ABC da Greve (1990)

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A greve é pra ontem!

 Thomas Lopes Whyte

ABC da Greve (1990) é um filme realizado em dois momentos, por dois autores. Foi rodado entre 19/03 e 19/05 de 1979, rendendo a Leon Hirszman 25 horas de material bruto, dos quais quase 30% se perdeu durante a década seguinte. Em 1990, o negativo foi finalmente montado pelo fotógrafo Adrian Cooper, três anos após a morte precoce de Hirszman. O filme, em sua concepção elástica de tempo e autoria, é o resultado complexo dessas duas épocas e desses dois autores (Hirszman/Cooper). Ainda que o fotógrafo inglês tenha decidido seguir as orientações de Leon, seria de se supor que 10 anos de maturidade, aliadas ao desenrolar natural da história, tenham imprimido suas marcas no resultado final do filme, afastando-o aos poucos de seu modelo inicial.

À época, o diretor ocupava-se de adaptar, ao lado de Gianfrancesco Guarnieri, Eles Não Usam Black-tie (1958), peça de autoria do mesmo, escrita para o Teatro de Arena. Não só a proximidade temática como a necessidade de compreender a vida do operário e o universo encenado no palco, levaram Leon a interromper o projeto e se dirigir ao ABC paulista para realizar o documentário que serviria como um serviço prestado à classe trabalhadora. Nas palavras do próprio Hirszman, em entrevista realizada em 03/04/1979:

Isso que nós estamos editando aqui é um documentário, que deve servir à classe trabalhadora, à classe operária, mostrando uma experiência concreta determinada, vivida num ano determinado e que significou um passo na consciência de classe no Brasil. Em nenhum momento ele foi pensado como uso, senão como serviço. Por isso o filme é barato e só pode ser barato.” [1].

Houve, pela primeira vez no país, uma conscientização dos intelectuais ligados ao cinema,a respeito da importância do registro tirado a partir dos movimentos populares da classe operária urbana. Ao contrário das grandes greves que eclodiram na década de 1950, ignoradas pelas câmeras, os movimentos de 78/80 contaram com os olhares atentos de cineastas que se colocaram deliberadamente como vozes contrárias ao discurso oficial produzido pelo governo através, principalmente, da televisão. Um dos motivos que justificam a atrofia do cinema novo na representação do movimento operário dos anos 50 se explica parcialmente pela proximidade de seus principais protagonistas com o círculo burguês que se formava no Brasil durante o período. Ou seja, é possível perceber, inclusive, que existia uma espécie de pacto tácito de não agressão entre burguesia urbana nacionalista e a geração cinemanovista, oriunda desse mesmo lugar social. Fator que, segundo Jean-Claude Bernardet, direcionou em um primeiro momento a sensibilidade dos cineastas em direção ao território do campo, mais distante e idealizável, em detrimento do chão de fábrica. Com exceção talvez da representação quase circunstancial da classe operária em Pedreira de São Diogo, episódio de Cinco Vezes Favela (1962), dirigido pelo próprio Leon, e de Viramundo (1965), realizado pelo grupo de Thomas Farkas e Geraldo Sarno, a poética surgida no Brasil em meados dos anos 50 com Nelson Pereira dos Santos preferiu apontar suas lentes para outras paragens.

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As greves do ABC começaram em São Bernardo do Campo, no ano de 1978. Na ocasião, o país se preparava para entrar em uma de suas maiores crises, o preço do petróleo subia vertiginosamente, o milagre econômico e o controle do governo militar sobre a produção cultural há muito já haviam perdido o vigor e a população pobre, oriunda do campo, amontoava-se nos grandes centros urbanos de produção. Principalmente no ABC, mais importante polo industrial do país, os trabalhadores impedidos pelo regime de se organizarem plenamente (e que muitas vezes não possuíam condições mínimas de moradia e acesso aos serviços urbanos), viam seus salários se desvalorizando anos após ano. As grandes paralizações voltaram a acontecer em 1979 e 1980 e contaram com a adesão cada vez maior de vários setores, não só da indústria, como dos prestadores de serviço e da igreja Católica. Na primeira ocasião, ocorrida às vésperas da posse do General Figueiredo na presidência do país, o movimento, com uma articulação sindical mais sólida, de onde já despontava a figura de Lula, colocou em pauta uma série de reinvindicações elencadas pelos operários. Dentre elas, estavam o aumento salarial, a melhoria das condições de trabalho e a estabilidade no emprego para os líderes sindicais.

Três principais trabalhos estiveram diretamente ligados aos movimentos grevistas do período. Além de ABC da Greve, os filmes Linha de Montagem (1981), de Renato Tapajós, e Greve! (1979), de João Batista de Andrade, também constituem importantes formas de registro acerca das ondas de greve de 1978/80 no campo cinematográfico, servindo mais tarde de material para Eduardo Coutinho realizar o seu Peões (2004) [2]. Em algum momento, durante ou após as filmagens, Hirszman decide mudar a perspectiva de seu trabalho. Talvez por não possuir a exclusividade da narrativa cinematográfica e/ou por não dispor da mesma organicidade que seus colegas diretores dentro do movimento sindical, Leon acaba assumindo uma postura menos pragmática e opta por extrair de suas imagens o panorama geral dos conflitos iniciados em 1978. Sejam quais forem os motivos, o atraso no lançamento de ABC da Greve, fez com que essa segunda proposta do filme fosse ainda mais realçada, imprimindo ao filme características que o aproximam da abordagem reflexiva de Coutinho. Contrariando a afirmação dada por Hirszman na entrevista durante as gravações, Adrian Cooper destaca em conversa com funcionários da cinemateca brasileira, ocorrida em 1990:

A montagem foi interrompida porque Leon resolveu fazer um filme para um público maior, com uma visão mais ampla, global, sem entrar diretamente nos méritos da política daquele momento, daquele sindicato, daquelas pessoas…”[3].

Na visão de Renato Tapajós, tanto o filme de Leon quanto o de João Batista Andrade, eram destinados à classe média. Em ABC da Greve não existe, ao contrário de Linha de Montagem, a preocupação em ser um canal de transmissão do discurso das lideranças sindicais, mesmo porque, se o fizesse em 1990, o filme estaria se dirigindo talvez a eleitores e não aos operários. As falas de Lula são utilizadas somente até o ponto em que ilustram as relações entre as lideranças e os demais personagens envolvidos na greve: operários, patrões e governo. Hirszman, apesar de ter vivido a greve em sua intensidade, consegue recuar e volta-se eventualmente para tomadas extraídas do lado de fora do olho do furacão, onde o vento é mais forte e os estragos mais visíveis. O diretor amplia o campo de visão e, além das questões particulares da greve, como as assembleias e as movimentações na porta das fábricas, procura acrescentar em um movimento mais amplo, as condições precárias de moradia, a participação da cobertura midiática nos acontecimentos e o apoio da igreja matriz de São Bernardo, que cedeu seu espaço para a reunião dos trabalhadores, impedidos pela polícia de utilizar o estádio da vila Euclides. A representação ampla, que mostra as condições de vida do operário do setor metalúrgico do ABC acaba servindo como resposta a uma forte ideia na época de que se encontravam ali, uma espécie de classe privilegiada de trabalhadores brasileiros.

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Nesse sentido, Leon busca em suas próprias palavras, apresentar o papel dos três “rios” que compunham as forças de tensão naquele momento. A primeira das correntes antagônicas, o estado, é representado principalmente a partir da polícia, com sua atuação muitas vezes truculenta e da figura do ministro do trabalho, Murilo Macedo, que em um dos pontos chave da narrativa, decreta a intervenção no sindicato. A segunda corrente, o patronato, recebe menos destaque, e aparece ao lado de Lula, em reunião que estabelece o fim da greve e também em outra parte do filme, quando o cineasta, acompanhado por um funcionário, visita um bairro de luxo, onde moram os diretores das empresas.

Especificamente, dessa relação conflituosa entre patrões e empregados, surgem dois dos momentos mais brilhantes do filme, extraídos ao acaso pelo olhar atento de Leon e Cooper. Na única cena em que a voz de Hirszman é ouvida, o diretor entrevista um executivo, que em posição defensiva, assume em um primeiro momento os interesses dos industriais, questionando de forma agressiva a natureza das filmagens realizadas pela equipe. Mas, ao ser perguntado por Leon sobre sua opinião a respeito das greves, o funcionário, em resignado e angustiante silêncio, se retrai e não consegue formular uma resposta. O segundo momento em que a intensidade da construção cinematográfica de Leon se mostra mais contundente acontece no ambiente fechado onde os empresários discutem o rumo da greve. Ignorando a presença da câmera e tomado por um momentâneo lapso de sinceridade, um homem distraído, desenha uma metralhadora. Para que a imagem não passe despercebida, emerge junto a ela a voz de Ferreira Gullar, narrador do filme:

Um empresário risca a metralhadora que desenhara. O resultado da reunião tornava desnecessário o uso das armas”.

Mais generoso com a representação do outro, , Leon dedica a maior parte do filme ao desenvolvimento do ambiente onde acontecem os movimentos. Menos interessado em dar nome aos bois, o filme se apoia em uma espécie de cobertura total da greve. Percorrendo uma extensa área geográfica que vai de São Bernardo, epicentro dos conflitos, mas também se estende a Santo André, São Caetano e Brasília, o cineasta utiliza-se da mesma estratégia para determinar com abrangência os indivíduos das comunidades ali representadas. Leon entrevista não só os metalúrgicos ligados às lideranças, mas dá voz também às trabalhadoras, donas de casa, adolescentes e artistas apoiadores do movimento. Enfim, percorre os diversos espaços que, de acordo com Ricardo Antunes em seu livro “A rebeldia do trabalho (o confronto operário no ABC paulista: as greves de 1978/80)”, já se movimentavam pela expansão de seus direitos antes mesmo da consolidação das organizações sindicais.

É interessante notar a forma como Hirszman, reiteradas vezes, enquadra os cartazes com suas palavras de ordem e exortações. O cineasta parece obter certo alívio nesses momentos, de sobreposição entre sua voz e a dos operários com a criação desses pontos de contato do discurso entre sujeito-câmera e objeto. O desbunde não é completo e nem poderia. A busca atenta da câmera pelas legendas que dão suporte às asserções do diretor, quase sempre partem de um esquema anterior à própria estrutura do filme. A abertura intuitiva do labirinto que compõem o mundo e por onde se aventuram o autor de cinema, não é infinita. O caráter reflexivo da mesa de montagem e, principalmente, no caso de Leon, a necessidade de criar um documentário claro, baseado em uma estrutura clássica de causa e efeito ligada à prática política.

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Os conflitos internos e as inconsistências do movimento operário são deixados de lado. Essas relações entre sindicato e trabalhadores são vistas com maior clareza no filme de Renato Tapajós, que exibe de forma mais transparente o processo de desenvolvimento da organização dos setores e lideranças sindicais. Ponto em comum entre os dois documentários é a evidente transformação do movimento grevista, inicialmente de caráter econômico (não exclusivamente, é claro) em direção à sua versão política madura, que culmina no momento em que a voz de Lula, consciente de sua influência, funde-se à dos intelectuais, amplificando os gritos pela redemocratização do país.

Localizado temporalmente entre os filmes de Tapajós/Batista e Coutinho, ABC da Greve sofre com certo desajuste. Condição ocasionada  pelas várias dicotomias que compõe não só o filme especificamente, como o próprio Leon. Ao recusar a ideia de mostrar uma “experiência concreta determinada, vivida num ano determinado”, Leon abre mão da abordagem descritivo-jornalística adotada por Tapajós, em benefício de sua autonomia como autor, mas perdido entre a euforia de participar do movimento operário e o desejo de transmitir sua versão coerente da história, o cineasta arrisca um salto que na ocasião do lançamento do filme, em 1990, já se mostrava distante da leitura corrente. Em análise posterior ao lançamento de ABC da Greve, após a derrota de Lula nas eleições presidenciais, Lúcia Nagib atenta para o deslocamento ocorrido, talvez a contragosto, na interpretação do filme [4]. Pairava sobre os espectadores, certa desilusão, um sentimento não resolvido, muito distante da agitação que norteou a captação das imagens uma década antes. O problema tende a se agravar com o passar do tempo, e pelo menos até o momento, o caráter melancólico do filme de Leon se torna ainda mais acentuado, se considerarmos o contexto atual de crise política.

A utilização de recursos extra-diegéticos fomenta uma fratura no interior do filme, um conflito principalmente entre forma e narração. Feita por Ferreira Gullar, as asserções diretas enunciadas pelo texto parecem querer enquadrar e refrear as potencialidades da indeterminação da tomada espontânea. Esse problema se agrava principalmente em decorrência da natureza dilatada do filme. Os referenciais se deslocam e possibilitam a abertura de flancos por onde se infiltram os anacronismos dos quais o filme padece.

Depois de todos esses anos e da reflexão sobre o papel do narrador no cinema, com uma maior confiança nas imagens, decidimos tirar parte da narração…” [3].

Ao longo de sua carreira, parecem coexistir em Leon, duas formas de pensamento, que norteiam praticamente todo o seu trabalho. De um lado, o cineasta obcecado pelo controle, partidário de uma decupagem precisa e de um cinema consciente de suas escolhas. De outro, o artista dado ao desbunde e adepto da contracultura. ABC da greve resulta da síntese desses movimentos, no seu input, no ato da tomada, o filme torna-se filho do acaso e a metodologia do direto não permite, sob a pena de frustração, controlar a vida, a exemplo de Sexta-feira da Paixão, Sábado de Aleluia (1969). Ao contrário, no output, durante o exercício de costura que caracteriza a pós-produção, Leon, e mais tarde Adrian Cooper, voltam a exercer, de forma às vezes sufocante, o controle das imagens.

A noção de militância marxista de Leon dá forma a esse filho tardio do cinema novo, que exemplifica de modo certeiro o célebre e tão contestado aforismo de Glauber Rocha, da câmera, da ideia, da cabeça e da mão. No caso de ABC da Greve, somente a práxis do documentário direto militante, com a câmera e gravadores leves à mão, somada aos reflexos afiados da equipe, poderiam dar vazão às muitas ideias e asserções da cabeça de um incansável articulista como Leon Hirszman.

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[1]Entrevista de Leon concedida em 3/04/ 1979, durante as filmagens de ABC da greve.

[2]Para uma análise mais profunda da relação entre os três filmes e a representação da greve pelo cinema, ver: GRANATO, Maria Carolina. O cinema na greve e a greve no cinema. http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Tese-2008_SILVA_Maria_Carolina_Granato_da-S.pdf.

[3]Entrevista do fotógrafo e montador Adrian Cooper concedida em dezembro de 1990.

[4] NAGIB, Lúcia. Folha de São Paulo , “ilustrada”, 9/03/1991, p. 2-5.