?

Creio que me sinto um pouco impudico me situando com estes grandes nomes. Sim, é difícil, também porque todos eles são grandes nomes cuja prática estava bastante determinada por uma lógica industrial e de estúdios que desapareceu. Como pensar num cineasta como Preminger? Não me atreveria a pensar em algum equivalente hoje em dia, e creio que menos ainda num equivalente a Mizoguchi. Mas não sei, teria que pensar. Ademais, acho que estas coisas se veem melhor com certa perspectiva, com certa distância. E não pensei muito em me localizar em relação a todos eles. Creio que um excesso de consciência destas coisas tem um efeito imobilizador. Assim, se penso em fazer um filme, faço uma abstração de tudo isso. Às vezes os críticos me situam num mapa, e às vezes é estimulante ver a si próprio num contexto, descobrir-se nesse contexto. Sou consciente de que há cineastas recentes que me estimularam muito. O último creio que foi Abbas Kiarostami. Tenho uma lembrança muito viva do que me causou Onde Fica a Casa de Meu Amigo (1987), e da vida que continua em Close-Up (1990), um filme extraordinário, que é uma revelação, que me abriu portas. É possível chegar neste extremo de uma captura que, digamos, respira a autenticidade do aleatório, e que no entanto se estrutura com muito rigor dentro de uma composição de filme. Isso é fascinante. Não sei se há um equivalente, no cinema recente, de alguém que levou tão longe essas qualidades.

Agora me lembro de Berta, de Juani, de Sylvie, da ruiva de Innisfree, da mulher em Trem de Sombras, da mulher na sacada de Em Construção, de Lotte, de Beatrice… Seria a principal razão de seus filmes a vontade de transformar a memória em matéria? Uma tentativa de imortalizar uma certa beleza corpórea?

É muito belo o que diz. São palavras demasiadamente grandes… Não sei se é a razão. Não pensei, pensarei. Antes de tudo, há o desejo. Para mim o cinema está muito ligado ao próprio desejo. À intensidade enorme que sinto quando estou montando um filme. Eu me sinto mais vivo. É um desejo e, sem dúvida, o que você enuncia também vai para o lado do desejo, é importante.

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* Entrevista publicada como anexo da dissertação Amor ao Plano e Amor ao Mundo: um estudo da mise-en-scène em Na Cidade de Sylvia, defendida em março de 2017, para o programa de Comunicação e Cultura Contemporâneas, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).