Bahia de Todos os Sambas (1996)

Bahia 2

Amigos em Roma: Amico, Saraceni, Hirszman.

Joana Oliveira

“O verão romano de 1983 não foi um verão como os outros. Sobre as ruas e praças de Roma desceu uma invasão afro-brasileira que fez do espaço antigo do Circo Massimo o seu quartel general.” Assim começa a narração de Paulo César Pereio, escrita por Gustavo Dahl, em Bahia de Todos os Sambas, um documento musical, como chamou Paulo César Saraceni, que co-dirigiu o filme junto com Leon Hirzsman. O longa-metragem é um registro de nove dias de agosto de 1983, quando aconteceu, em Roma, um grande evento de música e cultura baiana reunindo artistas como Dorival Caymmi, João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Nana Caymmi, Moraes Moreira, Naná Vasconcelos, Batatinha, o trio elétrico de Armandinho, Dodô e Osmar, além de ritmistas, dançarinos e capoeristas. O documentário foi lançado somente em 1996, pois o projeto foi interrompido em 1984 e finalizado somente 17 anos depois por Saraceni.

O intelectual italiano Gianni Amico, que foi o idealizador do evento, começou a conhecer a cultura brasileira em 1960, quando dirigiu o primeiro festival de cinema latino-americano de Santa Margherita Ligure, cidade na região de Gênova. Aí, ele descobriu a Bahia pelo cinema. Naturalmente, quando Amico teve a ideia de organizar um evento de cultura baiana em Roma, ele também pensou em fazer uma homenagem ao cineasta Glauber Rocha, falecido dois anos antes, com a exibição de A Idade da Terra (1980) em sua abertura.

Mas Gianni não concebeu somente o evento, que reuniu mais de 100 mil pessoas durante suas apresentações. Ele também idealizou um documentário sobre a invasão baiana a Roma. Desde os anos 60, Amico conhecia muitos cineastas brasileiros por causa de seu festival de cinema. Paulo César Saraceni e Gustavo Dahl cursavam cinema no Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma à época e foram convidados para participar do festival de Santa Margherita em 1961, juntamente com Joaquim Pedro de Andrade. O curta-metragem Arraial do Cabo (1960), de Saraceni, em co-direção com Mário Carneiro, chegou a ganhar o prêmio do festival.Nesses dias em Santa Margherita, Amico conheceu os brasileiros e eles se tornaram amigos.

Gianni Amico conheceu Leon Hirszman mais tarde, em 1967, no Rio de Janeiro, apesar de já admirar o seu filme Maioria Absoluta (1964). Eles se reencontraram um ano depois e Amico escreveu sobre esse encontro em seu texto Dois Brasis, uma despedida a Glauber Rocha e a Leon Hirszman: “Nos encontramos e nos tornamos amigos, em Pesaro, em 1968. Foi um dos primeiros brasileiros a ver TRÓPICOS. Eu esperava, nervosíssimo, sua reação ao meu filme, que, entre outras, continha uma citação do seu MAIORIA (três enquadraturas de Brasília, do alto). Depois, com Paulo César, em um quarto do Piccolo Hotel, ficamos conversando até a madrugada, enquanto no banho, Julinho Bressane havia se fantasiado de papai noel com o creme de barbear.”

Então, em 1983, Gianni Amico convidou os diretores Leon Hirszman e Paulo César Saraceni para dirigir um documentário que idealizara sobre o evento cultural e musical baiano que ele iria organizar no verão romano.

O DOCUMENTÁRIO

Os diretores Leon Hirszman e Paulo César Saraceni desembarcaram em Roma junto com sua equipe de câmera, composta por Dib Lutfi e Luiz Carlos Saldanha, para filmar o evento e também depoimentos, bastidores e passeios dos baianos e baianas por Roma. O fotógrafo italiano Tonino Nardi também trabalhou no registro. O resultado foram 36 horas de material bruto filmado em 16mm. Não há, entretanto, créditos de som direto. É provável que o som do show tenha sido gravado pela equipe de produção musical do evento e sincronizado depois. O som das conversas de bastidores e dos passeios dos brasileiros por Roma devem ter sido captados pelos próprios fotógrafos com um equipamento leve de som usado na época em documentários: um gravador Nagra, um microfone direcional e um microfone de lapela. Em Bahia de Todos os Sambas, é possível ver que havia somente um microfone de lapela que ficava, cada hora, com um artista, nas tomadas mais abertas em que o microfone direcional não conseguiria captar bem a conversa. Na cena das duas baianas que caminham pela Fontana di Trevi, só uma delas leva o microfone.

Bahia 1

O filme tem momentos belíssimos como a interpretação de João Gilberto para a canção Estate, em italiano, acompanhado pela Orquestra Sinfônica de Roma. Na maior parte da canção há um hipnótico primeiro plano do rosto de João Gilberto, uma decisão nada comum em registros de apresentações musicais. Outra apresentação marcante é a de Gal Costa, quando canta Índia. A câmera passeia pelo corpo e gestos da cantora, com zooms in e out, em um único plano. Um momento divertido acontece na sequência em que Gilberto Gil canta Aquele Abraço enquanto faz comentários e passeia por Roma, primeiro nas escadarias da Praça de Espanha e depois em um carro conversível.

Ao assistir ao documentário, é possível sentir a atmosfera carinhosa e afetiva que envolvia o evento. Nos bastidores, haviam muitos abraços e risos entre os artistas, Gianni Amico, equipe técnica e público. Esses momentos foram escolhidos na sala de montagem em uma provável decisão emocionada entre o diretor Saraceni e a montadora Maria Elisa Freire. Afinal, o filme foi finalizado após as mortes de Leon Hirzsman e Gianni Amico.

Uma série de contratempos fez com que o filme ficasse parado. Primeiro, os produtores do show queriam também se tornar produtores do filme, o que não era o combinado com Amico. Houve uma briga na justiça e, quando foi encerrada, Leon Hirzsman estava filmando Imagens do Inconsciente (1983). À medida que concluiu o filme, Saraceni começou a  realizar Natal da Portela (1988). Logo no momento em que, de fato, iriam recomeçar, Leon morreu.

Em depoimento em julho de 1999, no livro de Lúcia Nagib, “O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90”, Paulo César Saraceni conta:

“Depois, eu estava filmando Natal da Portela, e Leon estava acabando Imagens do inconsciente, e demorou um pouco mais, quando em 1987 chegou a hora de recomeçar, mas então Leon ficou doente e morreu. Aí, eu não quis mais fazer, não. Gianni insistia que eu devia terminar o filme, mas sem Leon eu não queria.

Fizemos uma tabelinha incrível, porque ele ficava atrás e eu improvisando com Dib Lutfi e Saldanha. Eu até filmei dançando, com a câmera na mão do Dib, pelo palco, tomando cuidado para não derrubar os instrumentos e as partituras. As pessoas riam de me ver dançando no palco, o diretor dançando. Sempre adorei dançar. Foram dias lindos. Gianni sempre quis fazer o trabalho. Leon tinha a ideia de filmar na Bahia, eu não entendia bem o que ele estava querendo, mas eu co-dirigia com ele. Ele já não acreditava. É que estava doente, lógico. Foi uma morte que trouxe imenso vazio para nós.

Bem, só consegui finalizar o trabalho em 1997, obedecendo a um desejo profundo de Gianni. Terminei o trabalho em respeito a ele e com muita emoção por todos esses amigos.”

Saraceni também contou em entrevista para a Folha de São Paulo, em 1997, que a maior dificuldade para conseguir patrocínio para finalizar o documentário após a morte de Gianni era que os negativos ficaram presos na Itália e ninguém acreditava que tal material existia: “Todo mundo acabou ficando muito mais importante que era naquela época.” Mas, a viúva de Gianni, Fiorella Amico, entrou no filme como produtora executiva e conseguiu levantar o dinheiro junto com outro produtor, Elio Ruma. O filme veio a estrear, finalmente, no Festival de Veneza de 1996.