Os náufragos da Barca do Sol
Douglas König de Oliveira
O roteirista Jean-Claude Carrière, em seu livro “A Linguagem Secreta do Cinema”, conta que o diretor Luis Buñuel, seu parceiro no roteiro de A Bela da Tarde (1967), dizia: “Quando se tem sorte suficiente para encontrar o verdadeiro mistério, deve-se respeita-lo. Dissecar o mistério é como violar uma criança”. Leon Hirszman se dispõe a documentar o trabalho da psiquiatra Nise da Silveira à luz de concepções de Carl Gustav Jung, mas não o faz de forma invasiva e instrumental, tentando descortinar os casos psiquiátricos de forma exata. Assim como os pacientes tornados artistas, ele constrói com os recursos de seu cinema um tecido que comporta tanto o drama pessoal quanto a abertura para o inconsciente. O mistério de como pessoas, alheias à cultura formal e acadêmica, atingem espontaneamente concepções características de artistas consagrados como Marc Chagall, Van Gogh, Paul Klee, e remetem mesmo a criaturas mitológicas de tempos remotos, de culturas singulares de que hoje subsistem apenas em estudos e museus, tem sua fundamentação possível no que Jung tratava como inconsciente coletivo. Este seria um substrato comum à formação psicológica do homem e, como uma herança universal, nortearia a formação dos mitos e valores. Mas Hirszman não opta por explanar exaustivamente sobre isso, limitando-se a reproduzir os apontamentos de Nise da Silveira sobre o assunto.
O filme inicia mostrando as condições precárias da internação psiquiátrica, para depois deslocar a atenção para três desses internos, representando o trânsito entre biografia, condição psicológica e obra artística que surge durante o processo. Como uma máquina viva, as engrenagens da obra movem o emocional e o objetivo de forma integrada. Cada abertura para umas das etapas do processo de cura, de reorganização da psique através dos componentes artísticos, é retratada com o rigor formal típico do cineasta. E como em seu cinema documental e ficcional anterior, o ser humano é retratado em sua dimensão conjectural. Leon Hirszman segue a orientação de sua obra, eminentemente política, denunciando as condições a que os pacientes psiquiátricos eram submetidos antes da intervenção alternativa. Baseada na expressão de conteúdos plásticos da pintura e escultura, a terapia proposta por Nise da Silveira tentava construir uma ponte entre o mundo interior dos pacientes e o exterior, do qual se exilavam em sua degradação psíquica e emocional.
A vontade de realizar um filme sobre o que acontecia no Centro Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, datava de meados da década de 60, época em que o Brasil vivia o endurecimento do regime militar, que assumiu o poder em abril de 1964. Uma época repressora por excelência contrastava com o senso de libertação que marcava o trabalho realizado no que viria a ser o Museu de Imagens do Inconsciente. A relação com Nise da Silveira se estendeu por este longo período, até a realização do filme, em 1983. Com uma carreira de certa forma estabelecida no campo artístico, mas que tinha sofrido com uma imensa dificuldade material até o sucesso comercial de Eles Não Usam Black-Tie (1981), Leon elabora seu próximo filme no auge de sua capacidade e confiança, ainda que o revés da doença o acometesse poucos anos depois. Sua escolha pela abordagem cinematográfica do que vinha acompanhando há anos foi bastante sensível, pois o material humano necessário para a empreitada tinha uma fragilidade que os sindicalistas de ABC da Greve (1979) não possuíam, por exemplo. Uma grande parte do esforço foi o de se aproximar dessas pessoas, os três artistas que retratavam nas obras suas crises e sua vivências conturbadas, respeitando suas limitações e reservas.
Carlos Pertuis, já falecido, foi representado pelo ator Joel Barcelos. Com uma produção em que os símbolos místicos são característica, desde o seu inaugural “Planetário de Deus” (representação/reflexo de visão delirante que o levou ao tratamento psiquiátrico) até a recorrência do tema da “Barca do Sol” no fim de sua vida/carreira, sua obra remete a concepções de arte e espiritualidade intuídas por ícones contemporâneos como Paul Klee e Wassily Kandinsky. No início, suas pinturas recorriam a construções geométricas, ao estilo das mandalas, e à sistematização dos elementos de Piet Mondrian, no que Nise da Silveira identifica a busca de um refúgio em construções estáveis. Após, suas criações se abrem para figuras feéricas, permeando um mundo imaginário também habitado por demônios e entidades mitológicas, identificados na terapia como reinterpretações de mitos gregos, num registro mais livre, próximo de Henri Matisse. Por fim, neste apanhado sempre cronológico de catalogação das pinturas, destaca-se a série em que retrata o itinerário da Barca do Sol, equivalente ao mito egípcio do navio que conduz os deuses. Este sol austero, até um pouco triste, e seu caminho rumo a uma espécie de porto, identifica tanto a conclusão do documentário quanto a morte de seu protagonista. Marcantes também são as informações de sua maneira fragmentada e oblíqua de se comunicar e sua amizade incontornável com o cão Sertanejo, um entre tantos outros que auxiliavam na terapia com o estabelecimento de laços emocionais, degradados pela doença e pela inadequação social dos internos.
O episódio sobre Adelina Gomes também retrata os desdobramentos de suas pinturas partindo de concepções junguianas. Narra sua trajetória alienante, onde em muitos dos seus quadros representa figuras humanas amalgamadas ao vegetal, geralmente em forma de flor, algo que denota sua desidentificação como pessoa. Nise da Silveira relaciona isso ao mito de Dafne, transformada em loureiro para fugir das investidas amorosas do deus Apolo. Também a figura do gato (característica de seu primeiro surto psicótico, quando estrangulou a gata da família) é recorrente. À medida que supera o embotamento afetivo, que é a dificuldade de expressão de emoções e sentimentos, Adelina começa a retratar figuras humanas distintas das vegetais, e nesta fase é comum o tema da mãe e da filha, reminiscência de sua vivência conturbada com a mãe, figura opressora que contribuiu para seu distúrbio psiquiátrico em função da rejeição de uma primeira paixão, a qual a mãe se opunha. Interessantes também são os achados que se relacionam tanto com a pintura de Van Gogh que representa uma cadeira vazia, que Adelina utiliza para representar o lugar de ausência em seu enamoramento por Fernando Diniz, outro dos artistas que compõem o documentário. Também o tema dos noivos voadores, típico das obras de Marc Chagall, aparece em certo momento na produção de Adelina relacionado à satisfação com a companhia de Fernando. Visto que os pacientes na terapia ocupacional não têm nenhuma instrução formal quanto aos temas e técnicas da história da pintura, Nise da Silveira vê nessas identificações o material manifestado do substrato que Jung afirmava ser comum a todos os homens e que emergem em função das demandas expressivas, muitas vezes extemporâneas, levando os mitos a ressurgirem em todo o tempo e lugar em que a condição humana for estimulada para tal.
O capítulo dotado de menos intervenções explicativas é o inicial, que trata do artista Fernando Diniz. Após uma introdução geral, somos apresentados a uma série de desenhos que buscam ordem, mas de forma extremamente fragmentada e complexa, com elementos simultâneos e discrepantes. Fernando constituía um mundo ordenado através de geometrismos e abstrações, nos quais Nise da Silveira identifica não um afastamento completo do registro afetivo, como implicaria o pensamento psiquiátrico vigente contemporâneo ao seu, mas uma resistência ao caos, um refúgio ao temor da realidade que não encontra reflexo amistoso na sua mente em desequilíbrio. “Da matemática à fantasia”, nas palavras do próprio Fernando, que tinha formação em Engenharia. Gradualmente, elementos da realidade se mesclavam a seus padrões geométricos, como que apontando uma ordenação de sua percepção do mundo, uma readequação. A cada retrocesso na condição psicológica, os elementos de sua pintura voltavam a se desagregar. Em uma fase de sua produção começam a aparecer elementos constituintes de ambientes, que Fernando vai justapondo e coordenado até formarem o interior de uma residência, que sua mãe identifica como a casa em que trabalhou e que frequentava também o filho. Nesta casa morava Violeta, moça por quem Fernando se apaixonou e cujo casamento com outro produziu nele um profundo desequilíbrio emocional.
Uma figura recorrente nesta fase é o piano, instrumento que Violeta tocava na casa burguesa que frequentou na juventude. A busca pela ordenação afetiva chega ao auge com a abertura para os elementos da vivência de forma figurativa. Mas quando retrocedia desse estado de apaziguamento das tensões psicológicas, Fernando se abrigava, novamente, na justaposição ordenada de elementos abstratos e esculturas de engrenagens, algo a ver com o futurismo de Marinetti e Duchamp. Neste capítulo, Hirszman opta por algo menos didático que nos outros dois, com a coordenação de cenas das obras e do próprio Fernando em ação no ambiente do ateliê servindo como ilustração do trabalho realizado por Nise da Silveira.
No seu surgimento, o cinema se dividiu criticamente em duas frentes importantes: a dos que o consideravam um recurso que redimensiona e enfatiza a realidade, capturando o espaço e o tempo como nenhuma arte até então, e os que o consideravam o meio mais incisivo de alcançar a linguagem dos sonhos, da fantasia e da loucura. Imagens do Inconsciente (1983) se utiliza dessa dupla divisão do cinema, não em oposição, mas compatibilizando o registro documental a outro, que dá acesso a elementos de sonho e delírio constituintes das obras dos artistas que surgem da dinâmica ocupacional. As escolhas de Leon Hirszman para retratar tais enredos demandaram o máximo da depuração de seu cinema e apresentaram claramente o contraste do que esperaríamos de pessoas na condição social de Fernando, Adelina e Carlos, além do que foram capazes de realizar com os recursos das artes plásticas, num ambiente estimulante e integrador.