O meu peito se perdeu
Roberto Cotta
Sopesou os ovos, esboçou um meio sorriso e, fazendo uma expressão que sabia que jamais faria diante de qualquer pessoa, nem mesmo diante do espelho, começou a masturbar-se à janela, mal podendo conter a vontade de gritar e urrar, pois que se masturbava por tudo aquilo que era infinitamente seu, os negros, as negras, as outras pessoas, o mundo, o navio a vapor, as árvores, a escuridão, os animais e o próprio chão da fazenda.
(João Ubaldo Ribeiro, “Viva o Povo Brasileiro”)
De tudo que já foi dito sobre os primores de S. Bernardo, seja do livro ou do filme, nada se mantém tão inescapável aos olhos quanto o peso da desgraça. No romance escrito por Graciliano Ramos, o malogro de Paulo Honório se concretiza em dois caminhos sem volta. Primeiro, na decadência econômica de sua fazenda, cuja obsessão de posse é seu combustível de vida. Depois, na dificuldade cada vez mais evidente de empreender a escrita de seu livro de memórias, subterfúgio para entendermos o modo seco e bronco como enxerga o mundo.
Já na adaptação de Leon Hirszman, a ruína definitiva se confirma por meio da sobrevivência, conforme a cerca de arame farpado que separa ascensão e declínio se afrouxa e, enfim, desaba. É pelo fato de Paulo Honório (Othon Bastos) permanecer vivo, firme diante das derrotas, que S. Bernardo (1972) desgoverna nossa noção de fracasso. Apartado do mundo que erguera, não lhe resta mais a condescendência dos outros nem o desfrute das glórias passadas. À medida que a solidão o corrói, a propriedade vigora, ganhando corpo próprio e desgrudando-se de seus comandos. E não há nada a ser feito, restando-lhe apenas a necessidade de encarar a penitência da vida e a distância longínqua do leito de morte.
O filme é composto por omissões que nos orientam de modo mais crível que a narração do protagonista. Paulo Honório atesta que sua saúde jamais fora tão próspera, e que a altivez sobre os empregados nunca se mostrara tão austera, mas o que vemos é seu rosto sorumbático diante da penumbra, sem a submissão daqueles que um dia o cercaram. A menção à crise econômica é relatada numas poucas palavras, por ora esmagadas pelo canto lamentoso dos trabalhadores na lavoura, num dos momentos mais esplendorosos do cinema brasileiro. Além disso, o falecimento de sua esposa Madalena (Isabel Ribeiro) também é rondado por supressões.
O bebê recém-nascido chora e as pessoas se amontoam ao redor do cadáver frio, ao passo que o marido chega no quarto e se depara com o velório em curso. Entretanto, a causa da morte é devidamente omitida. Enquanto acontecia, tal qual fenda no tempo, observamos Paulo Honório mergulhar desnudo sobre a correnteza do rio, tentando limpar-se do massacre cotidiano que impôs à companheira. A evidência do suicídio não transparece, mas a lacuna deixada pela morte o torna irrevogável. Não é possível imaginar outro fim a Madalena. Seu desfecho trágico é a conclusão de um suplício, uma morte a mais anotada na conta de Paulo Honório, dessa vez um assassinato mitigado, escorrido pela convivência dos anos de matrimônio que ele geriu como latifúndio.
Nem no maior ato de coragem, Madalena é capaz de estar no centro das atenções. Bem como o córrego que divide a fazenda, sua presença só funciona como ponto de corte, divisa perfeitamente justa entre sofrimento e razão. E isso transforma em desespero o desejo incessante de Paulo Honório em possuir tudo e a todos. Quando mencionada pela primeira vez, a imagem de Madalena é fabulada: os homens da alta roda tentam descobrir sua idade (20, 25, 30 anos…), e o cálculo feito por eles não é lá diferente de uma disputa por cabeças de gado num leilão. Nesse momento, confirma-se o empreendedorismo impregnado em Paulo Honório. A obsessão em possuir a fazenda de S. Bernardo logo se confunde com o desejo de tornar Madalena uma propriedade sua. A personagem não demora em ser posse consumada, mas aos poucos desestrutura os postulados de ordem impostos, estabelecendo uma tentativa de diálogo com os trabalhadores da fazenda. A irritação de Paulo Honório logo se evidencia, promovendo total desconfiança, enquanto os ciúmes em relação à Madalena esmigalham sua aparente lucidez gestora. A razão se perde, o coração se apaga e a perpetuação do poder o destroça.
O prenúncio da ideia de posse já nos é entregue na abertura do filme. Ouvimos os ruídos lamuriosos de Caetano Veloso, cujos incompreensíveis cantos se repetem como espécie de luto associado ao martírio de Madalena. Os créditos aparecem sobrepostos a uma nota de 5 mil-réis, onde vemos duas mulheres ao redor de uma angelical criança. De forma alegórica, próximas ao valor impresso na cédula, essas moças representam a força do comércio e da indústria no Brasil dos anos 30. S. Bernardo, assim, tem seu território demarcado. Trata-se de um filme no qual o protagonista enxerga as pessoas como objetos passíveis de serem adquiridos, e a todo custo é capaz de lançar sobre elas um valor de compra e venda.
Paulo Honório veio do lodo, porém, mesmo diante da imprecisão desse solo, conseguiu se levantar, fincar os pés no chão e mudar sua conjuntura econômica, fato raro no interior alagoano desbravado pelo filme. Se os demais personagens se encontram economicamente estagnados ou à beira da bancarrota (como Luís Padilha, antigo proprietário de S. Bernardo que tão logo se torna empregado da fazenda), Paulo Honório prospera de forma repentina e ganha o respeito da sociedade local. Entretanto, falta-lhe o matrimônio e a efetivação de sua permanência no mundo com a germinação da prole. Para ele, Madalena é aquilo que divide a aceitação do presente e a materialização de um futuro vislumbrado.
O controle imposto por Paulo Honório estraçalha Madalena, tornando seu andar torto, seu olhar morto e seu riso nulo. O casamento anuncia seu revés e, sob a égide da dominação, ela pouco a pouco fenece. O jardim prometido transforma-se em campo de algodão, o campo de algodão torna-se chão de fábrica e o chão de fábrica vira sussurro fúnebre. Uma cena se sucede à outra brutalmente até que a morte venha a galope. Num determinado plano, o fascínio de Madalena em meio à plantação de algodão é interrompido pelo corte seco. No plano seguinte, vemos o olhar perdido dela tentando acompanhar o trabalho de um operário na fábrica têxtil. Em segundos, seus sonhos se dilaceram, e o casamento logo se converte em tortura.
Depois disso, cada ação indica a impossibilidade de sua sobrevivência nesse mundo de aquisições. Se, para Paulo Honório, Madalena acabara se tornando parte estimada de sua fazenda; pra nós, ela é pássaro silvestre trancafiado na gaiola, à espera da morte. Madalena não resiste à chegada da foice, abraça-a antes que o destino lhe reserve mau agouro. Já Paulo Honório permanece de olhos abertos, mesmo depois que a luz se apaga. A distinção entre coragem e covardia nunca foi tão bem traduzida como nos fins reservados a esses dois personagens.
O filme é predominantemente composto por uma planificação estruturada em tableau, quase sempre ancorada em um posicionamento estático de câmera, que observa os personagens muitas vezes à distância e estabelece uma perspectiva discursiva que se contrapõe à narração de Paulo Honório (no começo do filme, o protagonista nos revela ter sido guia de cego para, em seguida, tentar nos guiar como se não enxergássemos aquilo que ele mostra). Nesse sentido, a mise en scène se constrói mediante uma articulação dissonante de perspectivas, cujas fronteiras segregam as diferenças entre as ações narradas e os gestos encenados.
Paulo Honório fala, analisa, mas nem sempre vemos aquilo que ele acredita ter visto, embora percebamos em suas reações o fardo que carrega por imposição própria. Com ele, não partilhamos de um ponto de vista confiável, apesar de sua tentativa extenuante de condução dos fatos. Além do mais, o filme se engendra num formalismo rigoroso, e essa rigidez dialoga, sobretudo, com a auto-flagelação constante de Paulo Honório – e a punição que ele impõe a todos que lhe são subalternos – para que seus objetivos sejam obtidos, numa relação de dor e prazer que define o trabalho árduo, o pulso firme e a esperteza como os únicos elementos dignos de nobreza.
As escolhas estruturais feitas por Hirszman congregam a precisão monumental da composição dos planos, enquadramentos e angulações de câmera, algo próximo ao desejo controlador de Paulo Honório, com a impressionante economia existente nos gestos de Madelana, a beleza primitiva dos cantos de trabalho e as marcas do tempo que cortam as faces sofridas dos agricultores, apresentadas numa série de retratos na parte final do filme, a despeito de uma possível fratura de sua própria ambientação temporal. Afinal, temos aqui uma representação do Nordeste dos anos 30 ou um arremedo de Brasil dos anos 70?
Num primeiro momento, diria que as duas coisas, até porque, na obra de Hirszman, sempre interessa a permanência dos atos e seus impactos futuros. A desdramatização presente no modo como atrizes e atores pronunciam suas falas, movimentam seus corpos, gesticulam em cena e lançam seus olhares sobre outros personagens ou para o extracampo da imagem permite que o filme acumule um caráter extemporâneo. Por isso mesmo, é bastante tentadora a possibilidade de aproximação dos acontecimentos narrados durante o governo provisório de Getúlio Vargas (que depois se estendeu por mais uma década) com as situações vividas quando o filme foi feito, à época da ditadura militar, possivelmente confrontando o discurso estabelecido pelo poder dominante nos desdobramentos impulsionados pelo golpe.
Tendo em vista que o cineasta em questão foi alguém tão engajado como Hirszman, cuja obra em grande parte confronta as relações de poder e os mecanismos de resistência no período em que vigorou o regime militar, tal analogia torna-se ainda mais sedutora. No entanto, S. Bernardo apresenta-se como um filme consciente da impossibilidade de realizar qualquer curva histórica forçada. Nesse sentido, é preciso entender os valores de influência de um tempo sobre o outro. A prova disso é que as transformações de valores das classes populares, de fato, nunca conseguem ser concluídas. Paulo Honório surge da lama, tenta fugir dela, mas a ela sempre retorna, chafurdando-se em sua própria ignorância. Madalena busca resistir ao domínio do marido, articula estratégias de luta, porém sucumbe à própria fadiga trazida por essas tentativas de mudança. De soslaio, a consciência de classes visa ser discutida junto aos trabalhadores, é vez ou outra debatida por Madalena, Luís Padilha (Nildo Parente), Padre Silvestre (Jofre Soares), contudo é interrompida pela lógica dominante, de modo que a autonomia do proletariado não parece passível de ser alcançada. Nada mais definidor do que foram os anos 30 e seus mecanismos frontais de repressão.
Na década de 70, quando a alegoria passa a ser combustível quase totalizante na arte brasileira, as sementes da resistência também são a tônica de vida de certa classe intelectual que habita os grandes centros urbanos, indissolúvel mesmo na derrota, como percebemos no engajamento político do próprio Hirszman, nas proposições socioculturais existentes em cada filme que fez e no modo como capturou o espírito de sua época, sempre à mira das possibilidades de transformação do país. Esse germe favoreceu a consolidação de classes operárias cada vez mais cientes das relações entre poder e servilismo, dominação e persistência, esmagamento e liberdade. Apesar de todo o controle político e das opressões sofridas, o proletariado encontrou maneiras de sustentação de sua capacidade de luta, promovendo, bem ou mal, cisões que se desdobraram nas formas de condução do poder evidenciadas desde a redemocratização.
Em S. Bernardo, o poder e a fisiologia de suas relações se escancaram na aridez de Paulo Honório e nas contradições que habitam o personagem, vítima e algoz de si mesmo. O fascínio pelo socialismo paira no horizonte e ganha algum tipo de correspondência nos ideias dos anos 70, também numa lógica verticalmente contraditória de compreensão sobre quem orienta a luta e quem, de fato, se apresenta no front de batalha. Porém, é curioso pensar que a única inexistência de contradições esteja justamente ligada à posse da terra, metáfora absoluta de todos os poderes. Enquanto todo mundo falece, mesmo com os corpos mantidos vivos, o solo arraigado da fazenda e a potência de seus hectares sustentam uma relação de autoridade até hoje intacta, independente de quem tenha governado esse ostensivo latifúndio nas décadas seguintes. Está aí o gesto de permanência definitivo que torna S. Bernardo a obra impermeável que é, representação de cada desgraça que mastiga e engole seus personagens.