O musical esquecido de Leon Hirszman
Beatriz Saldanha
São demais os perigos de se criar uma narrativa tendo como base uma obra que integra fortemente o imaginário popular, ainda mais quando se parte da proposta de desmistificá-la. A música “Garota de Ipanema”, que versa sobre uma adolescente frequentadora do bairro/praia do título, foi composta por Tom Jobim e Vinícius de Moraes em 1962 e logo se tornou uma das canções mais populares do mundo. Dois anos mais tarde, ganhou uma versão em inglês por Astrud Gilberto e Stan Getz, levando o Grammy de melhor gravação daquele ano. Em 1966, ao lado de Eduardo Coutinho, o diretor Leon Hirszman iniciou o processo de dar vida à já folclórica personagem do cancioneiro nacional. Desde meados dos anos 1950, Hirszman era bastante ativo na cena cinéfila, quando desenvolveu atividades cineclubistas na faculdade e, em seguida,entrou para o cinema como assistente de direção, trabalhando ao lado de diretores como Nelson Pereira dos Santos e Paulo César Saraceni. Vindo dos prestigiados curtas-metragens Pedreira de São Diogo (1962) e Maioria Absoluta (1964) e do longa A Falecida (1965), Hirzsman tinha ao seu lado a crítica, que depositava em Garota de Ipanema (1967) a enorme expectativa de que fizesse com que o grande público retornasse às salas de cinema e se tornasse cativo, visto que o número de espectadores era sempre flutuante. À maneira do processo seletivo da protagonista de …E o Vento Levou (1939), a heroína da Guerra Civil americana, Scarlett O’Hara, foram abertas inscrições públicas para a escolha da Garota de Ipanema, uma jovem entre 17 e 18 anos que fosse a cara do Rio de Janeiro. Apesar dos anunciados testes, a moça selecionada para o papel foi a jovem estudante de teatro Márcia Rodrigues (cujo nome foi mantido na personagem), a convite de Liana Aureliano, esposa de Hirszman.
Garoa de Ipanema tem início com filmagens documentais do bairro-título antes da chegada do verão. Trabalhadores a caminho do serviço, crianças na saída da escola e a chuva fazem com que Ipanema pareça apenas mais um bairro no mundo. Mas logo chega o verão e as pessoas começam a ocupar a praia. Corpos bronzeados, jovens dançando, jogando frescobol. Um diretor estrangeiro vê Márcia e se interessa em filmá-la, mas seu noivo controlador (Arduíno Colasanti; em participação especial, Arnaldo Jabor aparece nesta cena como o intérprete do diretor estrangeiro) se opõe, o que a deixa aborrecida. Em seguida, Márcia está na varanda de seu apartamento de classe média alta com vista para o mar estudando para o vestibular na companhia de uma amiga, mas, preocupada, revela-lhe que não está muito certa do futuro. Sai a bossa, entra a fossa. O comportamento de Márcia é dissonante de todo o resto, mas ela continua com sua rotina de bailes e reuniões caseiras. Em seu apartamento, recebe personalidades ilustres como Vinícius de Moraes, Nara Leão e Chico Buarque. Enquanto Nara canta com completa naturalidade, Chico parece absolutamente desconfortável, fazendo jus à fama de tímido e canastrão.
Em seus passeios pela cidade, Márcia reencontra Zeca (José Carlos Marques), um amigo que acabara de voltar de uma temporada em Paris. Cheio de novidades, Zeca diz ter visto “uma exposição de Picasso, a conferência de Sartre sobre o Vietnã, o último filme de Godard e até uma greve geral”. Ela responde com ironia “nós também temos novidades: nomeações de dez novos generais, o Pelé teve uma filha, o território do Amapá vai virar estado…”.Talvez tenha sido esta a maneira que Hirszman encontrou para demonstrar o seu descontentamento com o panorama político e cultural do país, sem também deixar passar eventuais críticas à fatia da sociedade que frequenta aquele bairro (aqui refiro-me à cena da ceia de Natal em que a matrona da família, completamente bêbada, passa mal de desgosto ao ver a neta usando um biquíni. Absolutamente ridícula e divertida).
Mais festa. Uma porção de músicas concatenadas. A performance de Ronnie Von serve de pano de fundo para uma briga tremenda em que o (agora) ex-noivo de Márcia se envolve e ela acaba conhecendo um fotógrafo (Adriano Reis) por quem se apaixona perdidamente. É Ano Novo e ele propõe construi-la: “Você não sabe quem é. Nem de onde veio, nem pra onde vai. Por isso eu vou te construir. Primeiro o corpo, depois a alma imortal”. Numa das sequências mais interessantes do filme, numa espécie de ensaio fotográfico, Márcia é caracterizada como diversos tipos diferentes de mulher: noiva, dona-de-casa, intelectual, ativista, prostituta, professora, religiosa, militar, guerrilheiraetc. Mas, afinal, quem é Márcia? Mesmo após esse ensaio de descoberta, a menina permanece uma incógnita. Em seguida, há um longo monólogo do fotógrafo, que, em meio à brancura sem fim da areia da praia, evoca um tipo de profeta glauberiano (provavelmente, uma das poucas cenas mantidas do rascunho que Glauber Rocha escrevera para o roteiro). O casal se isola nesse retiro romântico que, de tão estilizado, não se sabe se de fato está acontecendo ou se trata de um devaneio, até que Márcia descobre que o homem dos seus sonhos, na verdade, é casado. Ela decide terminar tudo e, numa cena expressionista, o céu desaba sobre ela.
Acreditava-se que Garota de Ipanema restauraria um modo de produção cinematográfico industrial no Brasil. O filme se pagou, mas não gerou o lucro esperado. A crítica da época dedicou páginas inteiras de textos negativos a esse respeito, questionando a razão pela qual mexeram numa personagem que já estava formada na cabeça do povo, e atestando ter sido, decerto, a intelectualização da Garota que chateou o público, sequioso por alegria, amor e humor. “A abstração, que é a tônica do filme, foi um método extremamente perigoso para um filme com qual o público sonhava em ver”, afirmou o crítico Alberto Shatovsky, do Jornal do Brasil. Outro crítico da mesma publicação,Maurício Gomes Leite, concluiu “Tecnicamente perfeito, é neutro, vazio, anônimo, não ataca nem encampa, não se entrega ao monstro provinciano, nem se revolta contra as cores de um mundo inventado em uma mesa de bar; não forma nem uma análise, nem um protesto”. Diante de tamanha rejeição, a declaração da atriz Márcia Rodrigues, que se refere ao filme com desprezo, dizendo tratar-se de uma obra alienada, e do próprio diretor, que, fazendo mea culpa, admitiu que não deveria ter querido tanto de um projeto só, fazem de Garota de Ipanema um filme triste, o que não significa que seja desprovido de interesse e mereça o oblívio. Pelo contrário: injustamente abandonado,traz marcas hirszmanianas como o interesse pela música e pelo documentário, e merece ser resgatado com urgência.
Fazia parte dos planos de Hirszman não tentar decifrar o indecifrável, como dissera em entrevistas ainda em fase de pré-produção. A garota está contaminada pelo tédio e pelo desânimo pós-golpe de 64, mas não dá sinais de que tomará as rédeas, apenas segue frequentando bailes e a orla da praia. Como a própria bossa nova, ela é um tanto esquizofrênica: se tudo é tão triste, por que a melodia é feliz? O fotógrafo tenta construir a garota: afinal, o que sabemos dela? Quais são suas convicções políticas? Qual o papel dela no mundo, numa sociedade em que a participação do jovem é determinante para a mudança? É estar sempre de passagem, conforme a letra de Vinícius. Ela é o oposto do palpável, etérea, uma imagem que deve ser aproveitada enquanto existe diante dos olhos.
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Bibliografia consultada:
Garota de Ipanema: Um filme sobre o Rio e sua juventude. O Globo, 09/09/1966, Rio de Bairro em Bairro, p. 3.
O filme em questão: Garota de lpanema. Jornal do Brasil, 31/12/1967 e 01/01/1968, Caderno B, p. 8.
SALEM, Helena. Leon Hirszman: o navegador das estrelas. Ed. Rocco, 1997, p. 171 – 185.